segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

4051) Expressões paraibanas (16.2.2016)




São expressões tipicamente paraibanas, ou de Campina Grande. Não sei até onde se estendem pelo resto do Nordeste. Mostram o grau de inventividade da nossa linguagem diária, uma linguagem de imagens fortes, sem preocupação de verossimilhança mas com impacto imediato.
 
“Se fosse uma cobra, tinha me mordido!”. Usa-se quando se está procurando algum objeto e então se percebe que ele estava bem próximo, ao alcance da mão.

“Isto aqui tem dois “v”: vai e volta”. Advertência muito comum ao se emprestar um objeto qualquer, deixando claro que é para ser devolvido.

“Rouba até pano de pereba”. Diz-se do ladrão compulsivo, ou completamente sem escrúpulos.  “Olha, você tenha cuidado quando andar aqui na vizinhança, porque esse pessoal daqui rouba até pano de pereba.”  “Pano de pereba” é aquele pano com que os mendigos envolvem e protegem as feridas que têm no corpo: ou seja, a última coisa que a alguém ocorreria roubar.

“Felicidade que...” Equivale, precisamente, a: “Ainda bem que...”, “felizmente que...”, e deve ser uma forma abreviada de algo como “A felicidade [=sorte] dele foi que...”  Ex.: “Vocês souberam?  O carro de Fulano capotou ontem na estrada.  Felicidade que vinha outro carro atrás, e as pessoas socorreram eles.” “Houve um começo de incêndio no armazém, ontem de noite.  Felicidade que um vizinho viu a fumaça e telefonou pros bombeiros.”  Há uma variante mais próxima da linguagem comum:  “Por felicidade, eles tinham levado as coisas de valor para outro lugar, os ladrões só levaram umas bobagens.”

“O remédio de um doido é outro na porta”. Quando alguém começa a se portar de maneira extravagante, a melhor maneira de lidar com ele é usando a mesma tática. 

“É um só, como a roupa de Jesus”. Diz-se de algo que nunca varia.  "Faz seis meses que eu cobro esse dinheiro, e a conversa de Fulano é uma só, como a roupa de Jesus – mês que vem eu pago, mês que vem eu pago..."  Já vi cantadores de viola dizerem de algum colega: “A cantiga de Fulano é como a roupa de Jesus, é uma só, a vida toda”. Há duas explicações para essa idéia: 1) A roupa de Cristo não tinha costuras, era feita numa única peça (daí vem a expressão "clâmide (túnica) inconsútil (não costurada)”, usada por Emilio de Menezes num soneto famoso); 2) A roupa de Jesus foi a mesma desde a infância até a idade adulta – a acreditar nesta versão, a túnica teria aumentado de tamanho, por licença poética ou autorização divina, à medida que ele foi crescendo. Penso que a primeira idéia tem alguma origem clássica ou lendária, e que a segunda brotou por confusão das pessoas sobre o conceito de que "a roupa era uma coisa só". 





domingo, 14 de fevereiro de 2016

4050) Doce pássaro (14.2.2016)



Doce pássaro da juventude, comido no espeto à beira de uma fogueira de acampamento de praia, eu com a pele inflada de bolhas dolorosas, antes daquela noite de insônia-à-milanesa em que pensei a frase “ninguém desliga o mar”. Ribaçã salgada e suculenta, mordida com fome no balcão da Rodoviária velha, antes do copo espumante e gelado da décima saideira da noite. O corvo eterno, leit-motiv de madrugadas e firmamento, e o abutre que numa lenda alternativa era devorado todo dia pelo fígado de Prometeu.

A juventude é pássaro porque voa, porque logo se faz passar? Outra leitura possível é: a juventude não é algo que somos, é algo que de vez em quando pousa em nós, quando lhe dá na veneta, e vai embora mal erguemos os olhos. Todo sujeito tem o direito de sentir-se jovem uma vez por década, como acontece com certas torcidas de futebol. Doces pássaros, salgados pássaros, crocantes frangos à passarinho, desbastados por incisivos cuidadosos, vasculhando em cada minicâmara e desvão no meio de tantos ossinhos, pela carne, a tenra carne, a carne enquanto está quente e tem tanto a nos dar. 

