sábado, 9 de janeiro de 2021

4662) "Mank" e a via-crucis dos roteiristas (9.1.2021)




 
O filme Mank (2020) de David Fincher, em exibição no Netflix, conta a verdadeira via-crucis que foi a escritura do roteiro inicial do filme Cidadão Kane por Herman Mankiewicz, por encomenda de Orson Welles.
 
Era a época dos grandes estúdios comandados por milionários: Samuel Goldwyn, Louis B. Mayer, Adolph Zukor, David O. Selznick, Harry Cohn, Darryl F. Zanuck e muitos outros. Cada um com um perfil diferente, uma cabeça diferente, mas todos “virados num traque” para criar a gigantesca máquina de fazer dinheiro que foi o subúrbio losangelino chamado Hollywood.
 
Esses produtores eram geralmente, como tantas vezes acontece em variadas indústrias,  migrantes de origem, workaholics, intuitivos, sem nenhuma sofisticação intelectual, mas vinham de uma camada mais ou menos popular (pelo menos na geração dos seus pais) e compreendiam intuitivamente o gosto popular, seus valores, seus preconceitos, suas fantasias, suas limitações.
 
Erravam muito, acertavam muito, ganhavam fortunas, perdiam fortunas, e tenho hoje pra mim que ler a história de suas vidas e de suas realizações não é menos interessante do que ler as vidas e realizações de Jean-Luc Godard ou Luís Buñuel. Era uma indústria cultural em formação, e quem a formou em grande parte foram esses produtores, truculentos, atrevidos, avarentos, limitados, ansiosos, capazes de mancadas homéricas e de iluminações de gênio. Não é fácil investir na criatividade de um artista quando não se tem, como eles, condições intelectuais de entender com segurança o que aquele artista faz.

Não era muito fácil a um produtor assim compreender o que se passava na cabeça de pessoas como Herman Mankiewicz ou Orson Welles.



Herman Mankiewicz era um típico roteirista hollywoodiano, com origem na imprensa escrita e sua tradição de escrever com rapidez e vivacidade. Cheio de energia, de leituras vastas e desorganizadas, memória de elefante, grande improvisador, o rei da resposta rápida e da língua ferina. Pontificava no meio de um grupo de “gatilhos rápidos” mostrados en passant no filme, como Ben Hecht e S. J. Perelman.
 
O lado B de Mank, fartamente descrito e comentado no filme, eram a bebedeira e o vício no jogo, que se juntaram para sabotar sua carreira e matá-lo precocemente aos 55 anos.
 
Mank conta a criação do roteiro de Cidadão Kane do ponto de vista dele, e não do de Orson Welles, cujo ego crescia na razão direta do quadrado de sua circunferência abdominal. A briga dele e de Mank sobre “quem afinal escreveu o roteiro do filme” está documentada, pelo que sei, em dois textos opostos.

 
A favor de Mank há o ensaio de Pauline Kael “Raising Kane”, 1971 (no livro Criando Kane, 2000, Ed. Record, trad. Marcos Santarrita), cuja leitura aconselho independentemente dessa questão (que hoje é uma questão menor). Contra ele, a resposta (que dizem ser furibunda; não li) de Peter Bogdanovich, que toma o partido de seu amigo Welles no artigo “The Kane Mutiny” (1972).
 
Aqui, uma entrevista de Bogdanovich onde ele questiona o artigo de Kael (e, por tabela, o roteiro do filme de Fincher):
 
https://decider.com/2020/12/10/peter-bogdanovich-who-really-deserves-credit-for-citizen-kane/
 
Bogdanovich tem um argumento irrespondível: “Orson reescrevia as peças de Shakespeare, por que não reescreveria um roteiro de Mank?...” Em todo caso, o filme é ótimo quando mostra o derradeiro grande esforço e a derradeira grande obra de um homem talentoso e decadente. Durante os meses em que esteve preso à cama, com a perna e o quadril no gesso devido a um acidente de carro, Mank escreveu o roteiro de Cidadão Kane, ou pelo menos a primeira versão dele. Segundo Pauline Kael, o roteiro entregue por Mank após três meses (engessado na cama e bebendo uísque escondido) tinha 325 páginas, e o roteiro final de filmagem usado por Welles tinha 155.
 
É essa a história do filme: um homem famoso e alcoólatra de 42 anos escrevendo um roteiro para o filme de estréia de um diretor “menino prodígio” de 25.



O mais impressionante em Mank são as condições em que ele escreveu o roteiro que resultou num grande filme. Welles mexeu? Sem dúvida, mas Welles também reconheceu a contribuição de Mank. Bêbado, dopado de remédios, todo engessado em cima de uma cama, num rancho afastado no meio do deserto (para não sofrer distrações), vigiado o tempo todo por uma secretária e uma enfermeira...
 
“Uma das coisas que mantinham os amigos de Mank fiéis a ele,” disse Welles anos mais tarde, “era a sua tremenda vulnerabilidade. Ele gostava de toda a atenção que recebia por ser aquela grande, aquela monumental máquina de auto-destruição.”



As condições de trabalho de Mank para escrever Kane me trouxeram à lembrança os relatos de um trabalho parecido, mas mais obscuro, realizado poucos anos depois, e também sob a supervisão do polêmico John Houseman (o “vigia” de Mank). Foi a criação do roteiro de Blue Dahlia por Raymond Chandler, ao que parece a única história de Chandler criada diretamente para o cinema.



 
Chandler estava ganhando 1.000 dólares por semana, em janeiro de 1945 (seriam cerca de 14 mil dólares hoje), para fazer esse roteiro. O estúdio estava em pânico porque as filmagens já tinham começado e o astro principal, Alan Ladd, estava com data marcada para ir lutar na guerra. Estavam rodando um filme caro sem saber como ia terminar, porque Chandler estava criando a história em ordem cronológica (e começou a escrever – era uma história de mistério policial – sem saber quem era o criminoso).
 
A tensão foi se acumulando e Chandler bebendo. O estúdio, em desespero, ofereceu um bônus de 5 mil dólares se ele entregasse o roteiro a tempo. Um final que ele conseguiu armar para a história mostrava o criminoso como sendo um veterano de guerra, e a censura da época não gostou. Voltaram à estaca zero. Chandler bebia cada vez mais e escrevia cada vez menos.
 
Deixou de ir escrever no estúdio e exigiu trabalhar em casa (o que era contra o rígido regulamento dos produtores). Duas limusines ficavam de plantão na rua, para levar as páginas que ele escrevia, além de ir buscar médicos e enfermeiras para ele e para sua esposa Cissy (que tinha uma doença pulmonar grave e era semi-inválida).
 
Tom Hiney, em sua biografia de Chandler, diz que a rotina diária de trabalho era assim. Chandler enchia a cara de uísque. Perdia os sentidos. Acordava. Tomava uma injeção de estimulante. Ditava alguns diálogos do filme. Perdia os sentidos novamente.
 
