Reli, ao longo de cinco noites, o romance-reportagem de Euclides da Cunha, que eu tinha lido por volta dos 25 anos. É outro livro, porque já é outro leitor. Por mais que a gente recorde o desenho geral da obra, os episódios mais vívidos, as frases mais tonitruantes, a releitura é feita agora à luz do que aprendemos no intervalo. As comparações, as associações de idéias, são outras. O Brasil é outro. Quando li Os Sertões o país estava sob uma ditadura militar, o Exército era o Inimigo, e podíamos imaginar Canudos como um esboço de Socialismo Sertanejo. Hoje mudou tudo.
Há 110 anos, a cidade, através de suas Forças Armadas, invadiu Canudos. Hoje, Canudos invadiu a cidade: para onde a gente olhe vê a Favela, o casario, as trincheiras, escuta o espoucar dos tiros e sente o silvar das balas perdidas. O tiroteio de Canudos deixou para trás o sertão bruto de Cocorobó e Jeremoabo, pegou ônibus, pegou misto, pegou pau-de-arara, desembarcou no Rio e se instalou na Rocinha, no Alemão, na Providência, no Vidigal. Quando o Exército voltou triunfante, brandindo a cabeça de Antonio Conselheiro como uma garantia de que a República não seria derrubada, esqueceu-se de olhar para trás e ver os milhões de jagunços que o seguiam a pé e de foice em punho.
Estou sendo melodramático, mas é o jeito. Melodrama é tragédia diluída em sentimento. O livro de Euclides é tragédia pura, é a história de uma situação-limite vivida por um País, em vez de por um simples grupo de indivíduos. É de uma verdade e uma intensidade insuportáveis, se nos dedicarmos a pensar sobre ela e conduzir estes pensamentos até as últimas conseqüências – entre as quais está a constatação de que a situação cem anos depois é cem vezes mais grave, e que nem toda a evolução tecnológica do nosso Exército pode fazê-lo ganhar esta segunda batalha que se desenha. Porque, mais uma vez, trata-se de uma guerra que não é guerra, não faz parte das guerras estudadas nos manuais militares.
Os sitiados de Canudos colocavam o olho na frincha da janela e, de lá do seu vale rodeado de colinas, viam a linha implacável dos batalhões que os cercavam, e que nos três últimos meses de campanha vieram “comendo pelas beiras” seu povoado, casebre a casebre, cadáver a cadáver. Hoje somos nós que quando saímos à rua ou vamos à praia olhamos para o alto e vemos os morros cobertos dos casebres que nos invadem. Por enquanto, ainda são nossos. Não se enganem: 95% dos favelados cariocas são tão pacíficos e trabalhadores quanto eu e você, caro leitor. São os 5% restantes que não param de crescer. Há comboios de suprimentos (dinheiro, armas, drogas) que não param de chegar às suas mãos, para fortalecer-lhes o cerco. É um Canudos-Bizarro, uma contrafação, uma caricatura grotesca daquele povoado ingênuo onde os sinos tocavam a Ave-Maria toda tarde, com ou sem bombardeio. É um Canudos do Mal. Tivemos 110 anos para evitar que surgisse, e se não o fizemos não foi por falta de um Livro.
Um comentário:
Muito bem colocado.
Muita gente não sabe de onde vem o termo favela. É impressionante como a sociedade pode fechar os olhos para o que não quer ver.
Mas como dizia o Rosa no seu Sertão, "tudo quanto existe é porque se merece e carece, antesmente preciso. Talvez nosso desafio seja viver essas barbaridades para compreender o paradoxo deste eterno "me engana que gosto" mesmo sem gostar.
Vai saber.
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