Sweet bird of youth, é o nome do filme baseado na peça de Tennessee Williams. Por que a juventude é um pássaro?  “Happiness runs”, canta Mary Hopkin, a mesma que fez sucesso cantando que “bons tempos foram aqueles” (“Those were the days”). Uma cena que eu vi uma vez no trabalho, o diretor dizendo: “Olha, pessoal, nós temos exatamente a quantidade de película necessária para esse último take, são trinta e poucos segundos, vamos ensaiar direitinho, porque é uma só, sem poder errar.” Pense em trinta segundos pra passar voando. Pois mesmo assim é a juventude da gente. O tempo em que a gente é perigoso, e não existe um tempo melhor do que esse.

É um pouco como tibungar em piscina: você pula, segue-se um absurdo, e daqui a pouco você volta a ser você mesmo lá adiante, vivinho da silva. A mocidade passa rápido. É interessante que a juventude não lamente a perda da infância, pelo menos no mundo da poética pop, mas a maturidade lamente tanto a perda da juventude.  Os Rolling Stones (erodidos, sugados, reciclados por uma Ultra Ciência a serviço das empresas-de-tour) já fizeram rockzinhos adolescentes para umas quatro gerações sucessivas de jovens britânicos, que dificilmente não serão expostos a essa banda em algum momento da sua vida social. Você não pode fazer a juventude durar eternamente. Acho que se dermos um balanço bibliográfico serão bem poucas as histórias em que alguém aceita a imortalidade sem exigir que seja acompanhada de aparência jovem. Ninguém quer viver mil anos ao preço de envelhecer mil anos.



sábado, 13 de fevereiro de 2016

4049) Pedras de Roseta (13.2.2016)



No blog da London Review of Books, o redator comenta a publicação de parte da tradução chinesa de Finnegans Wake de Joyce (o livro deverá sair em 3 partes). A tradução foi feita por Daí Congrong, uma heroína. É de se imaginar como terá ficado em mandarim este famoso trecho, logo na abertura: “The fall (bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!) of a once wallstrait oldparr is retaled early in bed and later on life down through all christian minstrelsy.’

Que tipo de conhecimento de uma obra literária pode ter uma pessoa que não pôde ler o original, mas conheceu várias traduções diferentes?  A leitura de cem traduções de um só poema, como li na coletânea O Soneto de Arvers, teria ainda mais impacto se a língua original fosse indecifrável. Em francês, ainda dá pra checar.  Francês é, em nossa cultura, uma língua meio transparente, dá pra avistar alguma coisa através dela, pela sua ubiquidade na imprensa, na moda, na propaganda, nas artes. Dá para, meio pedestrianamente, comparar um soneto em francês e sua tradução brasileira. Todo mundo que estudou nos colégios onde eu estudei arranha um francês suficiente para entender os títulos das faixas de um disco de Françoise Hardy. Mas alemão, russo e chinês (pelo menos para mim) são um muro de berlim, uma cortina de ferro e uma muralha da china. Como posso afirmar que já li alguma coisa de Brecht, de Maiakóvsky ou de Lao Tsé? 

E no entanto li, sim. Alguma coisa passa numa tradução. Se não o glossário das palavras, pelo menos o dicionário das coisas. O que depender de visualização de imagens, ou do jogo de idéias, ou até um jogo de palavras que podem ser substituídas por outras totalmente diferentes na tradução, porque não é delas que se trata. Tudo que puder ser lido pode ser traduzido. (A ordem nesta frase pode ser qualquer uma, porque toda leitura é tradução.)

