quinta-feira, 1 de outubro de 2020

4626) A aventura e a morte (1.10.2020)




O que é uma aventura? Gosto da definição de Ariano Suassuna: “Aventura é uma coisa que é muito ruim na hora que está acontecendo, mas, depois, é boa de contar que é danada!”.
 
A palavra definidora, nesse caso, é “depois”. A aventura só presta depois do final, e mais: do final feliz.
 
Enquanto a gente ainda não sabe se vai escapar das flechas dos índios, dos morteiros alemães, das investidas do conde vampiresco, dos raios desintegradores dos alienígenas, a aventura é uma coisa danada de incômoda.
 
Depois de concluída, toda aventura não passa de um episódio da vida sobre o qual não pairam dúvidas, e do qual não emanam perigos. A vida se torna Estória. Um semicírculo de poltronas em volta de uma lareira, noite de inverno, bebidas na mesinha, e a gente dá uma baforada no cachimbo e diz: “Tudo começou no inverno de 1844...”
 
Existe portanto uma contradição essencial entre aventura e estória. Entre vida real e literatura.
 
A aventura vira estória quando passa, e fica congelada no âmbar da memória, onde nada mais pode nos acontecer. Essa aventura é, neste sentido específico, o contrário da vida – a vida real é justamente esse espaço angustioso onde, como disse o poeta Gilberto Gil, “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. A vida é esta coisa horrorosa onde a gente pode morrer.
 
Na hora que acontece, a aventura envolve perigo. Se não tiver perigo real não é aventura, é passeio, é passatempo.


Nas minhas leituras formativas, nunca esqueci este trecho de A Casa sem Chaves (1925), de Earl Derr Biggers, a primeira aventura do detetive havaiano Charlie Chan. O protagonista da história é o jovem bostoniano John Quincy Winterslip, de 29 anos, família tradicional, formado em Harvard, filho modelo, um rapaz-de-bem e genro ideal, a quem nunca uma aventura aconteceu. É aquilo que hoje em dia se diz: “um rapazinho de camisa pólo e sapatênis”.
 
Ele está batendo papo com um cara mais velho e mais sambado, que ironiza seus modos de bom-rapaz:
 
(...) -- Você nunca soube o que é emoção. Será que soube? Já perdeu a hora de ir para a cama por algum motivo totalmente bobo, como, por exemplo, porque você é jovem e a lua está brilhando sobre uma praia banhada pelos mares do Sul? Já disse uma mentira cavalheiresca para proteger uma mulher que não valia a pena? Já fez amor com a garota errada?
– É claro que não – disse John Quincy, todo empertigado.
– Já fugiu para salvar a própria vida, em becos escuros, num bairro de má-fama de uma cidade desconhecida? Já brigou pra valer com um marinheiro, aquelas brigas à moda antiga, onde as armas são punhos deste tamanho? Já partiu à caça de um sujeito e quando o encurralou saltou em cima dele sem outra arma senão as mãos nuas?


É claro que John Quincy responde que nunca fez nada disso, e é claro que no final do livro (este diálogo é no capítulo 3) ele terá passado por todas essas aventuras, terá trocado uma careta noiva bostoniana por uma namorada do Havaí, e terá descoberto detetivescamente quem matou o morador da “casa sem chaves”.
 
Para o garoto de dez anos que leu esse livro, a lista de aventuras acima era um sonho. (Mal sabia, o garoto, que acabaria beirando os 70 anos e dessa lista inteira só teria praticado um item.)
 
Aventura e perigo estão entrelaçados, e oito anos depois de conhecer Charlie Chan eu já tinha outras leituras.
 
Por exemplo: em A Náusea (1938), Jean-Paul Sartre mostra o diálogo do protagonista, o escritor Antoine Roquentin, com o personagem meio patético que ele chama O Autodidata, um rapaz interiorano, pacato, meio abestado, quase um Winterslip, que passa os dias na biblioteca local, lendo todos os livros disponíveis por ordem alfabética, porque seu projeto pessoal é “saber tudo”.


Roquentin está, nesse início do livro, começando a experimentar “a Náusea”, a sensação de vazio existencial. Isto o transforma numa espécie de Seu Lunga cheio de irritação com a humanidade e desconfiança com o universo. Os dois estão batendo papo, e o Autodidata diz:
 
– (...) Para falar com franqueza, eu gostaria também que alguma coisa inesperada me acontecesse, alguma coisa nova, aventuras... – Ele abaixa a voz e seu rosto adquire uma expressão malandra.
– Que espécie de aventuras? – indago, atônito.
– De toda espécie, senhor. Pegar o trem errado. Descer numa cidade que não conheço. Perder a mala, ser preso por engano, passar a noite na prisão. Senhor, eu acho que a palavra aventura pode ser definida assim: Um acontecimento fora do ordinário mas sem ser necessariamente extraordinário. As pessoas falam sobre a magia das aventuras. Esta expressão lhe parece correta?
 