O biógrafo de Billy Wilder, Maurice Zolotow, afirmava que esse esquema criado por Chandler foi “uma farsa de tal ousadia e tal genialidade que velhos roteiristas ricos contam essa história até hoje cheios de admiração, enquanto bebericam seus martinis nos fins de tarde no pátio de sua mansão em Brentwood.”
 
O filme ficou pronto, o roteiro foi indicado ao Oscar,  Chandler embolsou uma verdadeira fortuna – e aí foi que bebeu mesmo.





Vale a pena ficar rico, e viver assim?
 
Comentando a obra de Mankiewicz, Orson Welles lembrou a Peter Bogdanovich a cena em Citizen Kane na qual um velho jornalista, Bernstein, conta a visão fugaz que teve, muitos anos atrás, de uma moça, ao cruzar o rio Hudson numa balsa. Ela estava com uma sombrinha branca, não chegou a avistá-lo, mas, dizia ele, “em todos estes anos não houve um dia sequer que eu não me lembrasse dela.”
 
“Isto é Mank,” disse Welles, “e este é meu momento preferido no filme inteiro.”
 
 
 
 





quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

4661) Leituras de 2020 -- parte 4 (6.1.2021)



O melhor livro sobre cinema que li este ano não é um ensaio, é um romance metalinguístico: Suspects (1985) de David Thomson. O livro foi traduzido no Brasil (Marco Zero, 1992, trad. Luiz Eduardo Mendonça). O gimmick metalinguístico é o seguinte: Thomson fez uma seleção de 58 filmes, geralmente do gênero “policial noir”, e conta a vida inteira de personagens extraídos desses filmes, revelando muito mais sobre eles do que a gente poderia imaginar, e criando uma trama de crime em que todos estão envolvidos. A prosa de Thomson é excelente, e nem é preciso ter visto os filmes para apreciar a sutil arquitetura de crimes, traições e conspirações com que ele amarra títulos que vão desde O Iluminado de Kubrick a Casablanca de Michael Curtiz, desde Rebecca de Hitchcock até Pacto de Sangue de Billy Wilder.
 
Aqui, comentei o filme com mais detalhes:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/06/4593-os-habituais-suspeitos-2562020.html
 
Algumas das minhas leituras mais demoradas não são de romances, mas de livros de ensaios – livros que por sua própria natureza abrem transversais de consulta que fazem o leitor avançar devagar, porque a cada página surgem nomes ou temas que despertam nossa curiosidade.


Daí a minha demora em terminar o extraordinário Phantasmagoria (2006) de Marina Warner. Como descrever esse livro? É um ensaio sobre as múltiplas formas de visualização do imaginário, aqui incluído o mundo sobrenatural. Cada capítulo aborda um tema: “Cera”, as máscaras mortuárias, representações de santos, museus de cera; “Ar” e “Nuvens”, o espaço aéreo conforme representado nas lendas e nas artes plásticas como o meio onde se deslocam criaturas etéreas; “Luz” e “Sombra”, os recursos ópticos que produzem imagens (lanternas mágicas, etc.); “Espelho”, os múltiplos atributos culturais do reflexo, do “duplo” etc.; “Fantasma”, as pesquisas para-científicas do século 19 sobre aparições de espíritos; “Éter”, a natureza das ondas (rádio, TV, etc.) e o modo como foram encaradas na literatura e na arte; “Ectoplasma”, uma discussão específica sobre essa polêmica “matéria de que os espíritos são feitos”; e “Filme”, o surgimento da fotografia e do cinema como um resultado de todo esse longo processo.
 
No ano que vem farei mais comentários, porque pretendo reler as 450 páginas da prosa culta e elegante de Marina Warner. 


Outra ensaísta com quem me identifico é Flora Sussekind, de quem este ano reli o precioso Cinematógrafo de Letras – Literatura, Técnica e Modernização no Brasil (Cia. Das Letras, 1987). Flora rastreia a presença das novas técnicas de criação e reprodução (fotografia, radiofonia, discos de fonógrafo, telefone, cinema, etc.) na literatura brasileira da época, incluindo aí a prosa de ficção, o jornalismo, a poesia, a crônica, as correspondências... É fascinante ver a enorme variedade de reações dos nossos escritores diante dessas novidades high-tech: surpresa, desconfiança, adesão entusiástica, desdém satírico, contemplação abismada...
 
Foi um livro que li em sua época de lançamento, pesquisando pistas sobre nossa literatura de FC, e relendo agora encontrei ali muitas das atitudes da época pós-Internet, esse misto de atração e repulsa que exercem sobre nós (que vivemos da mera palavra!) essas tecnologias aparentemente todo-poderosas.


Numa direção totalmente oposta, a do passado mítico e inatingível, vai outro livro que me parece essencial para quem pesquisar literatura fantástica brasileira: Esquecidos por Deus – Monstros no Mundo Europeu e Ibero-Americano (séculos XVI-XVIII) de Mary Del Priore (Cia. Das Letras, 2000). Como se sabe, é extremamente farta (e contraditória) a documentação sobre criaturas monstruosas encontradas nesse período por navegadores, viajantes e exploradores de recantos remotos do mundo. Numa época onde qualquer viajante se deparava com hábitos, paisagens, objetos, seres e rituais que não cabiam na sua moldura cultural, eram muito frequentes a má-interpretação, a confusão, o exagero, o ruído na transmissão de experiências, e assim por diante. (O exemplo clássico é a lenda do centauro: ao ver um homem montado num cavalo, coisa que não se praticava em seu país, alguém interpretou aquele ser como um monstro híbrido.)
 
Mary Del Priore comenta os monstros registrados pela História no quadro dos pressupostos zoológicos, religiosos e mitológicos dos homens que fizeram esses relatos. É também muito importante a rede de conexões que ela estabelece dentro da iconografia (é vastíssimo o repertório de desenhos e gravuras sobre essas criaturas monstruosas), mostrando como textos copiavam (=plagiavam) textos, gravuras copiavam gravuras, ilustrações de um manuscrito eram furtadas para ilustrar relatos de natureza totalmente diversa, etc.
 
Era um sistema de fake news onde nem sempre havia a intenção de mentir ou falsificar, e ocorria muitas vezes apenas o entusiasmo ingênuo de passar adiante uma informação sensacional cuja veracidade não era confirmada (e às vezes não podia mesmo ser). A história dos monstros é, na verdade, a história da imaginação dos que se dedicavam a eles.


Ainda nessa praia, tenho que registrar o obrigatório Fantástico Brasileiro – O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo (2018) de Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares. É um levantamento precioso da literatura fantástica brasileira em suas vertentes principais (ficção científica, horror, fantasia), vendo suas origens em alguns pressupostos do Romantismo do século 19 e vindo até o momento atual onde os autores identificam “o Fantasismo”, nome que propõem para o movimento atual de autores que se movimentam com facilidade entre aqueles três gêneros.
 