Claudio Weber Abramo organizou para a Editora Hedra (2011) uma edição crítica com traduções de “The Raven”, o poema de Edgar Allan Poe, em português, espanhol, francês e italiano. A cada versão que lemos desaparece um detalhe e reaparecem dez outros. O poema fica indo e voltando. O poema é algo que a gente reencontra em qualquer língua que consiga ler com fluência. É feito de palavras, mas não são as palavras em si, ou não poderia pular de língua em língua. É algo que é construído a partir das palavras. É ele que faz algo às palavras, ele as engata e modula e dá estrutura e cria uma frase que nenhuma palavra daquelas entende por inteiro. É tudo que sobrevive às traduções, paráfrases, imitações, transcrições defeituosas.





quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

4048) T. S. Eliot e o romance policial (12.2.2016)



É um lugar comum dos estudos críticos sobre o romance policial invocar os nomes ilustres que a ele se dedicaram, que lhe deram uma importância maior do que a que lhes era atribuída pelos críticos de sua época. Nomes como W. H. Auden, Jorge Luís Borges, Vladimir Nabokov, Guimarães Rosa e muitos outros eram leitores atentos de histórias de detetive. A esta lista veio se somar T. S. Eliot. De acordo com um artigo de Paul Grimstad em The New Yorker (http://tinyurl.com/zgsssq5), a publicação de The Complete Prose of T. S. Eliot, pela Johns Hopkins University Press, recuperou um grande número de resenhas que ele publicou anonimamente no jornal The Criterion, em 1927. O sisudo poeta não apenas comenta os livros que lia, como cede à tentação de propor regras para esse tipo de literatura.

Não deixa de ser curiosa a adição do seu nome a essa lista. Eliot era o mais inglês dos norte-americanos. Essa dupla filiação espiritual e literária está presente também em grandes nomes do romance detetivesco, com Raymond Chandler e John Dickson Carr à frente, norte-americanos que viveram na Inglaterra. O fato dos ingleses verem essa literatura com respeito deve pesar. Chandler sempre se queixou de que nos EUA era visto como um simples autor de histórias de detetive, ao passo que na Inglaterra era tratado de igual para igual por romancistas de primeira linha.

Foi Eliot quem considerou The Moonstone (1868) de Wilkie Collins “o primeiro, o mais longo e o melhor romance de detetive inglês”. Para ele, “a personalidade e as motivações do criminoso deveriam ser normais”, e a história não deveria “basear-se nem em fenômenos ocultos nem em descobertas feitas por cientistas solitários”. Eliot, como a maior parte dos bons autores policiais da época, defendia o fair play, ou seja, o autor deveria indicar ao leitor as principais pistas que revelavam a identidade do criminoso e o método usado para praticar o crime. É bom lembrar que na chamada Era de Ouro do romance policial (as décadas de 1920-1930) o enorme sucesso do gênero atraiu para ele autores que não tinham o menor escrúpulo de puxar o tapete de baixo dos pés do leitor da maneira mais desavergonhada possível.

Por que tanto sucesso? Eliot dizia: “Aqueles que viveram antes da criação de termos como ‘literatura elevada’, ‘romances sensacionalistas’ e ‘ficção detetivesca’ sabem que o melodrama exerce uma perene fascinação sobre o público leitor”. Para ele, um romance policial mal sucedido era o que deixava de satisfazer duas necessidades: “o prazer puramente intelectual de Poe e a completude e abundância de vida que há em Wilkie Collins”.








4047) A Vida e os Tempos de Alma Loser (11.2.2016)



Cap. 1 – De como Alma Loser brotou pronta dos pés à cabeça, aos quinze anos, no Colégio Municipal Lima Barreto, em Conceição da Macuruí (Bahia), onde até então estava disfarçada de Maria Almarina da Rocha, filha de um caminhoneiro e de uma doméstica.

Cap. 2 – De como Alma dizia que essa expressão “doméstica” lhe provocava arrepios de repulsa, e que se tivesse que escolher entre a profissão do pai e a da mãe preferiria mil vezes ser caminhoneira, mesmo correndo o risco de assalto e surra de vez em quando, destino eventual do pai dela.

Cap. 3 – De como nome e personagem nasceram juntos quando Maria Almarina resolveu aceitar o convite para tocar baixo na banda feminina “OB Usado”, arregimentada para participar da festa dos Jogos Estudantis da escola, sob o nome de Las Bambas, é claro, porque o nome oficial enfartaria a diretora, uma chata.