Roquentin acha o rapaz um rematado idiota, mas depois que o outro vai embora o diálogo não lhe sai da cabeça e ele fica rememorando seu passado; ele já viajou pelo mundo, conhece a Europa, o Oriente, morou na Indochina, atravessou o Norte da África... Ele começa a rememorar fatos de sua vida:
 
Encho o cachimbo, acendo, estiro-me na cama, jogo uma manta sobre as pernas. O que me espanta é estar me sentindo tão triste e esgotado. Mesmo que fosse verdade – que eu nunca tive aventuras – que diferença faria? Primeiro, parece ser uma simples questão de vocabulário. Aquele episódio em Meknes, por exemplo, eu estava pensando nele pouco tempo atrás: um marroquino pulou em cima de mim e quis me apunhalar com uma faca enorme, mas eu o acertei bem embaixo da têmpora... e ele começou a gritar em árabe e uma horda de mendigos sujos apareceu e começou a perseguir nós dois até Souk Attarin. Bem, você pode chamar isso pelo nome que quiser, mas em todo caso, foi uma coisa que aconteceu comigo.
 
Esse episódio de Sartre me chamou a atenção hoje porque vejo nele talvez o gérmen do episódio crucial de O Estrangeiro (1942) de Albert Camus. O estrangeiro é Meursault, que encontra numa praia um árabe que tivera uma briga com um amigo seu; quando o árabe exibe uma faca, Meursault puxa o revólver e o mata com cinco tiros.


Albert Camus sempre confessou ser um leitor de romances policiais noir norte-americanos, e que escreveu sob a influência (também, junto a outras) desses autores. Tem tudo a ver. Indivíduos sem grana, sem perspectivas, sem famílias importantes para lhes atribuir um futuro, sem voos intelectuais, sujeitos a impulsos básicos de sobrevivência, sexo, bebida, trabalho alienadão...
 
O personagem de Sartre é um intelectual (é escritor e historiador), e se questiona, meio angustiado, se os fatos banais que viveu foram aventuras ou não. O personagem de Camus é um cara rigorosamente banal, e a comparação entre a prosa dos dois livros (ambos narrados na primeira pessoa) mostra a distância entre um e outro.
 
No livro de Sartre, Roquentin sente-se esmagado, moído, triturado pela falta de sentido da existência e pela hipocrisia, mesquinhez, banalidade do mundo que vê à sua volta; acaba se resignando à vida ouvindo numa vitrola de ficha uma negra americana cantar um jazz. Mas a prosa do autor mostra, ao longo do livro inteiro, uma assustadora vitalidade verbal. Os ódios de Roquentin são eloquentes. Sua percepção da realidade é vívida, quase dolorosa. Suas metáforas, suas comparações são surpreendentes. Roquentin é intenso.
 
No livro de Camus, a vida de Meursault é uma linha horizontal com leves tremores: nada o excita, nada o inquieta, nada o enraivece, até mesmo o homicídio que comete é meio sem saber por quê. Em momento algum ele se pergunta (como Roquentin) se sua vida teve ou não aventuras. Sua temperatura emocional é a de um personagem de videogame.
 
Por curiosidade, baixei uma cópia em PDF de L’Étranger e procurei a palavra “aventura”. Ela só ocorre uma vez no livro inteiro, no capítulo 2 da primeira parte. É quando Meursault anda pela cidade no começo da noite e descreve o que vê nas avenidas:
 
Por sobre os tetos, o céu se avermelhou e, com o cair da noite, as ruas começaram a se animar. Os transeuntes retornaram; reconheci aquele cavalheiro distinto no meio dos outros. As crianças choravam ou se deixavam arrastar. Daí a pouco os cinemas começaram a despejar na rua uma horda da espectadores. Entre eles, vários jovens que tinham atitudes mais firmes do que o normal e eu pensei que eles tinham acabado de ver um filme de aventuras.
 
Esses jovens estão sob o domínio da Estória, da vida real transformada em inofensiva Narrativa onde nada mais pode acontecer. Aqui, fora, na vida real, não há aventuras; só existem tragédias sem emoção que terminam em morte.
 
Meursault não sabe o que é aventura, e quando ele aperta o gatilho cinco vezes não é em busca de excitação, de perigo, de adrenalina, como talvez tivesse sido o caso daqueles rapazes. É com aquela sensação fatalista que no Nordeste o pessoal exprime com: “Fecha a tampa a bate o prego”. Com esses tiros ele quebra o cristal da própria vida morna e aceita a tragédia.
 
O Estrangeiro é o diagnóstico da falta de sentido. A Náusea, comparado com ele, é um livro quase de auto-ajuda, um livro de entusiasmada entrega à intensidade de vida.
 






4 comentários:

Paulo Rafael disse...

Excelente, Braulio! E dá vontade de reler a Náusea e o Estrangeiro!

RODRIGO AMORIM disse...

Sempre fazendo a vida do leitor mais intensa através desses textos! Obrigado.

RODRIGO AMORIM disse...

Sempre fazendo a vida do leitor mais intensa através desses textos! Obrigado.

natália calamari disse...

Um texto melhor que o outro. Reunir Seu Lunga, Sartre, Camus, Gilberto Gil... fazer essas conexões todas é algo surpreendente. Obrigada, Bráulio!