Sempre tive a sensação de que ler era conversar com um Mestre que mora longe, não me conhece, mas está disposto a me ensinar tudo que sabe. Às vezes o sujeito já morreu há duzentos anos mas as lições dele estão todas ali, à minha espera. O único inconveniente era o fato de ser um monólogo, não um diálogo; ele tinha muito a me dizer mas não poderia me ouvir. Uma comunicação de mão-única, por certo, mas sempre achei que era melhor uma comunicação de mão-única com Dostoiévski ou com Machado de Assis do que horas de blá-blá-blá improfícuo com certos contemporâneos.
Ler era um exercício de humildade, era o momento de me sentar em posição de lótus diante do mestre e, mergulhado num silêncio respeitoso, absorver suas lições da melhor maneira possível. Ler era conversar com os mortos, com os distantes, com sujeitos importantes que se me encontrassem pessoalmente mal dariam atenção àquele adolescente cabeludo e mal vestido, mas que, graças ao milagre do papel impresso, me faziam companhia durante as madrugadas, na mesa da cozinha onde eu me sentava com o livro aberto à minha frente, tendo ao lado o caderno-espiral, um bule de café e uma pãozeira cheia de bolachas sete-capas. Quando a gente lê, vira discípulo, aprende a ficar calado e escutar, aprende a aprender.
Escrever, por outro lado, era aquele momento em que o discípulo zen dá um salto acrobático no ar e cai de pé transformado num mestre do karatê em posição de batalha. Escrever era a hora de mandar às favas as lições alheias e fazer ouvir minha própria voz. Quando eu empurrava o livro para um lado e a ponta da caneta Bic fazia contato com a superfície mágica do caderno, desencadeava-se um Shazam cósmico qualquer, Billy Batson virava o Capitão Marvel, e pelos poderes de Grayskull eu me transformava nos meus super-heróis imbatíveis, Pessoa de pince-nez, Rosa de gravatinha borboleta, Dylan de óculos rayban.
Arrufos da juventude, por certo. Porque hoje, amiguinhos, a sensação que tenho depois de todos estes dias em Pequim é que estas duas situações se inverteram. Resta pouco tempo, restam poucos anos. Ler a esta altura é luxo, é egoísmo, é amealhar ainda mais moedas num cofre já abarrotado, é pedir o adiamento do jogo para continuar treinando. Ler está virando uma atividade egoísta, o derradeiro dos prazeres solitários.
E escrever é agora a verdadeira lição de humildade: ter que mostrar todo dia que o que aprendi foi só isto. É pouco, mas é o que tenho para exibir, para oferecer. Você tem o direito de aprender na primeira metade da vida, mas fica com a obrigação de ensinar na segunda. Não importa se você sempre acha que se preparou mal, que aprendeu pouco, que o que sabe é inadequado ou já-era. O que aprendemos é um empréstimo que o mundo nos fez, e precisa ser pago. Escrever é passar adiante aquilo que, bem ou mal, restou em nosso juízo depois de tantas madrugadas. O Mundo é o que você aprende, mas Você é o que você ensina.
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