Para quem quiser checar o estado contemporâneo da ficção fantástica entre nós, é um livro indispensável, pela quantidade de autores e obras que recebem avaliações breves mas objetivas. O folclore, a literatura infanto-juvenil, as entidades e os eventos; tudo isso recebe atenção e se articula à massa da obras literárias propriamente ditas. Obra de referência obrigatória, para ter sempre à mão, na estante.
 
Na literatura fantástica, li alguns romances notáveis este ano.



Exquisite Corpse (1995) de Robert Irwin (no Brasil, Jogos Surrealistas, Record, 1998, trad. Alda Porto) tem como tema o movimento Surrealista dos anos 1920-30, desta vez sob a ótica dos escritores e artistas de Londres, não de Paris. Robert Irwin é autor de The Arabian Nightmare (1983), um pesadelo fantástico no espaço interior da mente e do sonho, e de The Arabian Nights: a Companion (1994), o melhor livro de referência que conheço sobre As Mil e Uma Noites.
 
O romance usa o conceito surrealista do “amor louco” (“amour fou”), “amor de louco contra louca” como dizia Paulo Vanzolini, explorado por André Breton na poesia e Luís Buñuel no cinema. O narrador, Caspar, é um pintor londrino que se apaixona surrealisticamente por Caroline, uma secretária de mentalidade simples e prática. Esse casal impossível vive uma porção de aventuras até que Caroline rompe e desaparece; Caspar faz as bobagens de sempre, é internado num manicômio, mas vem a II Guerra, e os fatos se sucedem enquanto ele tenta abrir caminho num mundo mais fantástico do que os quadros que pinta.
 
Irwin mescla seu romance com inúmeros nomes e pequenos fatos reais. Caspar e os outros artistas da “Serapion Brotherhood” soam autênticos em seu surrealismo meio ingênuo, meio suicida. As experiências de Caspar numa viagem à Alemanha nazista fazem um paralelo incômodo entre o Reich e o Surrealismo, dois movimentos que brincaram de maneira um tanto imprudente com energias negativas profundas.


Também inglês mas mais alegre, lúdico e cheio de vitalidade é Nights at the Circus (1984), de Angela Carter, uma escritora de quem se pode pegar qualquer livro de olhos fechados e ler com os olhos bem abertos. É a história de Sophie Fevvers, uma mulher alada que trabalha num circo (sim, ela tem asas e voa de verdade), e do jornalista que ao entrevistá-la (na primeira parte do romance, 90 páginas de uma narrativa brilhante que transcorre ao longo de uma noite) se apaixona por ela e literalmente “foge com o circo”. Há tradução brasileira (Rocco, 1991, trad. Claudia Martinelli).
 
Mais comentários aqui sobre o livro de Angela Carter:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/09/4619-noites-no-circo-de-angela-carter.html
 
Muita gente não sabe que Salman Rushdie, o autor de Os Versos Satânicos, estreou com um romance de ficção científica, concorrendo a um prêmio oferecido pela editora Gollancz, dos livros amarelos de FC que tanto li na antiga biblioteca da Cultura Inglesa, na av. Graça Aranha. Ao que se diz (Wikipedia), o júri, formado por Brian Aldiss, Arthur C. Clarke e Kingsley Amis, elogiou o livro e recomendou-o ao prêmio, mas a editora não quis, porque a história não tinha nada a ver com o tipo de FC que eles queriam colocar no mercado.


De fato, Grimus (1975) é tudo menos uma FC convencional, e só pode ser relacionado ao gênero porque sua narrativa envolve imortalidade, viagem por universos paralelos (chamados de Dimensões Exteriores, etc.) e a existência de seres de outros planetas que se locomovem no espaço-tempo. Não importa. É uma narrativa de estrutura mítica, uma quest ou demanda onde um jovem índio norte-americano, Flapping Eagle, adquire a imortalidade através de uma beberagem (como o “imortal” de Machado de Assis) e depois sai pelo mundo à procura de quem possa desfazer o prodígio.
 
Rushdie tem o dom da prosa fluida, do humor sardônico, da imaginação lúdica; leitores de FC que costumam exigir coerência científica ou lógica devem passar longe deste livro, que é uma ótima aventura literária absurdista.

 
Numa outra ponta do espectro, registro o díptico Angels & Insects (1992), duas “novelas” de A. S. Byatt reunidas num só volume. (Há edição brasileira, Anjos e Insetos, Cia. Das Letras, 1994, trad. Celso Nogueira.) Em ambas, o fantástico e a ciência (no caso, a ciência do século 19) avançam às cegas e de mãos dadas. A prosa brilhante de Byatt mais de uma vez me despertou a vontade de ler seu clássico romance Possession (1990), que já vi no cinema.
 
A novela “Morpho Eugenia” fala de um jovem entomologista recém-chegado da África que se casa com a filha de um cientista ilustre, e percebe aos poucos ter entrado num ambiente de hábitos estranhos e inexplicáveis. “The Conjugial Angel” mostra um grupo de pessoas de meia idade que costumam realizar sessões espíritas e invocar as almas dos seus mortos. Uma das personagem é real, a irmã do “Poeta Laureado” Alfred, Lord Tennyson. Personagens históricos e fictícios, ectoplásmicos e de carne-e-osso se misturam nessa narrativa. Alguns trechos que acompanham a atividade mental da médium, Sophie Sheekhy, são notáveis na recriação puramente verbal de um estado alterado de consciência em que pessoas vivas e mortas parecem coexistir num mesmo plano de percepção mútua.
 
 
(continua nos próximos dias)





 









domingo, 3 de janeiro de 2021

4660) Entrevistas Transcendentais: Augusto dos Anjos (3.1.2021)




O caminho da Estação Ferroviária de Leopoldina até a casinha modesta cuja foto conduzo não é muito longo, e faz-se a pé, passando por uma ou outra ladeira para lembrar que estou de volta a Minas. São cerca de três horas da tarde. O sol doura em diagonal os telhados, o campanário de uma igrejinha próxima, os pés de castanhola que enchem a calçada de frutos escurecidos e folhas.
 
Sigo pela rua estreita e com pouco movimento àquela hora. Creio que consigo captar um pouco da lentidão e de uma certa apatia das cidades interioranas ainda não violentadas pelo progresso do tempo em que nasci.
 
A casa tem uma porta e duas janelas à frente, teto agudo. Paro diante do portão e bato palmas. Ele aparece, com o terno branco e a gravata bem composta de quem espera visitas. Vem abrir-me o portão. Sua mão é magra e firme, embora um pouco trêmula. O bigode fino é bem cuidado. Mantém-se empertigado e gentil. 

