quarta-feira, 7 de setembro de 2016

4156) "Liturgia do Fim"(7.9.2016)




Não existe “literatura nordestina” se por este rótulo entendermos um corpo literário homogêneo, ou pelo menos composto apenas de obras parecidas umas com as outras. Como se todos nós tivéssemos que pedir uma bênção obrigatória à seca, ao cangaço, ao sertão, à cantoria de viola, em cada livro publicado. Tivéssemos que usar um algum crachá verbal de nordestino, para que os postos de acesso nos identifiquem sem fazer muito esforço. (“Como assim, ficção científica? Tem ficção científica no Nordeste? O foguete é feito de rapadura?”)

Vai daí que eu vejo com orgulho e alívio histórias feitas por nordestinos e que fogem a esse samba-de-uma-nota-só, que já comparei com os antigos e célebres desfiles de “misses em trajes típicos”. Se deixar, a literatura (a pintura, o rock, qualquer coisa) vira justamente isso. Um desfile de gente esteticamente idealizada trajando clichês de fácil leitura.

O romance Liturgia do Fim (São Paulo, Tordesilhas, 2016) de Marília Arnaud se passa como numa elipse com dois focos. Um deles, o mais pesado e mais atrator, é a fazenda de Perdição, num sertão remoto do Brasil. O outro é a capital, descrita porém jamais nomeada. É nordestino? É, apenas porque não precisa ser.

Marília escolhe uma chave narrativa já escolhida, também com sucesso, por José Nêumanne em O Silêncio do Delator e Débora Ferraz em Enquanto Deus Não Está Olhando, ambos já comentados aqui no blog. A chave narrativa é limar os nomes próprios: de cidades, de logradouros, de pontos de referência, de bares, de bairros, de ruas.

O romance acontece num meio geográfico e físico onde nada parece ter nome, mas que o autor(a) visualiza com precisão. Omitindo, sempre que pode, os nomes próprios, nem por isso ele faz a história mergulhar num limbo de indiferença cenográfica. O leitor sente a cidade sem precisar usar a citação fácil do simples nome. Nestes dois livros que citei, eu só notei a ausência dos nomes próprios lá pela página 50 ou 100, porque julgava estar vendo tudo. Claro. Tudo acontecia em ambientes que me eram familiares.

Era aquela proposta de Flaubert para Maupassant: “Você precisa ser capaz de descrever o físico e a psicologia de Fulano de Tal, garçon do bar que a gente frequenta, de tal modo que, apenas descrevendo-o, sem nomeá-lo, qualquer um da nossa turma possa exclamar de repente: Oxente, isso aí é Fulano!”

Perdição; é o nome da localização imaginária da tragédia meio grega de Marília Arnaud, um nome mais do que verossímil num Estado que tem cidades chamadas Solidão, Desterro, Misericórdia. A capital, onde o narrador vai estudar e construir família depois que vem do sertão, não recebe nome, mas é vista assim:

“De uma balaustrada na parte alta da cidade avistavam-se um rio e um porto desguarnecido de barcos, igrejas com seus cruzeiros quinhentistas ornados de gárgulas, o pátio interno de um mosteiro com seu jardim de fontes e bancos de pedra, uma lagoa cingida por palmeiras-imperiais que varriam um céu de nenhuma nuvem. Em algum lugar o mar me aguardava.”

Ninguém que conheça a velha Parahyba pode confundir isto com qualquer outra coisa. E quem não a conhece, não importa: é capaz de compor um cenário coerente com essas instruções verbais.

E é desse jeito que o que há de nordestino brota, com descrições da natureza feitas com a riquezas de nomes e espécies e tipos “da fauna e da flora”.  A profusão de imagens neste livro lembra alguns livros de Osman Lins, um prosador de registro elevado e com uma atenção barroca à Natureza; ou aquelas páginas catalográficas de Guimarães Rosa em Corpo de Baile.

Os nomes das coisas têm uma poesia em si. Uma página aberta rigorosamente ao acaso:

“Por todos os lados se viam mangueiras, bananeiras, canafístulas, jaqueiras, goiabeiras, angicos, oliveiras, paus-d’alhos, umbuzeiros, umburanas, limoeiros, laranjeiras, abacateiros, um amontoado de folhagem ensopada de luz, um emaranhado de ramos, brotos e galhos, um esbanjamento de copas floridas, de inflorescências em cachos, espigas, umbelas, botões em ânsia de desabrocho, e nas encostas ondulavam ao vento as esponjinhas das caliandras, os talos das damas-da noite e dos cipós-de-leite, as pétalas das vassourinhas, chananas e velames, um delicado pasto de néctar e pólen à espera dos afagos das abelhas”.

São os trechos férteis do sertão, ou de qualquer lonjura remota da Paraíba.

Inácio, o narrador, afirma ter levado dez horas de viagem de Perdição até a capital, num ônibus pinga-pinga. E quando uma Natureza de nomes tão familiares é literariamente compactada e posta em movimento, com o passar da história a gente percebe o quanto tudo isso existe de fato, num lugar onde alguns só imaginam haver o ermo e a desolação.

Essa natureza áspera mas exuberante é trespassada pela tragédia humana das pessoas. Neste aspecto, temos por um lado a crônica terrível da tragédia do patriarcado rústico, situação que evoca Raduan Nassar, numa reiteração de fatalidades.

O peso moral do cristianismo, somado a um certo puritanismo que não consegue conviver com a exceção à regra. Um puritanismo tiranizado pelo homem e administrado pela mulher.

Religião é uma coisa que exerce um peso terrível sobre quem acredita nela. E acreditar nela sem ser capaz de ter sentimentos bons, como ocorre com tantos, deve ser pior ainda. Ou então quem acredita duvidando, porque nenhuma resposta encerra a questão, nenhuma promessa é totalmente cumprida.

Não exagero vendo certos traços da tragédia pessoal de Augusto dos Anjos na de Inácio, já que ele cita o poeta mais de uma vez. Sua história é uma reiteração do drama inicial de “A Árvore da Serra”: “Não mate a árvore, pai, para que eu viva.”  Vejo rastros do Eu também na letra inicial dos nomes de um grupo crucial de personagens, mas deve ser viagem minha.

Se o romance de Marília Arnaud pertence a algum gênero, não é um gênero definido por superficialidades paisagísticas, mas por um conflito muito mais primal e mais remoto. São, por exemplo, as histórias sobre O Confronto Final Com o Pai Terrível.  Certo tipo de pai parece tornar isso inevitável: o velho Karamázov, o velho Lear, o velho Kafka.

O romance tem algo de façanha ao conseguir sustentar um discurso tenso, poético, elevado, do começo ao fim, sem abrir mão do regional, mas um regional amplo, com muitas camadas de vocabulário e de elocução. Seu arcabouço é uma verbalização entrelaçada com esmero. A fazenda como Éden violentado, a cidade como cárcere e rotina, tudo isso se entretece numa narrativa ao estilo do reino do vai-e-volta, saltando para o presente, o passado remoto, o passado esquecido.

