quinta-feira, 27 de agosto de 2015

3904) Neo Roman (28.8.2015)




Num texto antigo (“A Defence of Detective Stories”, 1902), G. K. Chesterton defende a teoria de que na vida urbana existe toda uma poética e todo um romantismo, não no sentido amoroso, mas no sentido de um mundo movido mais pela imaginação e o desejo do que pela observação e raciocínio. “A poesia da vida moderna”, como ele a chama, tem a ver, p. ex., com o olhar urbano, meio cínico e meio melodramático de Baudelaire sobre Paris. 

Diz GKC: “Essa forma de perceber a poesia que há em Londres não é pouca coisa. Uma cidade propriamente dita é mais poética do que o campo, porque, enquanto a Natureza é um caos de forças não-conscientes, a cidade é o caos das que o são”.  A argumentação dele é longa e variada; ilustra e reafirma essa visão. Ela já foi expressa sob a inequação de que o civilizado é superior ao primitivo, ou de que a capital é mais moderna que o interior; mas Chesterton sugere uma idéia melhor, do ponto de vista literário: a de que o mapa urbano é mais cheio de maravilhas, terrores e mistérios do que a vida entre as hordas primitivas.

Ele cita Sherlock Holmes, para quem o homem urbano vive um “romance do detalhe” onde cada telha de um teto tem um sinal característico, está coberta de informação, como se tivesse sido rabiscada com cálculos, de cima a baixo. A vida urbana é concentrada (milhões de pessoas), variada (classes, ofícios, etnias, ideologias, etc.) e sob pressão. O resultado é o romance de mistério, de aventura, de antecipação, de horror, de lição de abismo.

Diz ele: “A civilização é a mais sensacional das arrancadas e a mais romântica rebelião. (...) Quando num romance policial o detetive enfrenta sozinho, com um destemor que beira o cabotinismo, os punhos e os punhais de uma corja de assaltantes, isso decerto nos ajuda a relembrar que é o agente da justiça social que constitui a figura mais original e poética, enquanto os gatunos e os salteadores não passam de plácidos conservadores do velho cosmos, satisfeitos com a respeitabilidade imemorial dos lobos e dos gorilas.”

Deve ser por causa de tiradas desse tipo que GKC era ferrado como reacionário, pelos mesmos que consideravam o romance detetivesco, como gênero literário, um apologia à polícia, uma louvação de como a lei e a justiça controlam delitos individuais. A literatura policial, no entanto, é a romantização conjunta dos Holmes e dos Arsène Lupins, do Cavalheiro Dupin e de Fantomas, dos normalizadores e dos transgressores; uma classe não existe sem a outra. O Neo-Roman da cidade recobre da obra de Baudelaire e Rimbaud até a de Rubem Fonseca e de Chandler. São aqueles casos onde a sociedade é o surfista e o crime é o mar.

3903) O dia da Abolição (27.8.2015)



(A Princesa Isabel; no destaque, Machado de Assis)


Em 1888, dias antes da assinatura da Lei Áurea, o pai de Lima Barreto, que era funcionário público, chegou em casa e disse ao filho: “A lei da Abolição vai passar no dia dos teus anos.”  

O que de fato aconteceu (Lima nascera em 13 de maio de 1881). O escritor estava na multidão diante do Paço Imperial, que aos seus olhos tinha a altura de um “sky-scraper” (ainda não tínhamos inventado o termo “arranha-céu”). Viu falar um homem, muito aplaudido, mas não tem certeza se era José do Patrocínio.

Diz ele: 

Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com o lenço, vivas... Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação.

Ele lembra também a missa campal celebrada no Campo de São Cristóvão, quando então viu a princesa imperial mais de perto. Ela lhe pareceu “loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado”.  Recentemente circulou nas redes sociais uma foto dessa comemoração em São Cristóvão, onde a princesa aparece cercada de autoridades, e muita gente viu num dos homens à sua volta o rosto de Machado de Assis.

É interessante ver as impressões de um dos nossos primeiros grandes escritores negros sobre este dia. Lima as escreveu num artigo de 1911 (republicado em Um Longo Sonho do Futuro, Graphia, 1993), e diz, com certa candura: 

Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.

Ele lembra a alegria da criançada no colégio em que estudava, à Rua do Resende: 

Com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia. Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: Vou dizer a papai que não quero mais voltar ao colégio. Não somos todos livres?

As grandes agitações políticas têm esse poder de nos jogar na euforia, quando na verdade temos apenas a idéia mais superficial e enganosa sobre o que de fato está acontecendo. As ilusões passam, mas se a alegria foi grande, a lembrança dela é o que fica. Não se cancelam as alegrias retroativamente.




terça-feira, 25 de agosto de 2015

3902) Traduzir Perec (26.8.2015)



Vão aqui algumas notas sobre condições especiais da tradução literária. Em 1969, Georges Perec publicou La Disparition, seu famoso romance onde a letra “E” não aparece nem uma vez. O desaparecimento do E é ilustrado pelo desaparecimento do protagonista, Anton Voyl (alusão a “voyelle”, vogal), e de tudo que se refere à quinta letra do alfabeto.

Em 1995, Gilbert Adair publicou a tradução em inglês (A Void). O jornal Rascunho de Curitiba publicou em seu número de agosto uma tradução de Vinícius Gonçalves Carneiro para o primeiro capítulo do livro, que intitulou O Sumiço.  Abaixo, o texto do primeiro parágrafo, nas três versões.