Entramos no corredorzinho estreito, e dali para a sala do lado esquerdo. Sentamos em cadeiras de palhinha. D. Ester, a esposa, traz uma bandeja com suco de maracujá, biscoitos, fatias de queijo bem arrumadinhas.
 
BT – Professor Augusto, espero que não se incomode se eu usar este tratamento.
 
AA – Pelo contrário. Ser professor é uma das minhas alegrias, e o digo com orgulho. Não desejaria outro título se não este.
 
BT – O senhor é uma pessoa que soube conciliar a atividade profissional e a prática da poesia, sem prejuízo de nenhuma das duas.
 
AA – Espero ter conseguido. Nem sempre foi fácil. Na Paraíba, deparei-me muitas vezes com alunos esforçados mas absolutamente sem preparo, sem qualquer base sequer para entender as matérias que me solicitavam. Depois que cheguei ao Rio de Janeiro, o problema era conseguir alunos, visto que eu era jovem e totalmente desconhecido. O processo didático, portanto, ocorria numa moldura de infindáveis contratempos, mal-entendidos, adiamentos, tensões de toda ordem. Mas, abstraindo este aspecto, sempre vi com esperança o ato de ensinar. Não há experiência mais reconfortante do que ajudar uma pessoa a pensar por si mesma, e a manejar com segurança conceitos que pouco tempo atrás lhe eram estranhos.
 
BT – E a poesia? Escrever poesia era uma ação fluente?
 
AA – Nunca o foi. Criou-se em torno de mim, talvez pelo entusiasmo dos amigos mais generosos, a idéia de que eu compunha de memória os meus poemas mais longos. Na verdade eu não o fazia por inteiro. Sempre gostei de compor meus versos em pensamento, revisando-os sem parar, repetindo-os em voz alta, andando pelo quarto. Quando tinha uma quadra completa, com todos os senões expurgados, então sim, eu me sentava à mesa, tomava pena e papel e a copiava por escrito. E repetia o processo até me dar por satisfeito.
 
Ter-me-ia sido impossível compor mentalmente, por inteiro, os meus poemas longos. Já um soneto... sim, um soneto é possível.
 
BT – Acho que, entre tantos elementos que impressionam os seus leitores, a sonoridade das frases é um dos que mais pesam.
 
AA – Espero que sim, porque sempre vi isso na grande poesia clássica, em Homero, em Dante, em Virgílio. A poesia, refiro-me à grande poesia, à qual sempre aspirei, precisa de uma dicção elevada, próxima à dos cânticos religiosos. Há que existir nela uma sonoridade que se imponha por si mesma, antes mesmo que o sentido das palavras seja percebido.



(pintura de Flávio Tavares)
 
BT – O senhor deve ter percebido, professor Augusto, na documentação que enviei para solicitar este nosso encontro, que me referi ao termo “ficção científica”, como um dos meus campos de estudo. Reconhece esta expressão? É do seu tempo?
 
AA – Não, não creio tê-la encontrado antes. Por outro lado, no meu tempo falava-se em “poesia científica”. Era termo corrente, embora sem muito destaque, quando estudei na Faculdade de Direito, no Recife. Foi usado, por exemplo, pelo grande Martins Júnior, que foi uma influência para todos da minha geração, para descrever sua própria poesia. Um homem culto, vibrante, eloquente, com quem convivi a certa distância, mas sempre com muita admiração. Ele nos abriu muitas portas, foi um dos que me convenceram de que a poesia poderia perfeitamente suportar o peso dos conceitos e das idéias propostas pela ciência.
 
BT – Em sua época isso era algo até chocante, durante o predomínio absoluto do Parnasianismo, com suas imagens colhidas na mitologia grega, na antiguidade clássica, no mundo medieval...
 
AA – Imagens às quais eu próprio não me furtei, pois as admirava, e isso pode ser facilmente constatado em minhas obras. Tenho grande apreço por sonetos como “Vandalismo” ou “Vencedor”, que num exame apressado muitos não considerariam típicos da minha temática.
 
Por outro lado, acreditava e ainda acredito que muitos poetas trazem consigo, além de um vocabulário, uma visão, um ponto de vista intensamente pessoal sobre o seu mundo. Foi isso que tentei realizar, com humildade, mas com persistência. Se o consegui ou não, não me compete dizer. Em todo caso, senti que o campo da ciência e da filosofia poderiam muito bem expandir-se para o interior do campo da poesia, sem prejuízo de qualquer delas, pelo contrário, com um influxo positivo de percepções e de abstrações de nível mais elevado.
 
BT – O que me diz da ciência no mundo de hoje? Correspondeu às suas expectativas, superou-as, decepcionou-as?
 
AA – Jamais cultivei pretensões precognitivas, de modo que minha curiosidade é grande mas minhas surpresas são poucas. Aceito o que o tempo e o destino nos impõem. Em todo caso, eu chamaria sua atenção, se me permite, para um aspecto em que o seu mundo se distingue do meu.
 
As cidades em que vivi eram precaríssimas em termos de solidez material, de limpeza, de higiene, de saúde. Sei que seus contemporâneos têm muito com que se preocupar; mas, em meu tempo, nossos terrores eram a tuberculose, a lepra, o cancro, a varíola, as sempre renovadas gripes. As ruas eram esgotos a céu aberto. A higiene pessoal era precária, e quando doenças nos acometiam, recebíamos os mais abstrusos receituários de preparados químicos para serem aplicados na pele, nos olhos, nos órgãos em geral. As casas tinham mau cheiro e enchiam-se de insetos.
 
Observando à distância, conforme me é dado, as condições de vida da sua época, percebo que houve uma mudança salutar, em todos os sentidos do termo. Infelizmente uma tal mudança não é acessível a todos, e nas periferias e nos casarios dos miseráveis vive-se ainda em condições sanitárias de um século atrás. É como se o futuro tivesse chegado, mas não para todos.

 
BT – O senhor falava em seus versos sobre assuntos que eram proibidos aos poetas, em nome do bom gosto e das boas maneiras. Talvez essa sua visão crítica tenha contribuído que que o chamassem “o Poeta da Morte”.
 
AA – O que é em parte uma injustiça, pois se me perdoa a pouca modéstia, eu me classificaria como “o poeta do ciclo da morte e vida”, pois aos meus olhos os dois fenômenos estão inextricavelmente ligados, fazem parte de um só processo. “Poeta da evolução universal”, talvez, se isso não soasse grandiloquente demais.
 
BT – E a Paraíba? Dizem que o senhor saiu de lá magoado, e pediu para não ser enterrado naquele solo.
 