A tragédia que impulsionou a história (e para a qual a história se reencaminha o tempo inteiro, acompanhando o percurso de volta do narrador) é mais velha do que a Bíblia, não é nordestina nem outra coisa. É um atrator convulso, uma agonia que não dorme, e que faz um personagem como Inácio desperdiçar toda a vida que a cidade lhe oferece, porque restou aquele nó doloroso no passado que não permite que ele se concentre em coisa nenhuma.








segunda-feira, 5 de setembro de 2016

4155) O som ao redor do edifício (5.9.2016)




É inevitável comparar este filme, Aquarius (em cartaz pelo Brasil) com o anterior de Kleber Mendonça, O Som ao Redor. Existe continuidade temática, dramática, de linguagem, de muita coisa, entre os dois filmes.

São dois flashes da luta pelo território urbano de uma grande cidade, onde os senhores feudais de outros tempos não mandam mais em ninguém. Como sempre, só manda quem consegue se impor. O conflito imobiliário em nossas cidades não é menor que o conflito fundiário no campo.

O bairro é outro, mas a vizinhança é do mesmo tipo. O rapaz de moto que vende pó atrás do quiosque perto do edifício Aquarius lembra o neto de W. J. Solha, no outro filme, um playboy mimado que praticava pequenos furtos. Irandhir Santos fez um segurança e agora faz um salvavidas.

Há um paralelismo nessa presença discreta, mas contínua, de uma rede de pessoas secundárias, de vizinhanças, de compadrio, troca de favores, pequenos serviços, lealdades e amizades momentâneas. Aquele casulo de compromissos e de expectativas que mantém um morador em conexão com um lugar.

No Som..., um cara mal tratado por uma madame risca-lhe o carro com um prego quando ela se prepara para ir embora; em Aquarius, dois caras que ela reconhecia e tratava pelo nome surgem do nada e por lealdade colocam em sua mão uma pista.

A promiscuidade entre as classes sociais em Boa Viagem deve ser algo inimaginável para a família de Lord Grantham em Downton Abbey, mas certas leis da existência estão sempre valendo. “Dize-me quem te serve ou a quem serves, e eu te direi quem és.”

Todo mundo tem um papel social muito rígido para desempenhar. “You gotta serve somebody.” Clara e sua empregada Ladjane levam essa relação com leveza. Em certos momentos são apenas duas mulheres que se aproximam uma da outra, que precisam da presença da outra para encarar situações.

Você e um empregado (ou um amigo) podem ter quatrocentos anos de casa grande e de senzala, respectivamente, e saber que isso é diluível em tempo. O tempo até agora foi pouco. Patrões e criados nesses filmes de Kleber se confrontam, se relacionam, em tons diferentes, mas de modo sempre plausível. E todos se assemelham na busca constante de segurança territorial: o meu canto, o meu lugarzinho, o meu cafofo, o meu QG, o meu ponto-castañeda, o meu sanctum, o zero cartesiano do meu GPS.

Em O Som..., há uma cena arrepiante que ocorre à noite. Vemos do alto, por uma janela, um pátio interno, plantas, um muro. De repente um vulto humano, escuro, surge na sombra em cima do muro. Pula para dentro e corre a se esconder fora do ângulo de visão. Logo surge um segundo, diferente, mas fazendo a mesma coisa. E um terceiro, e um quarto, e assim surge do nada uma invasão silenciosa de vultos ariscos como ninjas.

Lembra o famoso episódio de Conan Doyle sobre o castelo de Villefranche, que hospeda alguns cavaleiros afamados e é sorrateiramente invadido à noite por camponeses amotinados e famintos (A Companhia Branca, 1891).

É o medo atávico de ver vultos obscuros invadindo nosso santuário na calada da noite. Os zumbis. Os vampiros. Os sem-teto. Os sem-escolha. Os sem-alma. Pode ser um arrastão noturno rebatando tudo, na mão-grande. Pode ser uma carta de intimação de uma construtora, com palavras como “nossa oferta final” ou algo que faça o mesmo efeito.

Visto por esse ângulo da expulsão do paraíso, o filme de Kleber é o contrário da passividade de "Casa Tomada” (1946), o conto famoso de Julio Cortázar, onde os remanescentes da família aceitam que a casa lhes está sendo tomada aos poucos, aposento por aposento, andar por andar, até que eles próprios vão embora e trancam por fora a porta da frente. Sabem, e não comentam, que o mundo não lhes pertence mais. Como o próprio Cortázar na época, admitindo que a Argentina não era mais sua e indo viver na França.

Mas o movimento de tomada do espaço urbano acontece sempre em mão dupla.

O filme de Kleber Mendonça capta o espírito do ano do movimento “Ocupa Estelita” no Recife e das ocupações de escolas secundaristas em São Paulo. É um choque historicamente inevitável diante da brutalidade das ocupações “gentrificadoras” do espaço urbano.

O coronel-patriarca-bíblico interpretado por W. J. Solha em O Som ao Redor pertence a uma linhagem de nobres que podem ser canavieiros, do gado, do algodão. (Hoje devem ser do mercado financeiro, fazendeiros do ar, que plantam zeros para colher percentagens.)

Foi talvez pensando na segurança financeira do futuro Coronel Francisco que em tempos remotos algum antepassado seu irrompeu, impudente e conquistador, na topografia urbana do Recife, comprando o que seriam depois quarteirões inteiros, com o destemor de quem nada à noite num mar assombrado por tubarões.

Coronéis como ele conquistaram suas terras sabe-se lá por que meios, mas certamente com muita ambição, e com bastante coragem. O coronelzão nunca teve medo de enfrentar o futuro. Os feitos dos coronéis e os malfeitos das construtoras estão guardados na poeira de um arquivo. E um belo dia um deles é pêgo como o flanco descoberto e tem prestar contas ao passado. Esse passado (dizia William Faulkner) que ainda não parou de passar.





domingo, 4 de setembro de 2016

4154) "Aquarius", o filme (4.9.2016)




(ilustração: Toinho Castro)


Um dos temas que correm ao longo do filme de Kleber Mendonça Filho é um confronto entre modo-de-ver analógico e modo-de-ver digital, a partir da entrevista inicial de Clara a duas jornalistas. Clara se dá bem com todos. Passa músicas em pendraive, coleciona vinis, publicou entre outras obras um livro sobre Villa-Lobos. Ela mostra a raridade de um vinil, que vem com um recorte de jornal dentro, uma matéria sobre John Lennon.

Tudo pode ser analógico ou digital, e por enquanto é perda de tempo inventar pretextos para abrir mão de um dos dois. Não precisa.

Você precisa de uma informação exata mas obscura. É 2016, e você vasculha um arquivo kafkeano de pastas de plástico e caixas de papelão. Ali deve ter uma nuvem de poeira e ácaros que se for espalhada dá pra cobrir o bairro. Mas o analógico tem a sobrevida do material em que é registrado, e está tudo lá. A informação é encontrada.

E noutra situação você precisa da leveza e instantaneidade do equipamento digital para filmar de improviso, em condições antagonísticas, para registrar o espanto, o choque, a fúria balbuciante de quem pisou numa armadilha pontiaguda da própria esperteza. Celular apontado ao vivo, quem sabe transmitindo direto não só para uma audiência, mas deixando uma cópia de tudo. Isso, só a imagem digital pode.

Somos (eu sou da geração de Clara) pessoas analógicas num mundo cada vez mais digital, mas não é isso que rejeitamos nesse mundo. Rejeitamos, quando é o caso, uma certa falta-de-passado que esse mundo tem, porque às vezes temos a impressão de que a foto digital, o selfie, o instagram, existe apenas para ser visto por alguns segundos, “curtido”, e esquecido para sempre.

