quarta-feira, 7 de setembro de 2016

4156) "Liturgia do Fim"(7.9.2016)




Não existe “literatura nordestina” se por este rótulo entendermos um corpo literário homogêneo, ou pelo menos composto apenas de obras parecidas umas com as outras. Como se todos nós tivéssemos que pedir uma bênção obrigatória à seca, ao cangaço, ao sertão, à cantoria de viola, em cada livro publicado. Tivéssemos que usar um algum crachá verbal de nordestino, para que os postos de acesso nos identifiquem sem fazer muito esforço. (“Como assim, ficção científica? Tem ficção científica no Nordeste? O foguete é feito de rapadura?”)

Vai daí que eu vejo com orgulho e alívio histórias feitas por nordestinos e que fogem a esse samba-de-uma-nota-só, que já comparei com os antigos e célebres desfiles de “misses em trajes típicos”. Se deixar, a literatura (a pintura, o rock, qualquer coisa) vira justamente isso. Um desfile de gente esteticamente idealizada trajando clichês de fácil leitura.

O romance Liturgia do Fim (São Paulo, Tordesilhas, 2016) de Marília Arnaud se passa como numa elipse com dois focos. Um deles, o mais pesado e mais atrator, é a fazenda de Perdição, num sertão remoto do Brasil. O outro é a capital, descrita porém jamais nomeada. É nordestino? É, apenas porque não precisa ser.

Marília escolhe uma chave narrativa já escolhida, também com sucesso, por José Nêumanne em O Silêncio do Delator e Débora Ferraz em Enquanto Deus Não Está Olhando, ambos já comentados aqui no blog. A chave narrativa é limar os nomes próprios: de cidades, de logradouros, de pontos de referência, de bares, de bairros, de ruas.

O romance acontece num meio geográfico e físico onde nada parece ter nome, mas que o autor(a) visualiza com precisão. Omitindo, sempre que pode, os nomes próprios, nem por isso ele faz a história mergulhar num limbo de indiferença cenográfica. O leitor sente a cidade sem precisar usar a citação fácil do simples nome. Nestes dois livros que citei, eu só notei a ausência dos nomes próprios lá pela página 50 ou 100, porque julgava estar vendo tudo. Claro. Tudo acontecia em ambientes que me eram familiares.

Era aquela proposta de Flaubert para Maupassant: “Você precisa ser capaz de descrever o físico e a psicologia de Fulano de Tal, garçon do bar que a gente frequenta, de tal modo que, apenas descrevendo-o, sem nomeá-lo, qualquer um da nossa turma possa exclamar de repente: Oxente, isso aí é Fulano!”

Perdição; é o nome da localização imaginária da tragédia meio grega de Marília Arnaud, um nome mais do que verossímil num Estado que tem cidades chamadas Solidão, Desterro, Misericórdia. A capital, onde o narrador vai estudar e construir família depois que vem do sertão, não recebe nome, mas é vista assim:

“De uma balaustrada na parte alta da cidade avistavam-se um rio e um porto desguarnecido de barcos, igrejas com seus cruzeiros quinhentistas ornados de gárgulas, o pátio interno de um mosteiro com seu jardim de fontes e bancos de pedra, uma lagoa cingida por palmeiras-imperiais que varriam um céu de nenhuma nuvem. Em algum lugar o mar me aguardava.”

Ninguém que conheça a velha Parahyba pode confundir isto com qualquer outra coisa. E quem não a conhece, não importa: é capaz de compor um cenário coerente com essas instruções verbais.

E é desse jeito que o que há de nordestino brota, com descrições da natureza feitas com a riquezas de nomes e espécies e tipos “da fauna e da flora”.  A profusão de imagens neste livro lembra alguns livros de Osman Lins, um prosador de registro elevado e com uma atenção barroca à Natureza; ou aquelas páginas catalográficas de Guimarães Rosa em Corpo de Baile.

Os nomes das coisas têm uma poesia em si. Uma página aberta rigorosamente ao acaso:

“Por todos os lados se viam mangueiras, bananeiras, canafístulas, jaqueiras, goiabeiras, angicos, oliveiras, paus-d’alhos, umbuzeiros, umburanas, limoeiros, laranjeiras, abacateiros, um amontoado de folhagem ensopada de luz, um emaranhado de ramos, brotos e galhos, um esbanjamento de copas floridas, de inflorescências em cachos, espigas, umbelas, botões em ânsia de desabrocho, e nas encostas ondulavam ao vento as esponjinhas das caliandras, os talos das damas-da noite e dos cipós-de-leite, as pétalas das vassourinhas, chananas e velames, um delicado pasto de néctar e pólen à espera dos afagos das abelhas”.

São os trechos férteis do sertão, ou de qualquer lonjura remota da Paraíba.

Inácio, o narrador, afirma ter levado dez horas de viagem de Perdição até a capital, num ônibus pinga-pinga. E quando uma Natureza de nomes tão familiares é literariamente compactada e posta em movimento, com o passar da história a gente percebe o quanto tudo isso existe de fato, num lugar onde alguns só imaginam haver o ermo e a desolação.

Essa natureza áspera mas exuberante é trespassada pela tragédia humana das pessoas. Neste aspecto, temos por um lado a crônica terrível da tragédia do patriarcado rústico, situação que evoca Raduan Nassar, numa reiteração de fatalidades.

O peso moral do cristianismo, somado a um certo puritanismo que não consegue conviver com a exceção à regra. Um puritanismo tiranizado pelo homem e administrado pela mulher.

Religião é uma coisa que exerce um peso terrível sobre quem acredita nela. E acreditar nela sem ser capaz de ter sentimentos bons, como ocorre com tantos, deve ser pior ainda. Ou então quem acredita duvidando, porque nenhuma resposta encerra a questão, nenhuma promessa é totalmente cumprida.

Não exagero vendo certos traços da tragédia pessoal de Augusto dos Anjos na de Inácio, já que ele cita o poeta mais de uma vez. Sua história é uma reiteração do drama inicial de “A Árvore da Serra”: “Não mate a árvore, pai, para que eu viva.”  Vejo rastros do Eu também na letra inicial dos nomes de um grupo crucial de personagens, mas deve ser viagem minha.

Se o romance de Marília Arnaud pertence a algum gênero, não é um gênero definido por superficialidades paisagísticas, mas por um conflito muito mais primal e mais remoto. São, por exemplo, as histórias sobre O Confronto Final Com o Pai Terrível.  Certo tipo de pai parece tornar isso inevitável: o velho Karamázov, o velho Lear, o velho Kafka.

O romance tem algo de façanha ao conseguir sustentar um discurso tenso, poético, elevado, do começo ao fim, sem abrir mão do regional, mas um regional amplo, com muitas camadas de vocabulário e de elocução. Seu arcabouço é uma verbalização entrelaçada com esmero. A fazenda como Éden violentado, a cidade como cárcere e rotina, tudo isso se entretece numa narrativa ao estilo do reino do vai-e-volta, saltando para o presente, o passado remoto, o passado esquecido.

A tragédia que impulsionou a história (e para a qual a história se reencaminha o tempo inteiro, acompanhando o percurso de volta do narrador) é mais velha do que a Bíblia, não é nordestina nem outra coisa. É um atrator convulso, uma agonia que não dorme, e que faz um personagem como Inácio desperdiçar toda a vida que a cidade lhe oferece, porque restou aquele nó doloroso no passado que não permite que ele se concentre em coisa nenhuma.








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