AA – Todos nós somos sujeitos a reações emocionais, a nevroses, a atitudes impulsivas que às vezes contradizem de forma cabal os ideais mais elevados que cultivamos. Tenho amor à Paraíba. Aquela terra é o húmus que alimentou minhas células desde a fase embrionária, considero-me parte dela. Tenho amor àquele povo, principalmente àquelas pessoas mais modestas, homens e mulheres anônimos e de pés descalços que velaram pela minha infância. Sabem ser solidários nos momentos de aperreio, vivem frugalmente por terem a percepção intuitiva de que não é via acúmulo de bens materiais que evoluímos, e sim no aperfeiçoamento de nossa disposição de espírito e no modo como ele se revela no trato com os nossos semelhantes.
 
BT – Não guardou mágoas, então.
 
AA – Não! Como poderia? Sou uma parte da Paraíba, sou feito daquela terra rica do meu engenho, e nunca o constatei tanto quanto ao chegar no Rio de Janeiro, com a ambição de ser reconhecido, ali, como um igual. E percebi logo que meu modo de trajar, de falar, de agir, provocava em todos um estranhamento imediato. Se um dia visitar minha sepultura, como o fazem muitos que aqui vêm, pode considerar aquela pequena campa um pedaço de terra paraibana. Dar-me-á alegria se o fizer.
 
BT – Por outro lado, parece que sua integração aqui em Leopoldina se deu de maneira mais harmoniosa. Excetuando alguns episódios talvez, que nem sei se são verdadeiros. Fala-se que as pessoas riam dos seus poemas...
 
AA – Leopoldina acolheu a mim e a minha família de coração aberto, foi um facho de luz em nossa vida. Quanto a esse episódio, é mais um exemplo de pequenas lições que a vida nos dá, sem nos aplicar a nulificação protetora de um anestésico. O fato é que certa noite, ao regressar para casa na hora da ceia, passei diante da residência de alguns conhecidos, e como a janela era próxima à calçada ouvi vozes lá dentro, e reconheci versos meus sendo recitados em voz alta. Entreparei para escutar, não sem um certo assomo de vaidade, e logo recebi o consentâneo castigo quando ouvi o trovejar de gargalhadas e de motejos que se seguiu. Paciência. Tenho, se me desculpa a pretensão, uma compreensão superior do mundo. Em momentos assim, creio ser a mim que cabe, na medida dos valores que me foram repassados e que procurei cultivar, tudo compreender, e perdoar o que for possível.
 
BT – Perdoou a Paraíba, então.
 
AA – Há muito tempo. Mas, o senhor que vai lá com certa frequência, o que me diz dela? Está muito mudada?
 
BT – É a mesma do seu tempo, e trocou de roupagem apenas. Continua a ser uma vasta propriedade rural administrada por um certo número de famílias alternadamente aliadas e antagonistas.
 
AA – Entre as quais, com toda certeza, umas estão minguando, e outras em franca expansão. Quer melhor comprovação da minha percepção da morte e da vida? As mangas e os cajus que não são colhidos caem e apodrecem no chão, e se desfazem em elementos químicos que por sua vez vão alimentar a relva e a própria árvore de onde vieram. As formas vegetais e animais são visões fugazes que temos de um lento processo de deterioração e renascimento.
 
BT – Sempre tive esta impressão diante de seus versos. Os outros poetas acham bonito o desabrochar de uma flor. O senhor vê beleza tanto no seu desabrochar quanto no seu
apodrecimento.
 
AA – A beleza está na dinâmica do processo transformativo. A ciência nos deu novas maneiras de enxergar. O microscópio pode nos revelar novas belezas, o telescópio, o espectroscópio. As transformações rápidas do mundo animal e vegetal, as transformações lentas do mundo mineral, tudo isso nos mostra um universo capaz de criar suas próprias leis e de segui-las. Como não se maravilhar diante de uma orquestração de efeitos tão vasta, e ao mesmo tempo tão perfeita em cada minúcia?
 
Despedimo-nos com novo aperto de mão. Da calçada, faço um aceno para D. Ester, que está à janela, com as duas crianças debruçadas ao seu lado, silenciosas, olhos grandes e atentos. Ele põe as mãos para trás, faz uma breve curvatura, formal, de despedida. Saio caminhando no friozinho de fim de tarde, rumo à estação ferroviária, e ao trem particular que está vazio à minha espera.
 



(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 
 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

4659) Leituras de 2020 - parte 3 (1.1.2021)




Jorge Luis Borges dizia que só devemos ler por prazer, e se a leitura de um livro, mesmo o mais respeitável clássico, nos entedia, devemos largá-lo e pegar outro. Isso serve para o que chamo de leituras pessoais. Existem também as leituras de trabalho, os livros que preciso ler, goste ou não. Quando estou pesquisando algum tema especificamente literário, não me basta ler sobre o autor, preciso ler o que ele escreveu, por pior que seja.
 
Existem livros cuja leitura flui, e outros que não. Há livros que já peguei para ler mais de dez vezes, ao longo dos anos, e não consegui. São ruins? Não, muitos deles são clássicos da literatura, obras-primas indiscutíveis. Outros são de meus autores preferidos, mas cuja escrita, nesse título especificamente, não conseguiu me arrastar.
 
Outros são de amigos, e nada nos deixa com mais remorsos do que tentar ler o livro de um amigo e não conseguir. (Imagino que meus próprios livros já proporcionaram a alguém essa frustração; peço desculpas, e compreendo.)
 
Abaixo, comento alguns dos livros lidos em 2020 cuja leitura fluiu sem problemas. Outra coisa: nas minhas anotações, computo apenas os livros que li do começo ao fim. Mesmo livro de contos, artigos, poemas, etc., se só li uma parte, não anoto.


Peguei, apenas para consultar, as Memories and Adventures (1924) de Sir Arthur Conan Doyle. Um dos meus autores preferidos, e um livro que eu tinha há mais de vinte anos e até agora tinha achado a leitura chata. Desta vez, durante a consulta, acabei voltando ao início e não parei mais. Doyle é um inglesão à moda antiga, sólido, prático, patriota, tradicional. No livro, comenta várias de suas obras; repito que seus romances históricos e de FC são literariamente superiores aos livros de Sherlock Holmes.
 
Doyle comenta a certa altura que havia o hábito de serializar romances nas revistas semanais ou mensais, mas o lado negativo disso era que quando o leitor perdia um número ficava com uma lacuna na leitura. Ele considera ter sido o primeiro autor (e The Strand o primeiro periódico) a utilizar de forma deliberada o formato da série de aventuras semelhantes com um mesmo personagem, onde cada publicação contém uma história completa em si – o que ele e a revista puseram em prática a partir de 1887, com as aventuras de Sherlock e Watson.