O instante, o momento, a faísca do presente, tudo isto é sagrado, e aí estão o haikai, o repente e o I-Ching. Mas veja-se que todas essas girândolas em honra do presente foram feitos com a pólvora de muitas gerações, de tradições inteiras. Porque o instante só vale se houver, no instante em que o vemos, um passado todo, inteiro como uma pedra.

A família de Clara gosta de curtir imagens, de comentar fotos antigas, de puxar fios de gente enganchados na memória. A imagem puxando a história. Uma imagem parada põe uma história em movimento. Histórias da sua vida e outras. Momentos de reencontro e armistício entre as gerações. Pessoas que se gostam, mas que divergem, assoprando as brasas do afeto. Clara nem é um modelo de mãe nem uma desorientada. Ganhou um certo desdém pela vagarosidade mental alheia, mas deve ter sido mais pelas barras que passou do que por qualquer esnobismo de origem.

Clara vive bem, ali, e vive de rendas. Afirma ter outros imóveis, mas aquele é o lugar onde ela gosta de viver. A família, claro, é sempre a última que leva isso a sério. Qualquer grande agente imobiliário pode contar a meia-voz histórias de divisões de espólio que deixariam Agatha Christe ocupada por uns cem anos.

Clara não quer ser ameaçada, nem incomodada por surubas ao som de um pancadão. Ela se surpreende a saltar da cama no meio da noite e correr para trancar por dentro a porta da frente. Clara já sabe que cada fase da vida é uma guerra diferente, e o choque que a atinge em pleno peito é uma bomba de efeito moral. Ninguém quer destruí-la, apenas removê-la.  

O mundo onde eu mandava está sumindo pouco a pouco, pensa cada um deles ou delas. Mas dali ninguém os tira. E mesmo que a gente não veja a intelectual de Boa Viagem e os nobres de Downton Abbey com a hipotética simpatia com que vemos o sem-teto Adoniran Barbosa e seus comparsas, Mato Grosso e o Joca, não podemos negar que todos têm motivos mais do que concretos para fincar o pé naquele canto. Não faríamos o mesmo?!

Uma série formalmente conservadora e tradicional como Downton Abbey nem por isso deixa de mostrar com certo distanciamento e humor os comportamentos absurdos de nobres e de criados no tempo em que se vivia em conjunto a fantasia que podemos chamar de “a Persuasão Aristocrática”, a noção de que os nobres eram seres superiores e deviam ser tratados como pessoas infinitamente preciosas pois cada minuto de suas vidas era indescritivelmente importante.

O nobre verdadeiro perde o castelo mas não perde a nobreza. É um patrimônio histórico de grande beleza, mas por alguma razão está se esboroando.

O que une mesmo os personagens do filme de Kleber e da série de Julian Fellowes nem é a posse de uma edificação de pedras e argamassa, é a continuidade afetiva de um passado. O apartamento de Clara é uma reprodução em 3-D de cada momento vivido ali, com os parentes mais velhos que já se foram, a história dos amores, das trepadas, dos dramas, dos perigos, das canções, dos filhos criados, das mortes e das sobrevivências. Deixar aquela casa será como deixar aquele corpo. Ela sabe que um dia vai acontecer.

(continua)








sábado, 3 de setembro de 2016

4153) Daqui não saio, daqui ninguém me tira (3.9.2016)




Gosto de inventar gêneros cinematográficos novos. Você pega uma dúzia de filmes e cria uma frase que define o que eles têm em comum.

Quando chamamos um filme ou romance policial de whodunit, esse nome é uma frase: “Quem foi que fez [isto]?”. Não importa quem sejam os personagens, onde se passa a história, em que época. Se houver um crime e alguém empenhado em descobrir quem foi seu autor, é um whodunit.

A gente poderia, por exemplo, inventar um gênero chamado Escapei do Fim do Mundo, um gênero abrangente e bom de drama, que poderia incluir tanto E o Vento Levou quanto Moby Dick, dando-se ao termo “fim do mundo” uma certa amplitude metafórica. Uma fazenda, um navio, valem por mundo para alguém.

Ou um apartamento de frente para o mar, quase térreo, num prédio pequeno, sem elevador, anacronicamente encravado entre espigões futuristas com nome de artistas ou nome de santos. Daqui Não Saio, Daqui Ninguém Me Tira poderia ser um dos gêneros a que pertence o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius, rodado no Recife, que ganhou prêmios importantes e acendeu polêmicas.

A ex-professora Clara (Sonia Braga) é pressionada por todos os lados, até pela família, a vender o último apartamento do prédio, que está sendo adquirido aos poucos por uma grande construtora. Ela não quer vender, não quer sair.

Por um flashback inicial vemos que passou por ali a história dela e de mais de uma geração de pessoas. Passado é passado, todo ele tem o mesmo peso. O Passado pode ser um móvel véi encostado numa parede igual a qualquer outra. Só a gente sabe o tesouro que existe ali.

Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Não lembro se a frase é pronunciada em Aquarius. Eu vejo nessa expressão menos um trecho de marcha de carnaval do-tempo-de-Adão-cadete do que uma frase-feita, de autor conhecido, mas incorporada ao linguajar coloquial do brasileiro. Tal como “eu era feliz e não sabia”.

Engraçado.  Aquarius e Downton Abbey (série britânica, na Netflix) são os dois primeiros exemplos que consigo pensar para o gênero do Daqui Não Saio...  Na série, a família Crawley, liderada pelo cavalheiríssimo Lord Grantham, passa por catástrofes mundiais sucessivas, e vê-se o tempo todo ameaçada de ter que desmembrar suas propriedades e perder sua Casa Grande. Trata-se de um espantoso castelo, que pertencia, na época retratada, ao Lord Carnavon que financiou a descoberta da tumba de Tutankâmon. Qualquer um de nós terçaria armas contra quem quisesse nos arrancar de uma vivenda assim. Que é nossa por direito adquirido.

O terceiro exemplo que me ocorre eu não vi no cinema, vi no show Semba de Antonio Nóbrega, no Sesc-Pinheiros em São Paulo, onde ele repassa um belo dum repertório sambístico. E ele canta o hino do Daqui Não Saio Daqui Ninguém Me Tira: “Se o senhor não tá lembrado, dá licença de eu contar: aqui onde agora está esse edifício alto era umas casa véia, um palacete assobradado...” E o enunciado do gênero, por mais heroico que seja, não cancela o fato de que as pessoas acabam saindo mesmo, acabam sendo tiradas mesmo, como foram em Pinheirinho (SP), na zona portuária carioca, no mundo afora. 

Os posseiros urbanos de Adoniran Barbosa vivem na mesma expectativa de Clara, no seu idílico Pina, porque quando menos se espera chegam os homens com as ferramentas “e o dono mandou derrubar’. Há um repertório de variadas pressões para tirar Clara de casa, umas desagradáveis, outras bizarras, outras repugnantes. E Clara finca pé e diz: agora é que eu não saio mesmo.

