Vi agora esse filme, que pode ser visto, com legendas em
inglês, no YouTube, numa cópia de qualidade surpreendente:
O Beaumont do filme é dono de plantações de cana-de-açúcar
e em suas terras funciona o engenho de um feiticeiro local, em cujas engrenagens rústicas trabalham negros macambúzios, de
olhar fixo e vidrado, movimentos robotizados. Chega a sua casa um jovem casal,
Neil e Madeleine, e o fazendeiro se apaixona pela moça. Com o auxílio do feiticeiro, Murder Legendre (Bela Lugosi), ele impede o casamento dos
dois, e transforma a moça em zumbi para tê-la em sua mansão como escrava
sexual. O noivo descobre tudo e, com o auxílio de um missionário, tenta
impedir a consumação do feitiço.
É um filme “B”, de produção paupérrima – foram usados
cenários abandonados por outros filmes do estúdio (O Corcunda de Notre Dame, Frankenstein,
etc.), num sistema de reaproveitamento cenográfico que Roger Corman iria
empregar com mais habilidade duas ou três décadas depois. O diálogo é
descartável; é o tipo do filme que se pode ver dublado em dinamarquês sem
grande prejuízo. A ação é mecânica, as poucas cenas de luta ou perseguição são
banais. O elenco é fraquinho, e Bela Lugosi, com um disfarce que lhe dá ares
meio de Fu-Man-Chu, meio de Charlie Chan, diverte-se fazendo caras e bocas
ameaçadoras.
Ainda assim, é um filme notável, que se vê com certo
proveito. Um aspecto interessante nesses filmes de baixo orçamento é que a
deficiência técnica os impede de produzir uma impressão de realidade muito
grande. O som ora é alto ora baixo, a iluminação oscila de maneira
inexplicável, os cenários não batem uns com os outros num simples atravessar de
uma porta, o ator fala para um lado e parece estar olhando para outro...
Esse tipo de non
sequitur, de justaposição de coisas aparentemente não-relacionadas, acaba
produzindo uma impressão onírica, de incerteza, de insegurança perceptiva, que
é um dos encantos do cinema mudo e que se prolongou, no cinema sonoro e
colorido, pelo universo do filme “B” feito com um gosto e seis vinténs.
Os primeiros zumbis que vemos são os negros haitianos que
fazem moer o engenho de açúcar rústico, de engrenagens de madeira empurrados à
mão. Não deixa de lembrar aqueles filmes bíblicos em que vemos Sansão, cego,
escravizado, ajudando outros cativos a empurrar aquelas enormes pedras de
moinho para os filisteus.
A certa altura, Bela Lugosi apresenta ao fazendeiro seu
exército particular de escravos, que ele zumbificou através de uma poção da
qual basta uma gota para transformar a pessoa num morto-vivo. E todos são
brancos, e pessoas ilustres:
São os meus ex-inimigos. Ledot, o feiticeiro... Já foi o meu mestre. Entregou-me
seus segredos sob tortura. Von Gelder, esse porco estufado de riquezas... Lutou
até o último instante contra meus encantamentos. É o tipo do guerreiro. Sua
Excelência, Richard, ex-Ministro do Interior... Scarpia, chefe dos salteadores
locais... Marcquis, capitão da polícia... E este é Chauvin, o carrasco-mor, o
que quase me executou!...
São os símbolos do poder político e militar, escravizados
pelo vudu, agindo mecanicamente sob as ordens mentais de Murder Legendre.
Marina Warner, em seu livro Phantasmagoria (2006), um vasto ensaio sobre as representações
tecnológicas do sobrenatural e do espiritual, analisa a figura do zumbi, como
mais uma projeção do não-humano sobre o humano ou vice-versa. Ao comentar a
sedução hipnótica sofrida pela jovem noiva, neste filme, ela diz:
Uma espécie de arraigado interesse próprio leva os realizadores de White
Zombie a meditar sobre a escravidão e seus desdobramentos, ao mesmo tempo
em que evitam os fatos históricos propriamente ditos desse fenômeno. No
entanto, embora no nível mais superficial do enredo a noiva enfeitiçada seja a
vítima inocente de uma sinistra magia negra, num nível latente ela cai em
desgraça quando entra em contato com as forças que governam as atividades
daquela ilha; ela perde a lucidez mas não percebe nem admite tomar conhecimento
da opressão. É como se o filme dissesse: “Não olhe. Não pergunte de onde vem
seu dinheiro. Você não vai suportar a resposta.”
(p. 363, trad. BT)
Os filmes de zumbi são muitas vezes alegorias sobre algo
que vemos à distância na TV: multidões massacradas, escravizadas, desumanizadas,
reduzidas a farrapos humanos. Sem nome, sem memória pessoal, sem memória
coletiva, algum tipo de espírito primordial de vingança as levanta da tumba e as
conduz à destruição cega de quem se atravessar na sua frente. George Romero e
os demais que vieram depois dele (de Lucio Fulci a Wes Craven, de Dan O’Bannon
a Jim Jarmusch) ramificaram essa idéia básica em numerosos sub-temas.
Bela Lugosi interpretou o vilão deste filme pouco tempo
depois de ter criado seu Conde Drácula (em 1931). Se o vampiro é o morto-vivo
típico da aristocracia européia, bebendo o sangue dos camponeses das montanhas
e dos bosques da Europa Oriental, o feiticeiro vudu, criador dos zumbis, é o
seu equivalente nas florestas tropicais e nos canaviais dos engenhos de açúcar.
É curioso que a ambientação do Nordeste açucareiro de
Gilberto Freyre e José Lins do Rego, tão pródiga em escravos e em histórias de
maus tratos, de mandingas e feitiços, não tenha produzido uma literatura de
terror apreciável, na linha do que sucedeu com os zumbis haitianos. Talvez porque
aqui não tenha acontecido uma revolta sangrenta como a do Haiti na virada do
século 18 para o 19, quando foram passados “no fio da faca” os europeus locais,
principalmente os franceses. Alejo Carpentier contou um pouco dessa história em
O Reino deste Mundo (1949).
(p. 363, trad. BT)
Um comentário:
Bacana, Braulio!
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