Cap. 4 – De como uma vaia ensurdecedora afugentou do palco a banda, e Alma Loser rasgou furiosa o figurino, arrombou um locker, fugiu com o moleton de alguém e nunca mais a viram, nem no Lima Barreto nem em casa, onde ficou o casal de velhos, que mal deram pela sua falta.

Cap. 5 – De como na capital Alma Loser aprendeu russo com um vizinho de pensão, ascensorista de um hotel todo em ébanos e dourados.

Cap. 6 – De como Alma Loser perdeu vários empregos sucessivos até descobrir que russo no currículo queimava seu filme.

Cap. 7 – De como Alma Loser cruzou por acaso com um primo distante e machista, daqueles que sempre botaram olho ruim pra cima dela, mas família é família, mas como ela agora não era mais família coisa nenhuma, pensou ele, botando um olho bonito, ela ia ver o que é bom pra tosse.

Cap. 8 – De como as coisas não correram bem assim, e Alma Loser aplicou-lhe uma combinação de krav-magá que aprendera com o útil ascensorista e o deixou desacordado para pagar na manhã seguinte os estragos que fizeram na suite do motel.

Cap. 9 – De como Alma Loser juntou as economias, tomou um banho de loja, prendeu o cabelo, e foi admitida como flight attendant (ela detestava “aeromoça”) numa companhia aérea terceirizada.

Cap. 10 – De como um ano e meio depois ela desembarcou em São Petersburgo, seu objetivo desde o início, e lá mesmo queimou o passaporte e caiu na clandestinidade.


Cap. 11 – De como encontramos Alma Loser onze anos depois em Moscou, dona de butique, passaporte ucraniano, gorda como uma baronesa, falando francês, amante de dois políticos de partidos rivais, sendo entrevistada num talk-show da TV local e, indagada sobre o sonho da sua vida, dando um fundo suspiro e respondendo: “Conhecer o Brasil, porque dizem que é um país de homens lindos.”





4046) A palavra "hardboiled" (10.2.2016)



Esse termo indica os detetives durões do romance policial, mas não traduz bem para o português. A idéia se refere a ovos muito cozidos, que ficam muito duros. Passa a sensação de dureza (=valentia, violência, brabeza) e de algo ou alguém fervido, castigado, curtido pela vida. 

Aqueles detetives de sobretudo e chapéu mole interpretados por Robert Mitchum, ou então os policiais durões e silenciosos de Richard Widmark.

O detetive não é “hardboiled” somente porque pode recorrer à violência. Isso Sherlock Holmes também fazia. A diferença entre os dois é que Holmes, tido como tão frio e objetivo, é no fundo um romântico que acredita na Razão e um otimista que tem fé na Ciência.  Um detetive hardboiled não acredita sequer na autenticidade da nota de vinte que uma loura artificial lhe estende. É o cinismo que os separa. O Zeigeist da era do “sendo assim fica permitido tudo, cada um por si”. 

Philip Marlowe é durão, mas não somente por dar uns safanões em bandidos metidos a besta. Ele vive com a vida por um fio, e só tem de poderoso para protegê-lo a letra da Lei. A mesma lei que ele atropela, quando, pelo bem do cliente, ele suprime provas, mexe na cena do crime, confunde indícios, omite informações. 

Ele sabe que pisa terreno minado, e os policiais sabem do que ele anda fazendo.  Só querem uma chance para flagrá-lo, a pretexto de uma tecnicalidade qualquer, e depois fazê-lo cumprir uma turnê de insônias ao longo de mil delegacias, enquanto puderem fazê-lo de modo quase legal. 

