quinta-feira, 25 de junho de 2020

4593) Os habituais Suspeitos (25.6.2020)




Existem os livros sobre cinema, e os livros que usam o material do cinema (dos filmes que já existem, e são conhecidos por todo mundo) para criar histórias de ficção.

Um dos melhores que conheço, aliás, é de um paraibano. João Batista de Brito, nosso crítico-mor (Imagens Amadas, etc.) tem um pequeno livro de contos curtos, Um Beijo é só um Beijo – Minicontos para Cinéfilos (João Pessoa; Manufatura, 2001) onde ele cria pequenos monólogos de pessoas anônimas narrando alguma passagem de sua vida. No transcurso dessa narrativa, a gente percebe quem é a pessoa: é um coadjuvante menor (em geral) de um filme famoso (Veludo Azul, Último Tango em Paris, etc.), narrando uma cena famosa sob o seu ponto de vista.

Comentei aqui o livro de João:



Uma experiência mais longa e mais complexa é a que foi tentada por David Thomson em seu livro Suspects (Picador, 1985). O livro foi traduzido no Brasil (Marco Zero, 1992, trad. Luiz Eduardo Mendonça).  

Thomson é um ótimo crítico de cinema, autor do The New Biographical Dictionary of Film, do qual tenho uma edição antiga. Constato, com amargor, que vou ter que acabar comprando a edição atualizada de 2010. São verbetes onde ele condensa, com frases rápidas, precisas, literárias (no bom sentido), o significado e a importância de diretores e diretoras, atores e atrizes, roteiristas.


Suspeitos é uma experiência ambiciosa. São 85 capítulos em que ele conta biografias inteiras de personagens de “filmes noir” – num sentido meio amplo do termo, que inclui Cidadão Kane, O Iluminado, Juventude Transviada, etc.

Cada capítulo é intitulado com o nome do personagem e sua referência. O primeiro capítulo é: “JACK GITTES – Jack Nicholson em Chinatown, 1974, dirigido por Roman Polanski”.

Em novembro de 1901, na Tulip Tree, um prostíbulo da rua Stockton em San Francisco, onde trabalhava, Opal Chong, de dezenove anos, deu à luz Jacob. (...) A Tulip Tree desabou durante o terremoto de San Francisco em 1906. Opal morreu no desastre, mas somente depois de ela e seu filho ficarem horas sob os destroços. Depois de adulto, Jake contava a história de como sua mãe o protegeu, com o próprio corpo, do peso de uma viga despencada; e como lhe ensinou a dar prazer a uma mulher, antes de expirar. Ele nunca conseguiu tornar plausível esta história, mas quem a escutava via nela um sinal de seu temperamento romântico.

Isso dá ao livro essa aparência de ser também um “dicionário biográfico”, só que de personagens ficcionais. E cada capítulo equivale a um conto de duas ou três páginas, em média, onde ficamos sabendo quem era essa figura, onde nasceu, como se criou, como se envolveu na história daquele filme – e o que lhe aconteceu depois do filme. Como envelheceu (quando é o caso), como acabou morrendo, ou o que faz atualmente, e por quê.

Até mais ou menos a metade do livro, somos tentados a vê-lo apenas como um livro de contos. As histórias parecem independentes umas das outras. Quando termina uma e começa outra, temos a sensação de saltar para outro universo. É claro. Estamos saindo de O Terceiro Homem de Carol Reed e entrando em O Poderoso Chefão de Coppola, ou estamos saindo de Pacto Sinistro de Hitchcock e entrando em Lolita de Kubrick.

Essas pequenas narrativas são costuradas por uma narração em primeira pessoa que aparece às vezes, fazendo uma introdução a alguns capítulos:

A ordem em que vêm esses capítulos tem importância? Eu os escrevo na ordem em que eles me vêm à cabeça, mas minha cabeça continua tentando apelar para uma ordem qualquer. Assim, o planejado e o aleatório esbarram um no outro, e se engalfinham, como um casal de amantes.


