quinta-feira, 21 de maio de 2020

4580) Primeiras Estórias: "A menina de lá" (21.5.2020)




A quarta estória deste livro de Guimarães Rosa (Primeiras Estórias, 1962), “A menina de lá”, é um continho curto e intrigante sobre uma menina milagreira.

Dizer milagreira é talvez dizer muito, porque dá a impressão daquelas histórias, tão comuns no Brasil, de meninas mortas que fazem milagres. Meninas que foram assassinadas “com requintes de crueldade” e por isso viram uma espécie de santinhas, para cuja capela funerária se dirigem peregrinações sem fim...

Não é o caso de Nhinhinha, esta protagonista. É uma menina como as outras, só que mais calada. Num dos seus prefácios a obras de Rosa, Paulo Rónai comentava o quanto em seus contos apareciam dois tipos de personagens pelos quais ele parecia ter um fascínio especial: os doidos e as crianças.

São pessoas a quem a gente não pode pedir prestação de contas, pode somente observar. A gente pode interrogar a sério um adulto lúcido, pode pedir explicações disso ou daquilo, pode argumentar, comparar conceitos... Com doido e com criança, isso rapidinho se esgota. São criaturas-em-si a cujo mistério interior a gente não tem acesso. Pode somente observar o que fazem, e tentar formar opinião.

“Sua casa ficava para trás da Serra do Mim”, principia o conto, e qualquer interpretador profissional (ou diletante, como é o meu caso) entende que tudo isso se passa à sombra do Ego, numa parte inconsciente e não visível, “além do horizonte do Ser”. Um lugar pré-entendimento, não por outro motivo chamado “o Temor-de-Deus”. É um condado mítico, pré-racional.

E nesse lugar aparece uma menina que faz as coisas acontecerem.

No começo, ela é apenas uma menina como as outras, brincando, sorrindo, dizendo as coisas inesperadas e imprevisiveis que as crianças dizem:

A gente não vê quando o vento se acaba...

Alturas de urubu não ir...

O passarinho desapareceu de cantar...

São da menina, estas frases? Sim, mas acima de tudo são do Autor, que é menino também, pensa desse jeito, imagina desse jeito, e se expressa desse jeito. E anota tudo em cadernetinhas a que recorre quando precisa de exemplos.

Nhinhinha é no entanto alguma coisa mais, escondida por trás da Serra “do Rosa”, da Serra do Moimeichego. Ela faz milagres.

A princípio, a família se admira apenas porque ela “adivinha” o futuro.

Diz: “Eu queria o sapo vir aqui”... e daí a pouco o sapo comparece, pulando. Diz: “Eu queria uma pamonhinha de goiabada...” e logo surge uma vizinha, sem saber de nada, trazendo o doce desejado.

Diz o narrador: “O que ela queria, que falava, subito acontecia”. Mas não era tão fácil assim. A Serra está passando por uma seca braba. O pai, todo mobilizado, sente-se na obrigação de tomar alguma providência e convoca a milagreira da casa. A menina refuga, não quer, não explica: “Deixa... deixa...”.

E um dia a menina explica outra coisa que queria: “um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes...”  E o resto é estória.

É um desejo de nossa infância (dizia Freud): o da Onipotência do Pensamento, de fazermos as coisas acontecerem apenas pela vontade, sem mexer uma palha, sem assoprar um grão de areia. Quando julgamos que isso acontece (=pedimos uma coisa e a coisa sobrevém), nos assustamos. Temos a sensação do Uncanny, do Unheimlich.

Todo mundo conhece alguma história sobre, sei lá, um marido farrista que sai para a esbórnia e a esposa revoltada pragueja: “Era bom que batesse com esse carro...”, e quando o sinistro acontece ela desaba de culpa.

Um caso clássico (nas minhas referências literárias) da Onipotência do Pensamento é o conto tenebroso de Jerome Bixby, “It’s a Good Life” (1953; foi depois adaptado para a série Twilight Zone).



É a história de um menino, Little Anthony, que nasce em Peaksville, um vilarejozinho do interior dos EUA, e desde cedo desenvolve poderes muitos mais fortes do que os de Nhinhinha. Ele faz se abater sobre aquela gente simples, interiorana, por trás de alguma outra Serra, toda a força-em-bruto da pulsão desejante de um ser humano normal em seus primeiros meses de vida.

Tudo que ele deseja acontece – instintiva e irreversivelmente.

Aos três anos, Little Anthony é capaz de apagar a mente de uma pessoa e transformá-la num robô amnésico e sorridente. É capaz (para se divertir) de fazer um rato devorar a si próprio. É capaz de ler pensamentos e de, mesmo quando está de bom humor, provocar catástrofes terríveis porque tenta, às vezes, realizar o que aquela pessoa está pensando.


("Twilight Zone")

Por isso todas as pessoas, quando se aproximam dele, murmuram sem parar algum mantra sem sentido, para misturar os próprios pensamentos, e não darem idéias erradas a Little Anthony.

Claro que o Pequeno Tirano Cósmico não aceita interferência ou admoestações. Aliás, a primeira coisa que ele fez foi remover o vilarejo do mundo em que nós estamos. Peaksville tornou-se uma ilha no meio do Nada. E uma ilha onde tudo está acabando: mantimentos, bebidas, cigarros, roupas... Não há como trazer mais “do mundo de fora”, porque ninguém sabe mais onde está.

Mamãe olhou pela janela, para além da estrada escura, para além do trigal escuro dos Henderson, para o vasto, interminável Nada cor-de-cinza  em que o vilarejo de Peaksville flutuava como uma alma – o imenso Nada que ficava mais evidente à noite, depois que o dia brilhante de Anthony acabava.

Não adiantava de nada imaginar onde estariam... nem um pouco. Peaksville estava em algum lugar; e pronto. Algum lugar longe do mundo. Estava ali desde aquele dia, três anos atrás, em que Anthony emergira do ventre dela e o Doutor Bates, que Deus o tenha, gritou e largou o bebê e tentou matá-lo, e Anthony soltou um vagido e fez aquilo. Levou o vilarejo para algum lugar; ou destruiu o mundo e deixou apenas o vilarejo, ninguém sabia qual dos dois.

A literatura tem disso. Por mais que um tema seja claro, específico, por mais que uma história pareça já ter sido contada, por mais que tenha mesmo sido contada mil vezes, quando ela passa através de um autor ela sai do outro lado transformada em outra coisa.

O que em Guimarães Rosa é lirismo e carinho, ainda que com uma mão-de-tinta fúnebre nos últimos parágrafos, em Bixby é terror puro, “fantasmas do Id”.


("Twilight Zone")

A Onipotência do Pensamento é uma fantasia resultante de uma fase em que a criança não distingue entre o mundo material e a representação mental que faz dele; e pulando daí para o plano coletivo, entramos no reino dos animismos de toda forma. Em que é possível à mente dominar a matéria sem usar a matéria. Encantamentos, pragas, bruxarias, magia à distância, tudo isto são derivações desse desejo: o de olhar para uma coisa que nos incomoda, pensar: “Desapareça!” – e essa coisa desaparecer.

Bixby é só pesadelo. Rosa, que gostava de doidos e de crianças, era capaz de imaginar uma menininha milagreira do-bem:

Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita.


O conto é uma fantasia benigna sobre o Poder. Na sua delicadeza, leveza, Nhinhinha parece estar flutuando, e mesmo quando colocamos os dois lado a lado ela não é sugada pelo “black hole” desejante que é Little Anthony.











Um comentário:

Fraga disse...

Prazerzão na leitura!