É um personagem que vive num mundo pior do que o nosso, pois nele acontecem coisas que não fazem parte do nosso dia a dia, razão pela qual lemos esses livros, vemos TV, compramos jornais sensacionalistas. Em O Longo Adeus, diz Marlowe: 

“A outra parte de mim queria ir embora e ficar longe, mas essa era a parte a quem eu nunca dava ouvidos.  Porque se alguma vez eu a tivesse ouvido eu teria ficado na cidade onde nasci e trabalhado no armazém local e casado com a filha do patrão e tido cinco filhos e lido para eles os balões dos quadrinhos nos jornais das manhãs de domingo e dado uns tapas num e noutro que saíssem da linha e teria entrado em querelas com a esposa sobre quanto seria a mesada de cada um e quais os programas que eles tinham licença de assistir no rádio e na TV.  Eu podia até ter ficado rico, um interiorano rico, numa casa de oito quartos, dois carros na garagem, frango todo domingo e as Seleções do Reader’s Digest na mesa da sala, a esposa com o cabelo duro de permanente e eu com um cérebro igual a uma saca de cimento Portland.  Pode ficar pra você, amigo. Eu quero a cidade grande, sórdida, maculada e corrompida.” 




quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

4045) Patafísica (9.2.2016)


A Patafísica é uma ciência, uma pseudo-ciência, ou uma paraciência? É um clube literário ou uma corrente filosófica?  É um grupo de humoristas ou de gozadores?  Ela foi criada por Alfred Jarry, o iconoclasta autor da peça Ubu Rei, que produziu grande escândalo, e surgiu no livro Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphysicien (1911, póstumo). “A patafísica será sobretudo a ciência do particular, mesmo que se diga que só existem ciências do geral,” diz ele. “Ela estudará as leis que regem as exceções.” O livro foi lançado agora pela Nephelibata, com tradução de Eclair Antonio Almeida Filho e Odulia Capelo Barroso.

Para honrar a memória de Jarry, que morreu na miséria, criou-se o Collège de Pataphysique, uma daquelas instituições francesas que motejam da solenidade da cultura oficial do seu país. O Colégio é uma mistura de academia de letras e de clube de aficionados. Entre os seus membros famosos estiveram os artistas Juan Miró, Max Ernst e Man Ray; o romancista e autor de “chansons” Boris Vian; Raymond Queneau, o autor de Zazie no Metrô, Exercícios de Estilo e muitos mais.

Queneau pertencia também ao grupo da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), onde se reuniam ele, Georges Perec, Italo Calvino, Harry Matthews, François Le Lyonnais e vários outros. Parece ter sido inicialmente um departamento do próprio Colégio de Patafísica. O interesse da OuLipo era produzir ficção ou poesia seguindo algumas regras ou simetrias arbitrárias, de natureza numérica ou geométrica.

Tanto os patafísicos quanto os oulipoetas têm, não só no que escrevem, mas no modo como se comportam, uma mistura de informalidade estética aliada a espírito lúdico. A Patafísica é uma espécie de arte de jogar belota enquanto o absurdo não desaba. A oulipoesia é uma exploração de parâmetros meio aleatórios (e nisso se parece às ciberpoesias eletrônicas atuais) ou inconscientes, e nisso se aproximam de um terceiro movimento, o Surrealismo.

O Surrealismo se sonhou internacional mas a história situa seu epicentro em Paris. Dos três, é o movimento literário mais exaltado e talvez o mais crente, o menos leviano ou alienado. O movimento tem forçosamente a cara de seu líder, André Breton, o que é inevitável, já que ele excluía do grupo quem ficava diferente dele.

Não importa se os membros do Colégio de Patafísica acreditam que algumas de suas proposições mais anárquicas possam ser verdadeiras. Seria bom saber se elas ajudam a construir uma máquina de viajar no tempo, como aconteceu ao Dr. Faustroll, ou se desencadeiam chacinas até hoje inexplicadas como a de Maxwell Edison e seu martelo de prata.



sábado, 6 de fevereiro de 2016

4044) Oito fotografias (7.2.2016)



(foto: Andre Kertesz)


Peitoril de uma janela, em preto e branco bem granulado, sobre o qual repousa, apoiada no braço dobrado sobre o caixilho, a mão de uma menina de uns dez anos. Ao lado dela, uma pistola calibre 38, carregada, pousada sobre o peitoril. Na foto, a menina não toca ainda na arma.