O espaço urbano é um campo de batalha a ser conquistado, defendido. Hoje a batalha é financeira, pós-geográfica, como dizia o cyberpunk Gibson. O filme aponta um conflito concentrado, minúsculo: uma pessoa irredutível diante de uma meta-transação onde muita gente tem algo significativo pra ganhar. E só não ganhou ainda porque a transação empacou, não avança. Por causa dela.  E as pessoas se irritam. Quem é ela para desdenhar uma coisa que a maioria deles não hesitaria diante de nada para obter?

(continua)





quinta-feira, 1 de setembro de 2016

4152) O Trazedor (1.9.2016)



(ilustração: Clarividência, René Magritte)


Minha escola de tradução foi aula vaga na faculdade, biblioteca, caderno, caneta e dicionário. (Isso se eu descontar minhas experiências adolescentes de tradução de letras de músicas, começando por Ray Charles e “Eu Não Posso Parar, Amando Você”).

Profissionalmente, comecei a traduzir por volta de 1986, por indicação de Julio Ludemir. Livrinhos de bolso, de banca-de-revista: histórias de amor, de faroeste. Alguns eram bem ruinzinhos. Outros tinham uma certa aventura, uma confiança narrativa que tornava suas fórmulas menos previsíveis. É bom começar a traduzir pelo material profano, barato, pedestriano mas bom de entretenimento. Muitos querem começar pelos autores que mais admiram, e dão com os burros nágua.

Assim, quando em 1987 recebi da Editora Récord um livro de L. Ron Hubbard, soltei dez foguetões comemorando o upgrade. Quando peguei um Isaac Asimov me senti os próprios deuses.

Traduzo por dinheiro, em primeiro lugar, e por amor à arte em segundo. (Acho que essa ordem está errada. Se o amor à arte desaparecesse eu não sei se faria, por dinheiro somente, uma coisa tão cansativa e tão consumidora de tempo.) Em todo caso, eu ainda acho quem me pague mais de 30 reais por lauda traduzida, e, como autor, meu sonho era encontrar quem me pagasse o mesmo por uma lauda escrita. Não existe. Se existisse, eu já teria publicado uns dez romances.

Isso me obriga a traduzir somente o que posso traduzir rápido: seria ótimo poder fazer 2 a 3 mil palavras por dia. Parei de traduzir livros durante anos, depois de 1994 porque me apareciam trabalhos que pagavam muito melhor. Fiquei traduzindo somente alguns contos das antologias que eu mesmo organizava. Mas era menos pela grana do que pelo gosto de “traduzir Fulano”.

E só voltei porque agora tem Google, tem tradutores online (mil), forums de discussão, o escambau. Hoje o ofício é bem mais aparelhado do que há 20 anos. E ainda assim a gente erra.

Quanto menos a gente relê e revisa mais a gente erra, e mesmo quando revisa mais, erra também.

Já vi editores reclamando ter recebido uma tradução onde nem corretor ortográfico foi passado, nem os erros de digitação foram corrigidos. E já entreguei originais assim, só para evitar uma desgraça maior. É arte, mas é profissão também, é “silviço”. Nem todo dia a gente acerta, e todo time grande tem uma tarde no Maracanã que é pra esquecer.

Cada um tem seu método, sua linha de montagem de-um-homem-só. Pense Carlitos apertando parafusos em Tempos Modernos. O arquivo final é enviado para a editora com a rubrica VALE ESTE e na mesma noite é enviado outro com a rubrica VALE ESTE 1.

Ninguém pense que depois de digitada a palavra FIM o trabalho acabou. O suposto fim é o fim da primeira volta no circuito. É o recomeço, o eterno retorno. Aquela frase problemática deixada para trás há quatro meses começa a reaparecer no horizonte.

Volto ao começo, e vou saltando ponto-a-ponto para resolver as dúvidas, uniformizar termos, escolher entre opções, fazer cair cada ficha.

O primeiro rascunho é um matagal de [dúvidas???], de [alternativa 1 / altern. 2 / alt. 3], que na primeira passada vão sendo deixadas para trás pra resolver depois, porque o importante no momento é não perder o ritmo.

Ritmo de prosa, principalmente prosa de ficção, romance de gêneros populares bem escritos, é muito difícil de readquirir depois, fazendo revisão salteada, um ponto aqui, outro ali. Ritmo, ou é na hora em que a frase está passando, ou nada.

Depois, volta-se ao começo. Guarda-se o livro original, e se revisa frase a frase o livro todo, considerado agora como um texto que vai falar só por si. É nessa fase que se dá o polimento final no ritmo e na melodia.

Ganha-se algum dinheiro. E alguma luz com isso.

Há alguns romances que prefiro não ler logo. Prefiro traduzir à medida que vou lendo, no ritmo da narrativa, traduzindo um parágrafo sem saber ainda o que há no parágrafo seguinte. Vou passando por cima das palavras que não entendo, nome de planta, nome de roupa, detalhe, deixo o original [entre colchetes] e sigo, para não perder o ritmo da narrativa. Resolvo na revisão.

Outros livros requerem leitura prévia, pra não se perder. No meu caso, ficção científica. A maioria dos textos de FC propõe universos novos, criaturas desconhecidas, termos técnicos inventados pelo autor, uma enciclopédia inteira de informações que não adianta buscar no Google, porque só tem naquela obra.

A maior parte dos neologismos de FC, quando o autor é atento, se resolvem na terceira incidência. O autor sabe que aquela palavra não existe, a gente não sabe o que é o verbo “grokkar”. Na sequência da história esses termos se auto-explicam. Mas é preciso ler na frente. Em geral, pelo menos um capítulo inteiro adiante, para poder fazer uma idéia geral de que mundo é aquele.

Em textos assim, o tradutor tem que ser o batedor de si mesmo, ir na frente analisando o terreno e voltando para informar o grosso da tropa. (O grosso da tropa é ele mesmo também.)

Traduzir é escrever. Traduzir é trazer. O tradutor é um escritor sem licença para inventar.







segunda-feira, 29 de agosto de 2016

4151) A arte de reescrever o passado (29.8.2016)



São dois temas bem antigões, que parecem não ter muito a ver um com o outro, mas têm:

1) A possibilidade tecnológica de fazer uma pessoa desaparecer de um documento, de uma lista, de um arquivo, de uma foto, de mil registros ao vivo em televisão.

2) A escolha entre uma decisão rigidamente técnica (baseada em provas concretas) e outra decisão que é jogo-de-cinturalmente política (baseada em opiniões). A distância entre uma cultura onde tudo fica registrado, o preto no branco, o cinzel na pedra, a tinta no papel, e uma cultura sem documentos, oral, maleável, baseada apenas na memória e no testemunho do momento.

Diz um personagem de Ted Chiang, em “The Truth of Fact, the Truth of Feeling” (2013):
Antes de adotar o uso da escrita, uma cultura tem os seus conhecimentos transmitidos exclusivamente de forma oral, e pode facilmente revisar sua própria história. Isto não é proposital, mas é inevitável: pelo mundo inteiro os bardos e os griots vêm adaptando seu material poético às platéias para quem cantam, e assim vão gradualmente ajustando o passado às necessidades do presente.

Essa é a idéia geral por trás da noção de que a História é escrita e ensinada pelos vencedores, de que são os vencedores que contam a sua versão dos fatos. “História” neste caso inclui até mesmo as epopéias, rapsódias, ou que nome tenham as obras de grande porte contando um episódio glorioso do passado.