Estes curtos interlúdios poéticos, de um narrador invisível que fala em seu próprio nome sem dizer quem é, vão se tornando cada vez mais frequentes. Como neste trecho, do capítulo sobre Casper Gutman (Sidney Greenstreet, em O Falcão Maltês, 1941, de John Huston):

Os pais de Casper eram alemães, e foram morar em Londres quinze anos antes do seu nascimento. Não sei por quê. Eu não posso saber de tudo. Olhe para sua própria árvore genealógica e tente explicar todas aquelas mudanças súbitas de direção.

Até que ele próprio começa a aparecer no interior dos próprios “contos-capítulos”, como coadjuvante discreto dos personagens principais. Como neste exemplo, no capítulo sobre Maureen Cutter (Lisa Eichhorn, em Cutter’s Way, 1981, de Ivan Passer):

Havia duas salas de cinema em Bedford Falls naquela época, naqueles verões em que a filha de Harry, Mo, ficou de férias em nossa casa. Foram três verões seguidos em que ela veio, em meados dos anos 1950, anos tão compridos quanto os automóveis daquele tempo; esses cinemas eram o Dream e o Circle.

A vida dos personagens vai se misturando assim à vida do narrador, que começa a surgir das sombras na segunda metade do livro, e emerge no final – eu diria que “emerge triunfalmente”, não fosse este livro, também, um filme noir, onde não existem triunfos, apenas desenlaces; e contagem de corpos.

É um caso raro na literatura de “1ª. pessoa onisciente”, o que é um paradoxo. Um romance narrado em primeira pessoa vê tudo através dos olhos do personagem, e as coisas que ele não presencia ele só pode saber por informação indireta. E o “narrador onisciente” do romance clássico é aquele que não tem pessoa, está fora da história, mas vê tudo, sabe tudo, sabe o conteúdo de cada gaveta de cada casa, sabe o que cada personagem pensa e sabe o que ele não pensou.

Primeira pessoa onisciente é um caso raro, e assim de cara só me lembro de alguns textos (impecáveis, estonteantes) de Osman Lins.

David Thomson vai tecendo a sua teia, e começa a entrecruzar essas narrativas individuais umas nas outras, produzindo choques e faíscas que num primeiro instante nos surpreendem, mas depois vemos que são plausíveis. (Este é um daqueles livros em que, claramente, foi necessário criar uma cronologia completa para cada personagem, para ter certeza que os encontros narrados ou as relações descritas poderiam de fato acontecer.)


Você sabia que:

… a melhor amiga de Vivian Sternwood (Lauren Bacall em The Big Sleep, 1946, de Howard Hawks) era Evelyn Cross (Faye Dunaway em Chinatown, 1974, de Roman Polanski)?

… Julian Kay (Richard Gere em American Gigolo, 1980, de Paul Schrader) era filho de Norma Desmond (Gloria Swanson em Sunset Boulevard, 1950, de Billy Wilder)?

… que Ilsa Lund (Ingrid Bergman em Casablanca, 1942, de Michael Curtiz) conseguiu fugir para os EUA onde acabou se tornando tradutora de sueco para o inglês, e redigindo as legendas dos filmes de Ingmar Bergman, em Hollywood?

Levei muitos anos para terminar a leitura de Suspects, porque imaginei de início que precisaria ter visto todos os 58 filmes cujos personagens ele utiliza. Depois, vi que não é necessário. (Me faltam 27, ainda.)  O melhor é esquecer os filmes e fazer a primeira leitura aceitando os personagens do jeito que eles surgem. Os capítulos sobre filmes que não vi, com atores que desconheço, foram alguns dos melhores.

É melhor esquecer o cinema na primeira leitura (muita gente não conseguirá deixar de ler tudo de novo) e fazer de conta que aquilo é apenas um longo romance inédito de Raymond Chandler. A prosa de David Thomson não fica devendo nada à do mestre.







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