Existem os livros sobre cinema, e os livros que usam o material do cinema (dos filmes que já existem, e são conhecidos por todo mundo) para criar histórias de ficção.
Um dos melhores que conheço, aliás, é de um paraibano.
João Batista de Brito, nosso crítico-mor (Imagens
Amadas, etc.) tem um pequeno livro de contos curtos, Um Beijo é só um Beijo – Minicontos para Cinéfilos (João Pessoa;
Manufatura, 2001) onde ele cria pequenos monólogos de pessoas anônimas narrando
alguma passagem de sua vida. No transcurso dessa narrativa, a gente percebe
quem é a pessoa: é um coadjuvante menor (em geral) de um filme famoso (Veludo Azul, Último Tango em Paris, etc.), narrando uma cena famosa sob o seu ponto de vista.
Comentei aqui o livro de João:
Uma experiência mais longa e mais complexa é a que foi
tentada por David Thomson em seu livro Suspects
(Picador, 1985). O livro foi traduzido no Brasil (Marco Zero, 1992, trad. Luiz
Eduardo Mendonça).
Thomson é um ótimo crítico de cinema, autor do The New Biographical Dictionary of Film,
do qual tenho uma edição antiga. Constato, com amargor, que vou ter que acabar
comprando a edição atualizada de 2010. São verbetes onde ele condensa, com
frases rápidas, precisas, literárias (no bom sentido), o significado e a
importância de diretores e diretoras, atores e atrizes, roteiristas.
Suspeitos é uma
experiência ambiciosa. São 85 capítulos em que ele conta biografias inteiras de
personagens de “filmes noir” – num
sentido meio amplo do termo, que inclui Cidadão
Kane, O Iluminado, Juventude Transviada, etc.
Cada capítulo é intitulado com o nome do personagem e sua
referência. O primeiro capítulo é: “JACK GITTES – Jack Nicholson em Chinatown, 1974, dirigido por Roman
Polanski”.
Em novembro de 1901, na Tulip Tree, um prostíbulo da rua Stockton em
San Francisco, onde trabalhava, Opal Chong, de dezenove anos, deu à luz Jacob.
(...) A Tulip Tree desabou durante o terremoto de San Francisco em 1906. Opal
morreu no desastre, mas somente depois de ela e seu filho ficarem horas sob os
destroços. Depois de adulto, Jake contava a história de como sua mãe o
protegeu, com o próprio corpo, do peso de uma viga despencada; e como lhe
ensinou a dar prazer a uma mulher, antes de expirar. Ele nunca conseguiu tornar
plausível esta história, mas quem a escutava via nela um sinal de seu
temperamento romântico.
Isso dá ao livro essa aparência de ser também um
“dicionário biográfico”, só que de personagens ficcionais. E cada capítulo equivale
a um conto de duas ou três páginas, em média, onde ficamos sabendo quem era
essa figura, onde nasceu, como se criou, como se envolveu na história daquele
filme – e o que lhe aconteceu depois do filme. Como envelheceu (quando é o
caso), como acabou morrendo, ou o que faz atualmente, e por quê.
Até mais ou menos a metade do livro, somos tentados a
vê-lo apenas como um livro de contos. As histórias parecem independentes umas
das outras. Quando termina uma e começa outra, temos a sensação de saltar para
outro universo. É claro. Estamos saindo de O
Terceiro Homem de Carol Reed e entrando em O Poderoso Chefão de Coppola, ou estamos saindo de Pacto Sinistro de Hitchcock e entrando
em Lolita de Kubrick.
Essas pequenas narrativas são costuradas por uma narração
em primeira pessoa que aparece às vezes, fazendo uma introdução a alguns
capítulos:
A ordem em que vêm esses capítulos tem importância? Eu os escrevo na
ordem em que eles me vêm à cabeça, mas minha cabeça continua tentando apelar
para uma ordem qualquer. Assim, o planejado e o aleatório esbarram um no outro,
e se engalfinham, como um casal de amantes.