O melhor relato de uma batalha tanto pode ser de um escritor do lado vencedor quanto de um escritor dos vencidos; e ambos serem igualmente grandes e necessários. E, mais uma vez, não há determinismo prévio nessas escolhas. Os Sertões de Euclides da Cunha foi uma obra encomendada pelos vencedores mas que acabou celebrizando o heroísmo dos vencidos.

De novo Ted Chiang:
A idéia de que relatos do passado não podem ser modificados é um produto da reverência que as culturas alfabetizadas têm com relação à palavra escrita. Os antropólogos nos dirão que as culturas orais entendem o passado de maneira diferente: para elas, suas histórias precisam menos de ser factualmente exatas do que de validar o entendimento que a comunidade tem sobre si mesma. Desse modo, não seria correto afimar que suas histórias não merecem confiança; suas histórias fazem o que eles precisam que elas façam.

Em 1984 de George Orwell temos uma das primeiras obras mais consistentes, na literatura distópica, na tentativa de imaginar como seria uma língua do totalitarismo. Orwell chegou a criar alguns termos que são usados hoje em qualquer contexto, como Novilíngua (Newspeak) etc. Sua visão do futuro, apesar de muito pessoal, parece uma tentativa de sintetizar precursores variados como Metropolis (1926) de Fritz Lang, Nós (1921) de Yevgeni Zamyátin, sem falar nas ditaduras judiciárias de Kafka (O Processo (1925), Na Colônia Penal (1919) etc).

No livro de Orwell o protagonista, Winston Smith, passa dias inteiros reescrevendo notícias da imprensa dando uma versão diferente de cada fato do passado, no mesmo número de linhas, para que novas páginas do jornal sejam reimpressas.

Nas fotos clássicas dos politburos stalinistas, um trio de líderes vira um quarteto, ou o contrário. A parede nem se altera. Na política, pelo mundo afora, uma chapa eleita numa entidade qualquer manda eliminar um indesejável dos arquivos, da fototeca, de tudo. De pincéis habilidosos a manipuladores digitais, hoje (a partir de hoje) é possível fabricar do nada uma prova incontestável de alguma coisa.

No mundo do Grande Irmão existe (tendo como combustível emocional o uso de jargão, de rituais de ódio coletivo a poder de slogans) a reescritura constante do Passado. Nas casas, nas escolas e no trabalho a mensagem é uma só. E se alguém tivesse motivação suficiente para recorrer a arquivos e bibliotecas, só encontraria confirmações variadas da versão oficial.

José Saramago brincou um pouco com essa noção de interferência em coisas já acontecidas com seu personagem historiador em História do Cerco de Lisboa (1989), que insere um não antes da narração de um fato num livro e muda a História. Tal como os viajantes no Tempo de Isaac Asimov em O Fim da Eternidade (1955), eternamente saltando de século em século para preservar a linha temporal para a qual trabalham, impedindo que o passado, sempre instável, possa lhes fugir ao controle.

Esses crono-agentes têm às vezes a missão de voltar a um século qualquer para entrar num avião, abrir o compartimento de bagagem em cima de uma poltrona, e empurrar uma pasta para  longe do alcance de alguém. Quando a pessoa procurar a pasta ali, não a encontrará, e vai imaginar que já a guardou em segurança. Com isto, inverte-se o resultado de uma importante reunião.

O minimalismo dessa coreografia (viajar séculos para empurrar um objeto quarenta centímetros para além de onde estava) confirma uma porção de teorias do Tempo que concordam todas com o chamado efeito “som de trovão”, devido ao conto de Ray Bradbury: a morte de uma borboleta pode reverter o resultado de uma eleição presidencial.

Um dos aspectos da guerra pelo Poder é a guerra pela narrativa da guerra. A guerra pelo futuro Saber, pelo futuro da informação. Na frase famosa de Orwell: “Aquele que controla o passado controla o futuro. E aquele que controla o presente controla o passado”.

Essa guerra ganhou agora uma dimensão maior no contexto vídeo-digital-eletrônico: um contexto fluido, impalpável, imaterial, muito parecido ao das culturas orais pré-alfabeto, pré-escrita. 

O tempo agora é de registros pós-papel, pós-Gutenberg, pós-documento com firma reconhecida.

Todo grupo centralizador, autoritário, quando se apossa do Poder dá início a uma completa desconstrução do Passado e reconstrução para confirmar sua narrativa das coisas.

Essa batalha nunca será dada como “ganha e perdida”, para usar a frase da bruxa do Macbeth. Essa batalha existirá enquanto existirem política humana, linguagem humana e memória humana.









quinta-feira, 25 de agosto de 2016

4150) Geneton (25.8.2016)



Um mês  atrás compartilhei no Facebook um pedido de doação de sangue para o jornalista Geneton Moraes Neto, que estava hospitalizado. Acendi a luz amarela de alerta, mas não houve novidade nos dias seguintes e acabei esquecendo. Não tínhamos contato direto (mais por culpa minha, que hoje sou um anacoreta com direito a redes sociais). Eu o via por acaso – fosse num corredor da Globo (nas vezes em que trabalhei lá), num lançamento de livro, ou algo assim. Nosso último papo tinha sido antes da sessão de lançamento do filme Brincante de Walter Carvalho e Antonio Nóbrega, aqui no Rio.

Geneton, como tantos de nós, era um Mágico de Oz comandado de dentro por um cineclubista. No caso dele, um cara moreno, barbudo e enfezado, que fazia uns filmes despirocantes no Recife, no meio de uma turma que incluía Jomard Muniz de Britto, Paulo Cunha, Amin Stepple – este último de Campina Grande, amigo meu de geração, que me apresentou aos demais. Quando Amin e Geneton surgiam caminhando lado a lado na calçada me lembravam Dom Quixote e Sancho Pança, um longilíneo e encurvado, o outro atarracado e hirsuto.

O superoitista virou jornalista. Acompanhei muitas das grandes entrevistas que ele fez para a TV Globo, e ver Geneton entrevistar era um pouco como ver alguém montar num boi brabo. Ao vê-lo formular certas perguntas a um ex-presidente ou a um general, minhas mãos se cobriam de suor frio. Eram perguntas que eu tinha vontade de fazer, mas morreria e não faria mesmo que por trás de mim, me bancando, estivessem não apenas a Rede Globo, mas o Pentágono, a KGB e os duzentos jagunços de Augusto Santa Cruz.

Perguntar é a arma do repórter (o que GMN foi na medula, ao fim e ao cabo; o que se orgulhava de ser), mas uma arma de alto risco, cuja bala pode inclusive inverter a direção depois de disparada. O entrevistado pode até ter um acesso apoplético (como o general Newton Cruz esteve a ponto de ter diante das câmeras) e não responder. Mas a pergunta pressupõe que existe uma resposta, que existe a questão; que existe, na multidão silenciosa que o repórter representa, a necessidade de ficar sabendo.

E não me refiro às perguntas sensacionalistas dos escândalos miúdos, das pegadinhas onde são feitas perguntas infantilóides, canalhamente indiscretas, perguntas que não passam de fofocas ou maledicências encomendadas.

São perguntas como (me deem licença para um exemplo provinciano) o jornalista Chico Maria fazia no seu programa “Confidencial” da TV Borborema de Campina Grande, olhando nos olhos do ex-prefeito Plínio Lemos e perguntando: “Por que o senhor mandou matar o vereador Félix Araújo?”, ou para Luís Carlos Prestes, e dizer: “Por que o senhor apertou a mão de Getúlio Vargas, que entregou sua esposa Olga Benário aos nazistas?”. (Ver aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/06/1123-confidencial-20102006.html).