Outra autora favorita é Ursula Le Guin, de quem li este ano dois títulos. The Other Wind (2001) é o quinto volume da série “Earthsea” a respeito deste arquipélago e da escola de magos de Roke Island. É um romance crepuscular, o último da série, pelo que entendo, em que os Magos e os Dragões de Terramar têm que firmar um pacto que envolve a aceitação da morte. Tales of Earthsea (2001) contém cinco histórias com episódios variados do ciclo, abrindo com “The Finder”, uma notável noveleta descrevendo como foi fundada a escola dos Magos, em Roke.


De outro autor que admiro muito, Stanislaw Lem, li o livro de memórias Highcastle: a Remembrance (1966), centrado na sua infância. Lem é um dos autores mais intelectuais da FC e está para a Polônia assim como Borges está para a Argentina. Sua obra gigantesca é parcialmente traduzida em inglês, e só uma dúzia de romances em português. Highcastle mostra a vidinha comum de um garoto de classe média em Lvov. São especialmente ácidos os seus comentários sobre as preparações militares dos adolescentes poloneses, ensaiando ordem-unida e exercícios militares com bastões em vez de rifles, até a invasão nazista em 1939.
 
Lem fala pouco sobre ficção científica (sobre a qual ele discorre longamente em coletâneas de ensaios como Microworlds (1984). Seu retrato de infância e adolescência entre-guerras é cheio de percepções sagazes e mostram como funciona sua mente observadora, metódica, ousada, ao mesmo tempo de grande objetividade e grande imaginação.



Por falar em ciência, uma leitura importante foi a de Sapiens (2012) de Yuval Harari, um best-seller recente que vem na linha dos grandes livros de Carl Sagan, Arthur C. Clarke ou Fritz Kahn (cujo O Livro da Natureza iluminou meus verdes anos). Harari dá uma geral na evolução da humanidade, e é muito importante a Parte 1, sobre a Revolução Cognitiva. O modo como a espécie humana criou os softwares de interpretação e modelagem da realidade, acompanhado pela linguagem, é uma coisa espantosa. A gente fala no Fogo, na Roda, etc., mas essa revolução que não deixou rastros físicos diretos foi a coisa mais fascinante.
 
O livro poderia se chamar “História da Inteligência Humana”, porque Harari expõe, com linguagem clara e simples, o quanto a civilização é uma ficção coletiva. Ele fala nas ficções jurídicas, nas ficções financeiras, nas ficções ideológicas, nas ficções empresariais. Nada disso tem existência concreta além das ações das pessoas que acreditam nelas. A civilização é um simples conjunto de narrativas (o termo está meio batido hoje; quem tiver um melhor, traga).
 
Na verdade, vivemos numa Matrix que não tem existência física, mas cuja existência abstrata é consenso de bilhões de pessoas que acreditam em Deus, em democracia, em dólar, em amor, em arte, em indivíduo... Alucinações coletivas (diria Philip K. Dick); Harari louva a capacidade do ser humano em “transmitir grandes quantidades de informação sobre coisas que não existem de fato, tais como espíritos tribais, nações, companhias de responsabilidade limitada e direitos humanos”.


Um romance de ficção científica que me impressionou foi Triton (1976) de Samuel R. Delany, um dos meus autores favoritos. Ele tem o subtítulo “Uma Heterotopia Ambígua”, e a ação transcorre quase toda numa lua de Júpiter, colonizada artificialmente, durante uma época de guerra.
 
Bron Hellstrom, o protagonista, é um funcionário mediano na administração local e se envolve com um grupo vanguardista de teatro-de-rua comandado por Spike, uma jovem atriz e dramaturga. Do encontro dos dois começam a sair fagulhas, porque acompanhando as ações de Bron durante as quase 400 páginas do livro vemos o delineamento da personalidade de um sujeito egocêntrico, determinado, inseguro, ousado, bem intencionado, catastroficamente desastroso em seus relacionamentos interpessoais.
 
Delany descreve com a riqueza de detalhes habitual a vida nessa ambiente high-tech, os hábitos, as roupas, as comidas, as práticas cotidianas: seus livros têm uma atenção sociológica constante ao recriar um mundo onde, aliás, as pessoas fazem cirurgias transexuais como nós aqui fazemos uma tatuagem.



Li alguns romances policiais importantes neste ano. Entre eles, um clássico que há anos eu tinha na fila: Death From a Top Hat (1938) de Clayton Rawson, um dos mestres do “crime impossível”. É o romance de estréia de Rawson e tornou-se um clássico, por ser o livro que explorou de maneira mais complexa (e cheia de reviravoltas inesperadas) a proximidade entre o romance policial e a magia de palco, com seus truques mecânicos e suas ilusões perceptivas.
 
Rawson introduziu neste livro O Grande Merlini, um mágico novaiorquino que se torna detetive para competir com criminosos que – no presente caso – estão assassinando os participantes de uma “grande noite” promovida pela Society of American Magicians. Não preciso dizer que cada um dos crimes é cometido da maneira mais complexa possível, bem ao estilo de Ellery Queen, John Dickson Carr e outros clássicos daquela época. O romance é uma antologia de efeitos e de truques; literariamente, talvez Rawson funcione melhor no âmbito do conto, onde suas idéias espantosamente simples e originais têm um impacto mais nítido, numa trama única e compacta que o leitor tem condições de visualizar.
 
Matei este ano a saudade de um dos escritores que mais gosto, Fredric Brown, que hoje parece ser mais conhecido pela sua ficção científica (sempre rápida, satírica, cheia de sacadas leves mas brilhantes) do que pelos seus romances policiais sempre ótimos.


É o caso de The Screaming Mimi (1949), um belo passeio pelo submundo de Chicago, por onde o repórter William Sweeney vagueia procurando um serial killer. A pista principal é uma estatueta de uma mulher gritando de terror, a “Mimi” do título. Sweeney é um desses detetives por conta própria capazes de se meter em confusões que um policial de uniforme evitaria a todo custo. O melhor, aqui, é o realismo sem-nonsense com que Brown descreve todas as peripécias e todos os ambientes da investigação, mesmo que pareçam absurdos às vezes. O clímax tem uma reviravolta de enredo típica de Brown, e um desfecho notável em que Sweeney, desarmado, precisa ficar falando durante horas diante do assassino para evitar ser morto.


Ainda melhor do que este é Madball (1953), onde Fredric Brown volta ao ambiente dos carnivals, aquele misto de circo e de parque-de-diversões ambulante tipicamente norte-americano. Numa narrativa em que cada capítulo salta para o ponto de vista de um personagem diferente, vemos os crimes violentos e os conflitos de interesse entre artistas, técnicos, agregados, cartomantes, dançarinas e toda a fauna humana de um carnival. O enredo: antes do início da narrativa, dois membros do carnival praticaram um roubo enorme e esconderam o dinheiro nas instalações do parque ambulante; logo em seguida, sofreram um acidente de carro em que um deles morre e o outro escapa, mas logo é assassinado. Começa então a caça ao tesouro: em que local do parque eles esconderam a grana?
 