Estes curtos interlúdios poéticos, de um narrador
invisível que fala em seu próprio nome sem dizer quem é, vão se tornando cada
vez mais frequentes. Como neste trecho, do capítulo sobre Casper Gutman (Sidney
Greenstreet, em O Falcão Maltês,
1941, de John Huston):
Os pais de Casper eram alemães, e foram morar em Londres quinze anos
antes do seu nascimento. Não sei por quê. Eu não posso saber de tudo. Olhe para
sua própria árvore genealógica e tente explicar todas aquelas mudanças súbitas
de direção.
Até que ele próprio começa a aparecer no interior dos
próprios “contos-capítulos”, como coadjuvante discreto dos personagens
principais. Como neste exemplo, no capítulo sobre Maureen Cutter (Lisa
Eichhorn, em Cutter’s Way, 1981, de
Ivan Passer):
Havia duas salas de cinema em Bedford Falls naquela época, naqueles
verões em que a filha de Harry, Mo, ficou de férias em nossa casa. Foram três
verões seguidos em que ela veio, em meados dos anos 1950, anos tão compridos
quanto os automóveis daquele tempo; esses cinemas eram o Dream e o Circle.
A vida dos personagens vai se misturando assim à vida do
narrador, que começa a surgir das sombras na segunda metade do livro, e emerge
no final – eu diria que “emerge triunfalmente”, não fosse este livro, também,
um filme noir, onde não existem
triunfos, apenas desenlaces; e contagem de corpos.
É um caso raro na literatura de “1ª. pessoa onisciente”,
o que é um paradoxo. Um romance narrado em primeira pessoa vê tudo através dos
olhos do personagem, e as coisas que ele não presencia ele só pode saber por
informação indireta. E o “narrador onisciente” do romance clássico é aquele que
não tem pessoa, está fora da história, mas vê tudo, sabe tudo, sabe o conteúdo
de cada gaveta de cada casa, sabe o que cada personagem pensa e sabe o que ele
não pensou.
Primeira pessoa onisciente é um caso raro, e assim de
cara só me lembro de alguns textos (impecáveis, estonteantes) de Osman Lins.
David Thomson vai tecendo a sua teia, e começa a
entrecruzar essas narrativas individuais umas nas outras, produzindo choques e
faíscas que num primeiro instante nos surpreendem, mas depois vemos que são plausíveis.
(Este é um daqueles livros em que, claramente, foi necessário criar uma
cronologia completa para cada personagem, para ter certeza que os encontros
narrados ou as relações descritas poderiam de fato acontecer.)
Você sabia que:
… a melhor amiga de Vivian Sternwood (Lauren Bacall em The Big Sleep, 1946, de Howard Hawks)
era Evelyn Cross (Faye Dunaway em Chinatown,
1974, de Roman Polanski)?
… Julian Kay (Richard Gere em American Gigolo, 1980, de Paul Schrader) era filho de Norma Desmond
(Gloria Swanson em Sunset Boulevard,
1950, de Billy Wilder)?
… que Ilsa Lund (Ingrid Bergman em Casablanca, 1942, de Michael Curtiz) conseguiu fugir para os EUA
onde acabou se tornando tradutora de sueco para o inglês, e redigindo as
legendas dos filmes de Ingmar Bergman, em Hollywood?
Levei muitos anos para terminar a leitura de Suspects, porque imaginei de início que
precisaria ter visto todos os 58 filmes cujos personagens ele utiliza. Depois,
vi que não é necessário. (Me faltam 27, ainda.)
O melhor é esquecer os filmes e fazer a primeira leitura aceitando os
personagens do jeito que eles surgem. Os capítulos sobre filmes que não vi, com
atores que desconheço, foram alguns dos melhores.
É melhor esquecer o cinema na primeira leitura (muita
gente não conseguirá deixar de ler tudo de novo) e fazer de conta que aquilo é
apenas um longo romance inédito de Raymond Chandler. A prosa de David Thomson
não fica devendo nada à do mestre.
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