É a pergunta feita de pessoa para pessoa – o respondedor carregando consigo o peso do passado, e o perguntador trazendo o peso do presente. A pergunta (agora num exemplo em escala nacional) da escola de Joel Silveira, mestre de Geneton, repórter batedor de perna na calçada, questionador, atrabiliário, pavio curto, cuja frase era uma guilhotina.

E, curiosamente, no trato pessoal Geneton desmentia a imagem de enfezado que passava num primeiro contato, porque era meio retraído e sempre afável, discreto como um verdadeiro cineclubista, um “prestador de atenção” na expressão de Jessier Quirino. Tinha o humor escarninho do recifense, mas nunca se alterava.  Entrevistando, era incisivo sem ser hostil, mesmo quando a gente sabia que ele não gostava do entrevistado.

O lado cinéfilo era o outro prato da balança que o fazia escapar das tentações do “furo de reportagem” como valor absoluto. O amor à Arte equilibrava nele o amor à Verdade. Feliz de quem (principalmente quem tem talento e/ou poder) consegue equilibrar Arte e Verdade, essas duas coisas aparentemente próximas, e na prática incomensuravelmente distantes, e em última análise apenas duas faces de uma coisa maior que ninguém enxerga.

Dos trabalhos de Geneton nos últimos anos vi apenas seu documentário sobre o tropicalismo, Canções do Exílio (comentei aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/02/2481-labareda-que-lambeu-tudo.html), e sua longa entrevista com Geraldo Vandré (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/10/2364-entrevista-de-vandre-4102010.html).

Pesco aqui um trecho de um longo post de Sérgio Rodrigues no Facebook, citando Geneton: “Não existe assunto desinteressante: o que existe é jornalista desinteressado.“ Vale para a literatura, vale para tudo.







segunda-feira, 22 de agosto de 2016

4149) Ainda o "Manifesto Incompleto" (22.8.2016)




(ilustração: Chaval)


Bruce Mau é um arquiteto e designer canadense, que em 1998 criou um manifesto artístico a que chamou “An Incomplete Manifesto for Growth” (Um Manifesto Incompleto pelo Crescimento). Uma série de dicas inspiradoras, ou de auto-ajuda criativa, desse tipo que não resolve nenhum problema específico, mas proporciona um clima intelectual positivo para o surgimento de novas idéias e novas práticas. Já postei aqui alguns itens desse manifesto (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/07/2620-incomplete-manifesto-2872011.html).

Hoje comento mais alguns.

Esqueça o “bom”. “Bom” é algo que já se sabe o que é.  “Bom” é tudo aquilo que a gente já concorda. O crescimento não é necessariamente bom. O crescimento é a exploração de recessos ainda não-iluminados que podem ou não render algo para nossa pesquisa. Enquanto você continuar preso ao que é “bom” nunca terá um crescimento verdadeiro.
BT: O bom é a repetição do que já foi testado e aprovado. A indústria vive disso, vive do que comprovadamente funciona e dá lucro. Mas toda indústria (eletrônica, mecânica, o escambau) tem o seu setor de pesquisa, onde se trabalha justamente com o que não foi testado ainda. Os artistas servem como uma espécie de setor de pesquisa, porque a indústria cultural trabalha somente com o “bom”, o testado e aprovado. Na televisão, por exemplo, a única maneira de fazer uma coisa radicalmente nova é convencendo os executivos (mentindo, de forma convincente) de que aquilo já foi feito antes e deu certo, ou seja, aquilo é “bom”.

Dizemos que os executivos de TV são burros, são bitolados, não têm cultura, etc., mas a verdade é que eles não querem botar a cabeça na guilhotina para defender uma coisa diferente, que eles não têm condições de saber se é “boa” ou não. Eles defendem o “bom”. Mas se você não é um executivo, se você é (ou imagina que é, ou tem ambição de ser) um artista, tem que esquecer esse critério. Talvez até surja um futuro conceito de “bom” a partir desse trabalho novo que está sendo criado. O excêntrico, o anticonvencional e o chocante de hoje podem se tornar o “bom” de daqui a 10 ou 20 anos.

Ou, como disse o poeta Chacal: “Só o impossível acontece. O possível apenas se repete.”

Colha idéias. Edite aplicações. Idéias precisam de um ambiente dinâmico, fluido, genroso, capaz de mantê-las vivas. As aplicações dessas idéias, por outro lado, precisam ser aperfeiçoadas pelo rigor crítico. Você tem que produzir um número de idéias muito grande em relação às aplicações.
BT: Existem muitas formulações diferentes desse princípio básico. A mais divertida é a de Hemingway: “Escreva bêbado, revise sóbrio”. O processo criativo tem esses dois movimentos. O primeiro é de expansão, quando procuramos fazer jorrar o maior número possível de idéias. O segundo é de contração, quando vamos podando aquele matagal até dar-lhe uma forma que nos agrada. No cinema, por exemplo, existe uma antiga lei chamada de “Lei dos 8 por 1”, em que para cada minuto de filme na tela é preciso filmar oito e cortar sete. No primeiro momento, deve predominar o entusiasmo, a alegria de inventar, a disponibilidade para incorporar o acaso, as venetas, os improvisos. No segundo momento, deve predominar o senso crítico, o equilíbrio, o olho voltado para o público.

Fique acordado até tarde. Coisas estranhas acontecem quando você vai longe demais, fica acordado por tempo demais, trabalha duro demais, e se separa do resto do mundo.
BT: O “ficar acordado até tarde” não precisa ser levado muito ao pé da letra. Para algumas pessoas, onze da noite já é o máximo da vigília. A idéia dessa sugestão é que um certo grau de cansaço físico e mental é necessário para que a mente faça tentativas mais vigorosas de ter as idéias necessárias. O conforto e o bem-estar nem sempre geram boas idéias. Um certo grau de cansaço faz algumas mentes (algumas, porque esses conselhos, claro, não sevrem para 100% da população) produzirem suas melhores idéias.

Já me aconteceu estar trabalhando num novo capítulo de um livro das 11 da noite até as 3 da madrugada, e na hora em que terminei estava tão cansado que quando apareceu a mensagem: “Deseja salvar as alterações neste arquivo?” eu cliquei “não”, e o arquivo foi pro espaço.

Eu estava tão cansado que pensei, drummondianamente, “amanhã recomeço”. Mas logo em seguida pensei: “amanhã terei esquecido tudo”. E refiz o capítulo todo em uma hora e meia, e ficou muito melhor do que antes, porque tudo ainda estava vívido na minha memória. O cansaço e a concentração se juntaram para “limar” tudo da mente e deixar só o essencial.