Um canal cimentado, com águas verde-azuis, amuradas vermelhas, três garotos de camiseta e calção, em cores variadas, armando o pulo para saltar dentro dele, o primeiro já frecheirando de braços esticados em pleno ar, o segundo dobrando os joelhos e braços pra trás pro impulso final, o terceiro ainda se posicionando.

Uma estação de trem, acima do nível do pátio em volta. Uma escadaria de três trechos de doze degraus. E uma mulher, saias esvoaçantes, uma mala e uma sacola numa mão, uma mala maior e uma bolsa pequena na outra, bolsa grande a tiracolo em diagonal, uma mulher corpulenta e decidida, está subindo essa escada enquanto no último degrau um homem alto, magro e moreno a observa, à espera, com o pulso esquerdo soerguendo-se apenas o mínimo para indicar: “Olha a hora!”.

Um entrevistador perguntou a Pelé, já de chuteiras penduradas, qual a coisa do tempo de jogador que ele tinha mais saudade. Ele disse: “O pontapé inicial de todo jogo, quando o time da gente estava no auge. Quando a gente ir dar a saída, a gente olhava e via o medo nos olhos deles. O medo que eles tinham do Santos.” A foto mostra esse medo.

Foto noturna do lado de fora de uma “villa” a que se tem entrada por um pórtico. Do lado de cá desse pórtico, caído rente ao muro, bêbado, um homem bem vestido. Ao fundo, todas as casas da vila estão apagadas, menos uma, onde a luz está acesa e há uma mulher debruçada à janela, morta de sono.

O braço moreno de músculos longos e secos passa a peixeira com força num serrilhado que sai cortando em diagonal, jogando para o alto uma chuva de diamantes em forma de escamas de peixe.

Foto muito próxima, não dá para ver se é no meio da rua ou num clube, mas o ambiente é escuro, e a foto mostra um rapaz e uma moça se olhando, com gente fantasiada marcando o passo ao fundo. Só os dois, se olhando.

Na rua estreita de edifícios escuros e tortos explode para a rua pela janela do 5o. andar uma chuva de estilhaços de vidraças despedaçadas, e também dali emerge um pesado cofre de aço com um metro e meio de altura, e preso a ele, pela manga do casaco jeans que se enganchou quando ele ajudou a erguê-lo até o peitoril e depois empurrá-lo janela afora, um rapaz, mas a manga enganchou e lá foi ele, no instante exato em que a turista dinamarquesa fotografava tudo, pois tinha gostado de uma eira-e-beira qualquer no prédio colonial vizinho.




sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

4043) As letras do crime (6.2.2016)



Você é um cidadão norte-americano que trabalha para uma empresa de pesquisa, contratada, em última análise, pelo governo do seu país. Sua missão é viver no Terceiro Mundo: em países quentes, com cidades de trânsito infernal, água pouco confiável, costumes incômodos, idioma inexpugnável, valores ininteligíveis.  Você avalia as coisas, preenche planilhas, faz uma pesquisa meio quantitativa e meio qualitativa. Deve transmitir suas impressões, opiniões, julgamentos, avaliações da probabilidade disto ou daquilo acontecer.

O narrador de The Names (1982) de Don DeLillo é um cara que produziu uma lista de 27 indignidades praticadas por ele na convivência conjugal; a lista foi escrita por ele meio que psicografando o que ele achava que a esposa pensava a seu respeito. Agora separado, ele se dedica a preencher as planilhas e estudar grego, afinal estão morando em Atenas. Há uma simetria incubada entre essa massa de tabulações e índices que ele, James Axton, manda via telex para seus patrões. E há em volta dele (que só o percebe mais adiante) uma série de crimes simétricos acontecendo. Crimes onde – como nos policiais clássicos de Agatha Christie (Os Crimes do ABC) ou de Ellery Queen (A Tragédia de X, ...de Y, ...de Z) ou de Borges (“A morte e a bússola”) – as letras, a grafia, o local do crime, são coisas cruciais. 