Num livrinho de 192 páginas, Brown comprime uma narrativa rápida, vívida, cheia de personagens banais e marcantes. As cenas de sexo são indiretas mas com sensualidade e malícia. O desenho dos personagens é de uma riqueza inesperada nesse tipo de pulp fiction, que oscila sempre na corda-bamba entre melodrama criminal exagerado e realismo psicológico.


(continua nas próximas postagens)
 
 
 
 
 







terça-feira, 29 de dezembro de 2020

4658) Resoluções de Ano Novo (29.12.2020)



Parar de beber todo copo de veneno que botam na minha frente.
 
Produzir protótipos dos “filtros protetores nasais” que imaginei anos atrás, num conto de FC, sem nem sequer imaginar pandemias ou coronas.
 
Livrar-me do hábito irritante de olhar o céu estrelado e imaginar que aquilo é um vitral colorido que pode ser estilhaçado por um meteorito qualquer.
 
Desistir de buscar a saída do labirinto, e me conformar com o fato de que já o sei de cor.
 
Fazer aquele curso de mordomo, por via das dúvidas.
 
Publicar um poema apaixonado com o título “Para _____”, e produzir uma planilha com os feedbacks.
 
Por via das dúvidas, deixar de me apresentar com “Agnóstico” e passar para “Quase Agnóstico”.
 
Decidir se devo apoiar os que lutam pela segurança que sempre tiveram, ou os que lutam pela liberdade que nunca experimentaram.
 
Dar uma geral na casa, juntar todas as tampas sem canetas e todas as canetas sem tampas.
 
Achar a sacola de livros que se perdeu na mudança de junho de 2019 com minhas antologias de Judith Merrill.
 
Separar as roupas que uso há 20 anos e doar ao brechó as que não uso há 20 anos.
 
Comprar um livro em mandarim e tentar lê-lo depois que tomar a vacina.
 
Arranjar um amigo imaginário, desde que esteja também confinado, num lugar distante.
 
Comprar um chapéu. Preciso impor respeito.
 
Voltar a treinar meu ping-pong da mão direita contra a mão esquerda.
 
Trocar meus óculos-para-longe, agora inúteis, por óculos-para-perto.
 
Arranjar um tigre de dentes de sabre para levar comigo quando for toda noite à padaria.
 
Quebrar minha promessa e revelar publicamente o que descobri sobre o destino da Expedição Fawcett.
 
Aprender a cozinhar, mesmo que somente eu aceite degustar os resultados.
 
Passar uma semana na Venezuela e preparar uma tabela Excel comparativa. Repetir daqui a um ano.
 
Escrever uma autobiografia imaginária, só com as coisas que não aconteceram.
 
Ganhar o meu primeiro milhão de dólares (segundo dizem, é o mais difícil de todos).
 
Descongelar aquela coisa de tonalidade violácea que está no freezer desde o ano passado e verificar do que se trata.
 
Comprar uma Bíblia em inglês para aquela pesquisa sobre os glossários de Bob Dylan e de Leonard Cohen.
 
Escrever um cordel sobre o Ninho do Urubu.
 
Trocar as cordas do violão e tentar gravar minhas músicas inéditas enquanto é tempo.
 
Continuar pagando velhas dívidas e contraindo novas dívidas, como um coração que bate.
 
Tentar lembrar o que foi mesmo aquela minha façanha da infância de que eu me orgulhava tanto.
 
Tatuar na barriga uma grade de palavras-cruzadas em branco.
 
Fazer uma “live” cantando e recitando, sem avisar a ninguém.
 
Evitar cometer tantos erros de concordância. Manter os de discordância.
 
 







sábado, 26 de dezembro de 2020

4657) "O Gambito da Dama" (26.12.2020)




Prefiro traduzir assim o título da minissérie The Queen’s Gambit, na Netflix. É a história de uma menina que descobre aos 9 anos ter uma capacidade fora-do-comum para o jogo de xadrez. Introvertida, meio selvagem, criada num orfanato, ela é vítima de uma série de acasos benignos muito comuns nos romances de Charles Dickens, e possíveis da vida real. Torna-se uma supercampeã, mas paga o preço do doping, porque ao longo da carreira se vicia em bebida e drogas.
 
Aprendi o xadrez por volta dos dez anos, com meu pai. Ainda hoje tenho aqui em casa a caixa com as mesmas peças de madeira com que jogávamos, na casa da rua Miguel Couto, 60 anos atrás.

 
Não tenho é tabuleiro. Faz trinta anos que não jogo com ninguém. Não sou bom jogador: tenho preguiça de planejar jogadas. Jogo improvisando, como quem percorre um labirinto. Não entendo de aberturas, defesas, etc. Mesmo quando pegava um livro e reproduzia uma partida clássica, só entendia uns 30% daquilo. Não é meu formato de inteligência.
 
O xadrez era para mim como a Ciência e a Música Clássica. Não entendo nada de música erudita, mas tão musicais quanto as sinfonias e as sonatas eram aqueles nomes: Rimsky-Korsakoff, Prokofiev, Scarlatti, Rossini, Stravinsky, Khachaturian...  Era como estar ouvindo falar em Heisenberg, Schrodinger, Gell-Mann, Bohr, Feynman, Freeman Dyson...
 
Do mesmo jeito existe até hoje para mim uma música misteriosa, cheia de promessas de enigmas e prodígios, por trás dos nomes dos grandes enxadristas, e com certo alívio (porque a idade avançada nos insensibiliza) descobri durante a minissérie que ainda me arrepiava ouvindo os nomes de Capablanca, Alekhine, Morphy, Philidor, Botvinnik...
 
Mesmo quando não entendemos certas “ciências exatas”, somos capazes de perceber a nuvem, o casulo de “ciências humanas” que sempre as envolve – e reagir a ele.




(Reshevsky, aos 8 anos)

Os enxadristas foram os
nerds do século 19, aquela geração de pessoas cujo gráfico mental-emocional é um horizonte liso, perturbado a certa altura por um pico descomunal numa área específica. São mentes quase autistas, introvertidas, desatentas para com as banalidades do mundo. Toda sua energia é para alimentar aqueles bilhões de neurônios em forma de quadradinhos preto-e-branco.
 
A série é muito boa ao retratar esse lado de “nerdice”, e não me surpreende que seja baseada num livro de um escritor de ficção-científica. Walter Tevis certamente conhece essa fauna desengonçada do fandom, onde as pessoas se vestem de qualquer jeito mas discutem horas sobre diferenças mínimas na capa de edições diferentes de um mesmo livro.
 
Comparei o xadrez, acima, com a música erudita e a física atômica. Não é por acaso. São domínios dos quais entendo pouquíssimo, mas entendo o bastante para saber por alto o que está se passando; é como ver um filme estrangeiro sem legendas. E um dos grandes trunfos da série é compreender isto, e ser acessível a quem não joga xadrez, porque não discute as jogadas em si, mas as reações conflitantes que essas jogadas produzem nas pessoas em redor do tabuleiro.