Pausas para cafezinho, corridas de táxi, salas de espera. O verdadero crescimento das idéias acaba se dando do lado de fora de onde o programamos, naquilo que o Dr. Seuss chamava “o lugar da espera”. Hans Ulrich Obrist organizou certa vez um simpósio sobre Arte e Ciência, com toda a infraestrutura de um simpósio (as festas, os bate-papos, os almoços, os traslados entre aeroporto e hotel) mas sem nenhuma conferência. Ao que parece, foi muito bem sucedido e deu origem a muitas colaborações fecundas.
BT: A experiência de Obrist é radical, e não duvido que tenha dado certo. Mas vamos tirar o foco do exemplo e trazer para o conceito abstrato. Num ambiente criativo (estúdio de cinema ou de música, laboratório, ensaio teatral ou de dança, etc.) é preciso que existam lado a lado o espaço oficial e o não-oficial, o tempo oficial e o não-oficial, e que as pessoas sejam estimuladas a se sentir à vontade nos dois. Quando fiz faculdade, aprendi muita coisa na sala de aula, mas aprendi mais ainda na biblioteca e na cantina. Durante filmagens ou gravações de TV, muitas soluções aparecem quando a gente “pede tempo”, anuncia uma pausa de meia hora e vai na padaria da esquina. Basta a mudança de contexto externo para os cérebros darem uma revirada no contexto interno e alguém erguer o dedo dizendo: “Que tal se...?”

Este conselho serve para equilibrar o anterior, o de ir até o limite da exaustão. Mudar de ares, fazer uma pausa, tudo isto também funciona. Basta ter em mente que nem toda pessoa é produtiva da mesma forma; e que até a mesma pessoa pode render melhor num dia sendo submetida a um tipo de esforço, e no dia seguinte, ou no ano seguinte, a outro tipo. O trabalho criativo é imprevisível. Se você faz um trabalho burocrático pode calcular (eu fazia isso quando trabalhava em escritório) quantos ofícios vai poder datilografar em uma hora. Mas não pode prever, se é escritor, quantas cenas ou quantos parágrafos vai produzir naquele dia, a menos que você ache que produzir duas páginas de bom texto e duas páginas de besteira equivalem ao mesmo rendimento.





sexta-feira, 19 de agosto de 2016

4148) O clichê narrativo da TV (19.8.2016)



("A Sucessora")

Quando falamos de realismo narrativo (seja na literatura, cinema, teatro, TV, etc) muitas vezes estamos contrapóndo esse realismo a histórias claramente fantásticas, absurdas, que não podiam acontecer no mundo como o conhecemos, desde As Sete Viagens de Sindbad até Godzilla, desde Alice no País das Maravilhas até Harry Potter. Todas estas histórias são não-realistas, mostram coisas que não poderiam acontecer no nosso mundo.

Toda narrativa realista, no entanto, é sempre em certa medida anti-realista, porque tem um grau inevitável de artificialidade. Não basta evitar coisas impossíveis (pessoas voando, gente virando bicho, etc.). Seria preciso também, para um estrito realismo, não usar certas convençõezinhas que vão se cristalizando com o passar do tempo, detalhes com alto grau de artificialismo e improbabilidade, mas que a gente aceita porque já fazem parte das regras do jogo.

Downton Abbey, por exemplo: é ou não uma história realista?

Digressão para quem não assiste a série da Netflix: ela conta a história de uma família aristocrática inglesa e seus criados, a partir de 1912. A vida de luxo dos patrões entrelaçada à vida modesta dos serviçais, as intrigas, os amores e os ódios.  Ambição, traição, política, sexo, casamentos por interesse, heranças milionárias disputadas a ferro e fogo, crime, guerra.

Downton Abbey é uma mistura de novela de época da Globo e filme de James Ivory. Realismo de terno e gravata. Tudo em sua dramaturgia tem uma preocupação de ser o mais conservador possível, o mais mainstream possível, sem desvios do que há de mais básico em matéria de roteiro, diálogo, montagem, cenários.

É um novelão que se vale desse quadradismo para impor seu verniz de realidade. É realista pelo fato de nada haver de fantástico, sobrenatural, impossível dentro dela. Fora isso, é totalmente artificial. Ou seja: não realista.

Um recurso comum destas séries, em cenas de jantares, festas, etc., é vermos dois personagens lado a lado, conversando na mesa algo que, pelas circunstâncias físicas (e acústicas) do momento seria impossível não ser ouvido pelas pessoas vizinhas ou do lado oposto da mesa. E no entanto eles o fazem sem que ninguém pareça escutá-los.

É um pouco como aquele recurso clichê da farsa teatral, do vaudeville, em que dois atores estão sentados lado a lado num sofá e um dos dois finge estar distraído enquanto o outro comenta para o público: “Essa agora foi boa! Como é que eu vou convencer esse idiota de que estou falando a verdade?!”, e a platéia aceita que ele não está sendo ouvido pelo outro cara ali, a centímetros de distância.

Ou seja: em momentos assim a conveniência narrativa (a necessidade de passar uma informação ou comentário para o público) se sobrepõe ao realismo.

Gêneros populares (os velhos melodramas teatrais, as comédias, os esquetes cômicos de TV-de-auditório, etc.) são cheios de pequenos truques assim, de pequenas fórmulas para resolver situações. O público habituê vai formando também seu repertório de experiências, e este vira um repertório de expectativas.

O uso desse tipo de clichê cria uma cumplicidade, uma espécie de piscadela entre o diretor/autor e o público.

Daí que, quanto mais um gênero vai se firmando junto a um público, menos realista ele é. “Firmar-se” implica em propor convenções narrativas que o público primeiro aceita, e depois passa a esperar (ou até a exigir). O gênero se torna maneirista, formulaico, ou que outro rótulo alguém queira dar.

Downton Abbey, apesar de toda sua pompa arquitetônica, gastronômica e sartorial, não é menos useira e vezeira dessas fórmulas do que qualquer novelão do SBT. 

As mesmas velhas figuras de linguagem do melodrama mexicano ou cubano estão todas ali.

A chegada repentina, em plena festa, do herói dado por morto.

O casal que vive às escaramuças mas vê-se que os dois migram irresistivelmente na direção um do outro.

A noiva abandonada diante do altar.

A pessoa que entra num aposento já falando em voz alta com alguém que imagina estar ali, e se interrompe quando vê alguém inesperado.

O beijo proibido que, nem bem começa a acontecer, a câmera já corrige o ângulo para mostrar alguém olhando pela vidraça da janela. (E sua contrapartida: o beijo triunfal com a câmera descrevendo um círculo completo em torno dos beijantes.) 

Clichês narrativos são sempre úteis. Mas (que coisa curiosa) acho que são mais úteis num filme de um maluco como Alejandro Jodorowsky ou dos Irmãos Coen do que num novelão-das-oito como Downton Abbey.

Quando Jodorowsky usa, em filmes como El Topo, Santa Sangre, A Montanha Sagrada e outros, alguns clichês do cinema popular, isso ajuda o espectador, meio perdidão no meio de uma performance surrealista, a pegar de volta a estrada principal da narrativa. Em histórias assim o clichê surge como se fosse uma fala em nosso idioma no meio de uma algaravia em língua estrangeira.  “Ufa, que bom, isso eu entendo, agora já posso me situar.”

Downton Abbey ou as novelas das 7 não precisariam disso. Tudo ali já é contado numa língua que qualquer um entende. Por que, então, a novela de TV recorre tanto ao clichê?  Não é para trazer o público de volta, é para impedir que ele se afaste um milímetro sequer. O clichê narrativo é um ritual milenar no qual autores e espectadores se refestelam na zona-de-conforto do lugar comum.

