(Imagem: Rudy Rucker, The Virgin of Mandelupe)
1
... e o fio enlaça o fio e faz um nó
amarrando a si mesmo, lasso, frouxo,
e eu cá cofio o meu bigode-groucho,
penso no tempo, nos seus vais e vens.
E os anos se sucedem como trens.
Até que chegue aquele... e eu vá embora
pra conferir o enigma do Lá-Fora
pra descobrir num salto o fim do poço,
porque cada filósofo que eu ouço
é implorando que ele me desminta.
2
Meu ofício é traçar fios de tinta
para entortá-los em arames-frases
e ocultar o Não-Sol; fazer as pazes
entre o sonho, o sentido, a letra, a lua,
o terror dos sem-voz que vem da rua,
o rangido do mundo aniquilado...
E o verso tem seis faces como um dado
e o dado gira até virar esfera
e o verso vira o avesso do que era
e a fala vira o fio que tudo amarra.
3
Na vida tudo é gato, é gambiarra,
versão-pirata de uma coisa-em-si,
sulanca a se passar por givenchy,
sarneys fazendo as vezes de tancredos;
e eu toco a vida assim, cheio de dedos,
como estátua na frente de um teclado.
Fazer o quê? Ficar aqui parado
enquanto ela se escorre como um rio?
Eu quero o vórtice, e o rodopio.
Quero a dor e a beleza, o grão e a fome.
4
A mão me estende algo, e me diz: Tome.
A mente fecha os olhos, diz: Esqueça.
Fico no escuro. Espero que apareça
um portento, um milagre, uma visão.
A raiz que rachou um calçadão.
A cheia que encobriu a cobertura.
O besouro que esbarra no miúra
e o revira quadrúpede no ar.
Qual a pedra que eu vim para quebrar
e revelar a drusa multicor?
5
Peço perdão a cada cantador
de quem furtei um símile, um refrão,
anacoluto ou aliteração,
rima, cadência, estrofe, vocativo...
Irmão, furtei de ti pra ficar vivo!
E que me furtem os vilões vindouros;
que minhas jóias brilhem nos tesouros
com que enfeitarem suas perseguidas...
Meus versos vão viver, ver novas vidas,
na fervura do século 21.
6
Falando nisso, lembro do cartum:
tanque de guerra, areia movediça...
Como explicar que não é só preguiça
a razão que me impede de escrever?
Falta vontade, o empuxo do querer?
Ou falta a glândula de adrenalina?
O ar frio, as calçadas de Campina?
Não importa. Por mim, não tenho mágoa;
vou molhando meu pão na minha água,
vou dizendo o que cabe em minha voz.
7
Nascemos sós, e morreremos sós;
por que vivermos sós na travessia?!
A vida pulsa, a veia é tão macia,
mesmo havendo milênios de distância.
A mão estende o vinho com elegância;
mais um gole na fonte da saudade.
É Natal. Na janela, uma cidade
inacessível a mim, também celebra,
e mais um ano de cristal se quebra;
e a vida é sempre nova, e uma só...
4 comentários:
A emoção da leitura desse poema foi direto para o pulmão. Cada frase me fez respirar mais fundo.
Que maravilha. Obrigado Mestre.
Que maravilha. Obrigado Mestre.
CLAP, CLAP, CLAP!
Gracias por essa imensa belezura, Braulio.
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