sexta-feira, 4 de setembro de 2009

1249) O lobisomem (15.3.2007)


Diz a Antropologia que a Magia é concreta, e a Religião é abstrata. Com o passar dos milênios as religiões foram ficando cada vez menos antropomórficas e mais abstratas. As mitologias grega, nórdica, etc., eram uma espécie de telenovela melodramática em que os deuses não eram muito diferentes dos seres humanos, em suas paixões, vinganças, amores e ódios. O Judaísmo ainda é antropomórfico: o Deus do Velho Testamento se parece com as divindades mitológicas antigas. O Cristianismo, com o Novo Testamento, tem um humanismo fraterno que foi sua grande contribuição à humanidade, mas ainda é antropomórfico, com suas imagens, santos, etc. O Protestantismo fez uma ruptura na direção de uma abstração maior, eliminando por exemplo, a adoração às imagens (como o Islã aboliu a representação da figura humana, embora tenha permanecido antropocêntrico em seus valores e em sua legislação). Eu diria que a mais refinada das religiões é o Taoísmo, este sim, plenamente abstrato, relativizando sempre as contingências humanas e absorto na tentativa de entendimento das forças essenciais que movem o Universo.

A Magia, por outro lado, é o terreno do dia-a-dia, da nossa experiência voltada para a fisicalidade do mundo, dos seres e das coisas. A Religião, quanto mais evolui e se abstrai, mais exige de nossa capacidade intelectual de abstrair, generalizar e sintetizar. A Magia se baseia naquilo que Lévi-Strauss chamou de “a ciência do concreto”, uma sabedoria baseada no contato íntimo e intenso com as coisas que nos cercam.

Ainda não pude ver o filme que Vladimir Carvalho fez sobre José Lins do Rego, mas tenho relido algumas coisas do mestre, e em Menino de Engenho me deparo com este trecho, que não apareceria mal num livro de Lévi-Strauss, Mircea Eliade ou outro pesquisador das religiões e magias. Carlinhos, o narrador, está se referindo a José Cutia, um sujeito esquisitão e pálido que é suspeito de ser lobisomem porque precisava “corar com o sangue dos outros”:

“Eles me contavam estas histórias dando detalhe por detalhe, que ninguém podia suspeitar da mentira. E a verdade é que para mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em Deus. Ele ficava tão perto da gente, ali na Mata do Rolo, com as suas unhas de espetos e os seus pés de cabra! Deus fizera o mundo somente. Era distante dos nossos medos, e nós não o víamos como a José Cutia com o seu cesto de ovos. Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era o mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma idéia vaga de sua pessoa. Um homem bom, com um céu para os justos e um inferno para a gente ruim como a velha Sinhazinha, com caldeiras e espetos quentes. Mas tudo isso depois que o sujeito morresse. O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva. Era sair antes da meia-noite para a Mata do Rolo, e encontrá-lo.”

Um comentário:

Celso Augusto, O autor dos rebentos disse...

Braulio, faltou falar das religiões africanas, estas também de um cunho antropomórfico e mágico, concreto.