Millôr Fernandes, o Escarninho, dizia que o jogo de xadrez ajuda muito a desenvolver a capacidade de jogar xadrez. Tem razão, por um lado. Mas podemos dizer o mesmo de mil coisas. Um detalhe comovente da série é quando ficamos sabendo que a mãe adotiva de Beth Harmon (a ótima Marielle Heller) tocava piano bastante bem, mas desanimou do instrumento devido a um casamento pavoroso. Para que serve tocar piano? Para nada, talvez. E para tudo. Ao ver o talento da filha no xadrez, ela decide investir naquilo. Para que servem o xadrez, o piano? Para aproximar duas pessoas tão diferentes.
 
Gosto muito do modo como os jovens enxadristas conversam na minissérie. Depois de meses sem se ver, eles se reencontram. “Ôi.”  “Ôi, tudo bem?”  “Tudo. Não entendi porque você não usou o bispo naquela final com Fulano, há dois meses.”  “Usei o peão, para ele pensar que eu queria proteger o cavalo.”  É assim que nerd conversa: não tem preâmbulos, não tem “chat social”, perguntar pela família, comentar que está calor... Nerd vai logo ao que interessa. É um alívio conversar com gente assim.



(Isla Johnston)
 
As atrizes que fazem Beth são excelentes. A transição entre a Beth aos 9 anos (Isla Johnston) e a Beth daí em diante (Anya Taylor-Joy) é fluida. Existe uma continuidade na expressão, concentrada e relaxada ao mesmo tempo, uma economia de gestos e expressões porque 99% da CPU está ocupada pensando. O olho que rapidamente vai de torre a torre, registrando tudo. A contração dos lábios, geralmente nos momentos em que ela reprime uma resposta problemática.
 
A economia de emoções deixa transparecer a tensão quando vemos Taylor-Joy nervosa, insegura, apanhada de surpresa por um adversário mais cheio de recursos. O olhar vagueia, o rosto enrubesce de raiva. Mas quando ela consegue compor sua armadilha, quando se sente dona-do-pedaço, assume a pose da foto do cartaz: dedos entrelaçados sob o queixo, e aquele olhar de: “Vamos, espertinho, me mostre como vai sair dessa”.
 
Em termos de narrativa, a série é totalmente convencional. Tem o famoso roteiro em forma de N maiúsculo, preconizado nos manuais de escrita. O personagem começa embaixo, sobe até conhecer o cheiro do sucesso e ser obrigado a dobrar suas apostas, sofre em seguida uma queda problemática e no trecho final decola para uma vitória consagradora.
 
É o que ocorre com Beth Harmon, cuja “jornada do herói” segue o mesmo esqueleto de tantos outros roteiros da Sessão da Tarde. Aparecem na história as previsíveis surpresas, as reviravoltas obrigatórias que a gente enxerga quilômetros antes como uma curva da estrada; quem sustenta a narrativa é o charme ingênuo dos personagens. Ajuda bastante ser uma série “de época”. Um tal argumento soaria impossível num roteiro ambientado no século 21. Mas nos anos 1960 acreditávamos que tanta coisa era possível.



(Moses Ingram e Anya Taylor-Joy)

À medida que a série avança, vai se tornando mais hollywoodianamente previsível, marchando na direção do Final Feliz, esta versão moderna da tragédia grega, daquela força superior a que ninguém (no caso, os roteiristas) pode desobedecer.
 
Em termos enxadrísticos, ela começa no estilo Beth Harmon (pessoal e ousado) e vai encaretando para um estilo Borgov (defensivo e conservador). Gostei da série toda (sou um velho espectador da Sessão da Tarde), mas como roteiro os melhores episódios são os dois primeiros, onde ainda se tem aquela sensação do tudo-pode-acontecer.
 
Comparei acima o xadrez com a Física Sub-Atômica. Não é apenas a questão da complexidade, mas o fato de que um dos méritos da série é justamente ter como tema algo que não pode ser mostrado, e que podemos conhecer apenas pela reação que produz nas pessoas envolvidas. Ninguém precisa jogar xadrez para entender a irrupção de Harmon no mundo do jogo: basta observar o impacto das jogadas dela nos rostos dos homens mais velhos que a cercam. Nesse sentido, a série vale como uma síntese entre o empoderamento dos jovens diante dos “mais velhos” (um tema dos anos 1960) e o das mulheres diante dos homens (um tema dos anos 2020).



A matemática cruel do jogo impõe uma disputa de poder escancarada, uma disputa entre ataque e defesa, uma luta de destruição recíproca. Todas as metáforas do xadrez são metáforas de guerra. The Queen’s Gambit é uma história típica da Guerra Fria, e reflete a vivência do autor do romance original, Walter Tevis (1928-1984).  Pelos comentários que li, a reconstituição dos ambientes dos torneios, bem como das partidas em si, é impecável. Acredito.
 
A certa altura, Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), o campeão norte-americano que se torna um dos mentores de Beth, comenta sobre os enxadristas russos: “Eles são bons porque jogam coletivamente. Todos treinam juntos e corrigem os defeitos uns dos outros. Nas partidas adiadas, analisam cada jogada, conjuntamente. Nós norte-americanos acreditamos no talento individual, que ganha tudo sem a ajuda de ninguém”. Eles adotam o sistema russo, e batem os russos. Nessa reflexão não me parece haver uma intenção de comparar o individualismo capitalista e o socialismo soviético. (Claro que quem quiser interpretar assim tem pano para as mangas.)
 
O importante, que se concretiza no capítulo final, é o fato de que na URSS o xadrez fazia parte da cultura popular, e nos EUA não. Na URSS o xadrez era jogado por centenas de velhinhos, na praça, ao ar livre, num frio de zero grau. Os campeonatos eram transmitidos e comentados pelo rádio como se fosse uma Copa do Mundo. Num ambiente assim, mais do que o nacionalismo político o que se impõe (como tantas vezes ocorre na arte e no esporte) é o amor ao talento. Depois de derrotar o campeão russo, Harmon é agarrada em delírio pela multidão de russos. Por que? Porque eles sentem ali a presença do talento, da Grande Arte.


 
É como quando vi a torcida sueca comemorar a derrota de 5x2 para o Brasil de Garrincha e Pelé, ou quando vi Lionel Messi destroçar o time do Real Madrid, no estádio Santiago Bernabeu, e sair de campo aplaudido pela torcida adversária. O amor ao jogo (a um valor abstrato, não utilitário, mas dotado de uma ética, uma estética e uma moral próprias) pode ser, em casos muito especiais, um elemento capaz de transpor fronteiras e neutralizar parcialmente os conflitos de outra natureza.