(ilustração: Toinho Castro)
Um dos temas que correm ao longo do filme de
Kleber Mendonça Filho é um confronto entre modo-de-ver analógico e modo-de-ver
digital, a partir da entrevista inicial de Clara a duas jornalistas. Clara se
dá bem com todos. Passa músicas em pendraive, coleciona vinis, publicou entre
outras obras um livro sobre Villa-Lobos. Ela mostra a raridade de um vinil, que
vem com um recorte de jornal dentro, uma matéria sobre John Lennon.
Tudo pode ser analógico ou digital, e por
enquanto é perda de tempo inventar pretextos para abrir mão de um dos dois. Não
precisa.
Você precisa de uma informação exata mas
obscura. É 2016, e você vasculha um arquivo kafkeano de pastas de plástico e
caixas de papelão. Ali deve ter uma nuvem de poeira e ácaros que se for espalhada
dá pra cobrir o bairro. Mas o analógico tem a sobrevida do material em que é
registrado, e está tudo lá. A informação é encontrada.
E noutra situação você precisa da leveza e
instantaneidade do equipamento digital para filmar de improviso, em condições
antagonísticas, para registrar o espanto, o choque, a fúria balbuciante de quem
pisou numa armadilha pontiaguda da própria esperteza. Celular apontado ao vivo,
quem sabe transmitindo direto não só para uma audiência, mas deixando uma cópia
de tudo. Isso, só a imagem digital pode.
Somos (eu sou da geração de Clara) pessoas
analógicas num mundo cada vez mais digital, mas não é isso que rejeitamos nesse
mundo. Rejeitamos, quando é o caso, uma certa falta-de-passado que esse mundo
tem, porque às vezes temos a impressão de que a foto digital, o selfie, o
instagram, existe apenas para ser visto por alguns segundos, “curtido”, e
esquecido para sempre.
O instante, o momento, a faísca do
presente, tudo isto é sagrado, e aí estão o haikai, o repente e o I-Ching. Mas
veja-se que todas essas girândolas em honra do presente foram feitos com a
pólvora de muitas gerações, de tradições inteiras. Porque o instante só vale se
houver, no instante em que o vemos, um passado todo, inteiro como uma pedra.
A família de Clara gosta de curtir
imagens, de comentar fotos antigas, de puxar fios de gente enganchados na
memória. A imagem puxando a história. Uma imagem parada põe uma história em
movimento. Histórias da sua vida e outras. Momentos de reencontro e armistício entre
as gerações. Pessoas que se gostam, mas que divergem, assoprando as brasas do
afeto. Clara nem é um modelo de mãe nem uma desorientada. Ganhou um certo
desdém pela vagarosidade mental alheia, mas deve ter sido mais pelas barras que
passou do que por qualquer esnobismo de origem.
Clara vive bem, ali, e vive de rendas. Afirma
ter outros imóveis, mas aquele é o lugar onde ela gosta de viver. A família,
claro, é sempre a última que leva isso a sério. Qualquer grande agente
imobiliário pode contar a meia-voz histórias de divisões de espólio que
deixariam Agatha Christe ocupada por uns cem anos.
Clara não quer ser ameaçada, nem
incomodada por surubas ao som de um pancadão. Ela se surpreende a saltar da
cama no meio da noite e correr para trancar por dentro a porta da frente. Clara
já sabe que cada fase da vida é uma guerra diferente, e o choque que a atinge em
pleno peito é uma bomba de efeito moral. Ninguém quer destruí-la, apenas
removê-la.
O mundo onde eu mandava está sumindo pouco
a pouco, pensa cada um deles ou delas. Mas dali ninguém os tira. E mesmo que a
gente não veja a intelectual de Boa Viagem e os nobres de Downton Abbey com a hipotética simpatia com que vemos o sem-teto Adoniran
Barbosa e seus comparsas, Mato Grosso e o Joca, não podemos negar que todos têm
motivos mais do que concretos para fincar o pé naquele canto. Não faríamos o
mesmo?!
Uma série formalmente conservadora e
tradicional como Downton Abbey nem
por isso deixa de mostrar com certo distanciamento e humor os comportamentos
absurdos de nobres e de criados no tempo em que se vivia em conjunto a fantasia
que podemos chamar de “a Persuasão Aristocrática”, a noção de que os nobres eram
seres superiores e deviam ser tratados como pessoas infinitamente preciosas
pois cada minuto de suas vidas era indescritivelmente importante.
O nobre verdadeiro perde o castelo mas não
perde a nobreza. É um patrimônio histórico de grande beleza, mas por alguma razão
está se esboroando.
O que une mesmo os personagens do filme de
Kleber e da série de Julian Fellowes nem é a posse de uma edificação de pedras
e argamassa, é a continuidade afetiva de um passado. O apartamento de Clara é
uma reprodução em 3-D de cada momento vivido ali, com os parentes mais velhos
que já se foram, a história dos amores, das trepadas, dos dramas, dos perigos,
das canções, dos filhos criados, das mortes e das sobrevivências. Deixar aquela
casa será como deixar aquele corpo. Ela sabe que um dia vai acontecer.
(continua)
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