quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

0788) A pureza do plágio sincero (27.9.2005)



O escritor popular plagia de alma limpa. Se morresse depois de pingar o ponto final, subiria ao céu envolto em nuvens brancas e sinos dourados. Não é pecado aquilo que ele faz. Por “escritor popular” refiro-me aos franceses e ingleses que escreviam folhetins melodramáticos nos anos 1850, aos norte-americanos que escreviam contos de ficção científica nos “pulp magazines” dos anos 1930, nos redatores de fotonovelas femininas dos anos 1950, dos teledramaturgos da nossa TV nos anos 2000. Eles trabalham num meio onde a auto-referência é lei primordial, e onde o auto-canibalismo é a maneira mais rápida de não morrer de fome nem de falta de inspiração.

Em As Palavras, rememorando suas tentativas de escrever romances de aventuras aos 12 anos, Jean-Paul Sartre tem um parágrafo delicioso. Diz ele: “Pedi que me dessem um caderno, um vidro de tinta violeta, inscrevi na capa: Caderno de Romances. O primeiro que levei a cabo intitulei: Por Uma Borboleta. Um sábio, sua filha e um jovem explorador atlético subiam o curso do Amazonas à caça de uma preciosa borboleta. O argumento, as personagens, o detalhe das aventuras, o próprio título, eu tomara a uma história de quadrinhos que aparecera no trimestre precedente. Esse plágio deliberado me livrava de minhas últimas inquietações: tudo era forçosamente verdadeiro, visto que eu não inventava nada. Eu não ambicionava ser publicado, mas dera um jeito de ser impresso antecipadamente e não traçava uma só linha que meu modelo não caucionasse. Considerava-me eu um copista? Não. Mas sim autor original: eu retocava, remoçava; por exemplo, adotara o cuidado de trocar os nomes das personagens. Essas ligeiras alterações me autorizavam a confundir a memória e a imaginação”.

Nestas poucas linhas está sintetizado o nebuloso espírito autoral que envolve aqueles tipos de literatura popular. O escritor de “pulp fiction” vê os textos alheios como partes do mundo real; copiá-los lhe parece tão legítimo quanto copiar a vida. Ele tem a visão pura de um menino de 12 anos, para quem a emoção de escrever uma história é tão empolgante que o fato de estar copiando uma história já existente torna-se secundário. O estrato médio de qualquer literatura surge deste nosso impulso de reescrever ao nosso modo as histórias alheias que nos emocionaram para sempre numa quadra vulnerável de nossa vida. Vejam só quantos rubens-fonsecas, quantos daltons-trevisans, quantos paulos-francis abrilhantam hoje as vitrines de nossas livrarias.

Todo mundo começa por copiar, como os alunos das escolas de Belas Artes; o copista de talento acaba às vezes por produzir um estilo próprio. E a “pulp fiction”, o folhetim, a telenovela, são um ambiente em que esse regurgitamento permanente de temas e enredos é necessário para que o mecanismo continue rodando, e para que autores e público redescubram no “novo”, com alívio, os traços de velhas histórias já conhecidas, das quais tinham saudade.

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