Narrativas assim tornam-se engessadas num círculo vicioso de pequenos cacoetes que não têm mais nada a ver com o realismo ou naturalismo propriamente ditos (= histórias onde tudo acontece como na vida).

Claro que a arte é o contrário da vida – a habilidade consiste em dar a impressão de que é a vida que está ali, e não uma porção de atores dizendo falas decoradas.

É nessa área que surgem as queixas tão frequentes dos espectadores de novelas brasileiras sobre a ausência de olho-mágico nas portas, sobre o fato de todos os personagens se cruzarem “casualmente” sempre na mesma lanchonete, sobre a mania das pessoas irem discutir na casa das outras ao invés de telefonar.

É fórmula, é artificialismo, é tudo para facilitar o trabalho do autor. Mas é nesses momentos que a dramaturgia se revela como um gato escondido com rabo de fora.








terça-feira, 16 de agosto de 2016

4147) O apologista Giuseppe Baccaro (16.8.2016)



Perdemos na semana passada a pessoa única e inimitável de Giuseppe Baccaro, falecido aos 86 anos num hospital do Recife.

Para a imprensa em geral, nos obituários que li agora, ele era um artista, um marchand e colecionador de artes, italiano, radicado no Brasil desde os vinte e poucos anos, um sujeito ligado desde sempre ao mundo das artes plásticas. Passou uma longa temporada em São Paulo, e se fixou por volta de 1970 em Olinda, onde criou a Casa das Crianças de Olinda, uma entidade assistencial.

O outro lado de Baccaro é a sua ligação com o cordel, a cantoria de viola, a xilogravura, outras formas de poesia popular.

Foi por essa via que nos conhecemos, por volta de 1976, quando ele realizava (praticamente sozinho) um festival de violeiros em Olinda e eu trabalhava no Congresso Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Ele nos visitou certa vez, para ver o Congresso, e começamos aí um diálogo que durou muito tempo.

Havia uma certa hierarquia na relação. Baccaro era 20 anos mais velho do que eu, que não passava de um estudante universitário, um diletante que sabia preparar bons motes. Ele tinha o poder econômico, mas, muito mais do que isso, tinha “a Força”. Aquela energia inexplicável e fascinante que leva certos indivíduos a realizarem coisas, compulsivamente, passando por cima de pau e pedra, dobrando os outros à sua vontade, visando um objetivo maior.

Incansável, mandão, impaciente, afável, risonho, onipresente, era aquele tipo de cara capaz de armar sozinho a lona de um circo.

O eterno sotaque italiano brotava com força a cada contratempo; “Ma no é possível!”. E arregaçava as mangas, pegava a gente pela orelha e levava pra consertar.

Nossa convivência se consolidou em 1979, quando ele me chamou para participar da Viagem dos Poetas ao Brasil, uma excursão de cantadores patrocinada pela Prefeitura de Olinda, na gestão de Germano Coelho.

Eu quase endoideço, porque Baccaro ficava me incumbindo de uma maratona de tarefas para as quais eu era totalmente despreparado. Se sou tímido e desorganizado hoje, imagina 40 anos atrás.

Durante menos de um mês, um ônibus cheio de repentistas realizou shows sucessivos em (nesta ordem) Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belém, São Luís, Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa e Olinda.

Entre as duplas que fizeram a viagem, estavam Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio; Lourival Batista e Lourival Bandeira; Otacílio Batista e Oliveira de Panelas; Luís Campos e Luís Antonio; Zé Vicente e Manuel Estêvão; Pedro Bandeira e Daudeth Bandeira; e vários outros.

Eu fui junto, como uma espécie de assessor de imprensa, e levei comigo minha irmã Inês e minha esposa na época, Arly Arnaud, “Lili”. As duas frequentavam cantorias comigo há anos e eram amigas da maioria dos poetas. Ajudavam a vender os folhetos e xilogravuras, a apartar as brigas.

Baccaro mexia em tudo, se preocupava com tudo: a ordem das duplas que iam cantar, o som, a iluminação, o palco, os temas a serem sorteados. Era tempo da ditadura, governo Geisel, e ele insistia: “Vamo falar de política!  Vamo soltar o verbo!” Eu ponderava: “Baccaro, e se prenderem o grupo inteiro?”  E ele: “Ah! Melhor! O mundo todo fica sabendo dessa patifaria que tem aqui!”.

Não prenderam ninguém, embora tivéssemos aqui e ali uns arranca-rabos – quando cantamos nos degraus do Teatro Municipal de São Paulo, às quatro da tarde, parando o trânsito, a polícia veio cortar o nosso som.

Fizemos apresentações em palco ao ar livre para multidões gigantescas na Praça da Sé (SP), na Feira de São Cristóvão (Rio, numa manhã chuvosa de domingo), no Campo Grande (Salvador).

Quando chegamos em Brasília, Baccaro anunciou que no dia seguinte iríamos ser recebidos pelo Ministro da Educação, ao qual ele entregaria um manifesto pela poesia popular. Sempre interessado em qualquer chance para produzir frases bombásticas, perguntei se precisava de alguma coisa. “Só que no me atrapalhe,” disse Baccaro, e passou a noite batucando o manifesto numa máquina de escrever emprestada.

Alguns anos depois ele repetiu a Viagem, e desta vez não fui. Inês foi, e talvez seja a única pessoa da equipe a ter participado das duas.

Quando sentávamos para conversar, Baccaro sempre deixava clara sua impaciência com o descaso com que o Brasil tratava a poesia popular.

Eu tinha menos de 30 anos e ainda estava numa fase meio deslumbrada, só pensava em rimas, em motes, em inventar novos gêneros. Baccaro passava a mão pelo cabelo meio longo e deblaterava contra a estupidez das autoridades, a burrice dos intelectuais, a desinformação da imprensa, os preconceitos da classe média.

“São uns idiotas, uns imbeciles,” bradava ele. “Têm a poesia mais viva do mundo, os poetas mais geniais, e não dão valor.” Acho que herdei dele (espero ter herdado) esse inconformismo com a imbecilidade oficial brasileira. Principalmente os nordestinos, tão deslumbrados com o folclore do Sudeste.

Nas gráficas da Casa da Criança publiquei meu folheto Cantoria: Regras e Estilos, que distribuíamos de graça na “Viagem” de 1979, e em 1981 ele me deu de presente uma tiragem enorme de Cabeça Elétrica, Coração Acústico, com letras de minhas canções.

Era um convertido, um desses estrangeiros que renascem ao descobrir o Brasil. Como o francês Raymond Cantel, criador da maior biblioteca de cordel da Europa, que entrevistei no Hotel Tambaú e depois levei à “Estrella da Poesia”, a editora de Manuel Camilo dos Santos, de quem ele era o maior fã. Como Idelette Muzart, a francesa que uma magia de cordel transformou em paraibana por amor à poesia popular. Como o holandês Joseph M. Luyten, que editou na Hedra uma excelente coleção de antologias de cordel (eu organizei a de Raimundo Santa Helena). Como Claude Sicre, o rapper dos ”Fabulous Trobadors”, que ao ressuscitar na Provença o idioma occitano descobriu o coco-de-embolada do Nordeste. Como tantos outros que tiveram de vir de longe para nos mostrar a poesia que se produzia ao nosso redor.

Era artista plástico, marchand, colecionador, mecenas, empresário? Para mim era e será Baccaro, apologista da cantoria de viola.