“Nunca pensei que teria saudade do meu apartamento,” diz uma amiga de Axton, em Jerusalém; “deve ser porque meu corpo ficou lá.” Seus amigos expatriados são todos razoavelmente abastados e vão toda noite aos restaurantes locais, onde têm noitadas espirituosas rodeados por figurantes gregos. Há um cineasta meio maldito, amigo de Axton, que quer transformar toda a investigação desse mistério (a esta altura já se percebe ser um culto clandestino) num documentário. É um desses artistas intensos, que se arrebatam por uma idéia e não abrem nem pra um trem. Ele e Axton conseguem conversar, separadamente, com homens do culto. Têm diálogos de terrestre com marciano, e vão embora.

DeLillo tem uma prosa como de quem tem um baralho bem traçado na mão e vai estalando cada carta na mesa, virando e estalando. Aquela maneira meio realista-modernista dos norte-americanos, cada frase fazendo cair pelo menos uma ficha. A descrição dialoga com o leitor sem que o personagem perceba. Ele tem também um olho bom para no meio da descrição de um passeio ou de uma conversa anotar vislumbres. “Uma mulher colocava estrume de vaca em fôrmas ovais para secar ao sol.” “Um chapéu de homem veio esvoaçando pela rua afora.” “Um homem a cavalo, uma mulher que caminhava atrás segurando a cauda do cavalo.”




quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

4042) Ser editor (5.2.2016)



Alguém já disse que depois do Autor, a pessoa a quem a gente deve ajoelhar e agradecer por um bom livro é o Tradutor. Eu concordo, mas estendo essa condição ao Editor. Ele é o cara que numa pilha enorme de envelopes pardos achou essa história pra mim. Não leu somente ela. Leu umas cem, e das cem tirou meia dúzia, inclusive esta. Por causa dele eu acabei de ler agora, e achei sensacional.

O editor a publicou sabendo que um dia um leitor anônimo, na outra banda do mundo, acabaria lendo aquilo, entusiasmado, e talvez nem pensasse no quanto seria remota a chance de ter lido aquilo se não fosse por esse editor. 

Ele é um descobridor. Um dia, já velho, ele vai estar numa mesa cheia de camaradagem, alguém vai erguer um brinde a ele chamando-o de “descobridor de talentos”, e ele vai dizer: “Pois é, eu ainda lembro como fiquei em dúvida, puxa vida, quem é Fulano de Tal, quem é Sicrano, dirá o público, quem vai se interessar em ler? Mas fui lá e banquei!  Por que? Porque eu sabia!”. 

Nem sempre o editor sabe, ou melhor, quase nunca.  Digo isso porque do lado de quem publica a esperança é sempre a mesma: “É este aqui que vai decolar, entrar em órbita, puxar minha conta bancária lá pra cima, e me dar a iniciativa do jogo.” 

Cada livro que a gente publica a gente vê nele o maior jeitão de best-seller. Pensamos isso com tanta força que quando um belo dia um dos livros efetivamente vende, a gente chega a ver naquilo um anticlímax, uma moeda que só nos chega às mãos depois de desvalorizada.

Para criar livro alheio, precisa ter os mesmos cuidados e o mesmo carinho que tem com o livro seu. Não ouvi de um editor essa frase, ouvi-a de uma nega véia, e não era livro a palavra, era filho, e a intenção é uma só. 

O livro é a obra do editor.  O escritor forneceu apenas o texto literário, sem dúvida o mais importante de tudo, mas por isso mesmo era preciso fazer um livro à altura. O texto é de quem escreve. O livro é de quem publica.

Mesmo quando os livros encalham, mesmo que hajam se vendido somente uns cem exemplares, o editor pode pensar nesses leitores agradecidos e achar que valeu. 

E não nos custa imaginar que às vezes o único propósito de haver uma primeira edição dos poemas que um tal de “Aaron Klopstein” publicou em Dresden em 1951, é que o derradeiro exemplar desse livro seja achado num sebo de Nova York, em 2008, e desde então ele venda em poucos anos mais de dois milhões, em cinco países. 

Tudo que certos livros precisam é não desaparecer. Se não desaparecerem, sua história irá acontecer, mesmo com décadas de atraso. O editor é justamente o cara que providencia esses milagres.