Original: “Anton Voyl n’arrivait pas à dormir. Il alluma. Son Jaz marquait minuit vingt. Il poussa um profound soupir, s’assit dans son lit, s’appuyant sur son polochon. Il prit un roman, il l’ouvrit, il lut; mais il n’y saisissait qu’un imbroglio confus, il butait à tout instant sur un mot dont il ignorait la signification”.

Gilbert Adair: “Incurably insomniac, Anton Vowl turns on a light. According to his watch it’s only 12:20. With a loud and languorous sigh Vowl sits up, stuffs a pillow at his back, draws his quilt up around his chin, picks up his whodunit and idly scans a paragraph or two; but, judging its plot impossibly difficult to follow in his condition, its vocabulary too whimsically multisyllabic for comfort, throws it away in disgust”.

Vinícius Gonçalves Carneiro: “Insone, Tônio Voguel, com um toque no interruptor, enche de luz o dormitório. No relógio de Bolso de Zurique: cinco e quinze. Depois dum profundo suspiro, ergue-se do leito e estende-se sobre um coxim. Escolhe um livro, percorre, lê, só compreendendo um imbróglio confuso, sempre colidindo num termo desconhecido.”

VGC optou na versão brasileira por fazer desaparecer o “A”, fiel à intenção do original, que é omitir a letra mais frequente no idioma. Visto que o livro de Perec se organiza inteiramente em torno dessa ausência crucial, não há problema, por exemplo, em traduzir “minuit vingt” por “cinco e quinze”: a hora certa é irrelevante, basta que seja plausível. O que importa mesmo é que seja uma hora sem a letra-tabu.

O tradutor precisa acompanhar o autor em suas manobras: para onde o autor vai, ele tem que ir também. Mesmo quando isso acarreta uma aparente contradição (traduzir trocadilhos, p. ex., exige o emprego de frases diferentes das que aparecem no original.) Quando a obra literária impõe uma condição especial, essa condição é imperativa para quem traduz. Para segui-la, ele é autorizado a pequenas infidelidades desse tipo, que o ajudam a ser fiel ao efeito principal pretendido pelo autor.


3901) "As Aventuras do Flama" (25.8.2015)




("O Flama": pelo filho, Mike Deodato, e pelo pai, Deodato Borges)

Foi o primeiro super-herói paraibano. Nasceu na novela de rádio homônima transmitida todos os dias pela Rádio Borborema; eu e minha irmã Clotilde ficávamos grudados no pé do rádio para ouvir as histórias escritas por Deodato Borges e interpretadas pelo “cast de rádio-teatro da Rádio Borborema”. 

Era um tempo em que praticamente todas as noites havia novelas de rádio escritas e interpretadas por artistas locais. Meu pai trabalhou na rádio alguns anos, e alguns desses atores frequentavam nossa casa. 

Lembro de ter ouvido uma adaptação de As Quatro Penas Brancas, romance de aventuras passado na Legião Estrangeira.

O Flama era um herói mascarado e usando capa, fisicamente no modelo do Batman. O rosto me sugeria uma certa semelhança com Errol Flynn, que era uma espécie de George Clooney daquele tempo. Suas aventuras ocorriam num ambiente que misturava elementos brasileiros e estrangeiros. 

No elenco de personagens, havia Eliana, sua noiva (era um tempo em que os super-heróis tinham noivas!), o garoto Zito (uma espécie de Robin), Bolão, um rapaz meio gordo que servia de “alívio cômico” pelas suas tiradas engraçadas, o Comissário Láurence (simétrico ao Comissário Gordon, do Batman), e havia um “Raposa” que usava uma metralhadora e chamava os bandidos de “os macacos”.

A novela foi patrocinada pelos Drops Dulcora (“quadradinhos, embrulhadinhos um a um!”). Criou um Clube do Agente Secreto, com carteirinha e tudo; e sorteava fotos do Flama e Zito, mascarados, de arma em punho, em contraluz, fotos feitas em estúdio. Era grande a audiência. 

O Flama (tal como o Dick Peter, de Jeronymo Monteiro) tanto enfrentava assaltantes de bancos quanto “monstros de ferro” que invadiam a cidade.

O sucesso foi tanto que Deodato lançou em março de 1963 a revista em quadrinhos, escrita e desenhada por ele. A esta altura eu, já com 12-pra-13 anos, não me interessei tanto, não colecionei, afinal já lia Conan Doyle e Julio Verne. Mas o sucesso foi grande! 

Agora, a Funesc (Fundação Espaço Cultural, de João Pessoa) lançou uma edição fac-símile do número 1 da revista, com uma HQ (“O Caso do Dragão Vermelho”), um conto (“Rapto!”) e algumas seções de piadas, curiosidades, sonetos.

A reedição do gibi vem com uma sobrecapa “moderna” desenhada por Mike Deodato, filho do autor, merecidamente famoso por sua atividade de desenhista no mercado internacional. 

Deodato faleceu ano passado (2014). Foi um entusiasta da cultura pop, como Jeronymo Monteiro, Rubens Francisco Lucchetti, Péricles Leal e outros pioneiros da literatura de gênero (policial / FC / terror / fantasia) que temperaram no fogo do medo os meninos e as meninas da minha geração.






sábado, 22 de agosto de 2015

3900) Meu artigo 4.000 (23.8.2015)





Duvido que mesmo muitos fãs da literatura policial, hoje em dia, conheçam o modesto Edward D. Hoch, autor norte-americano falecido em 2008 aos 77 anos. Escreveu poucos romances (inclusive três de ficção científica). A maior parte de sua produção foi em forma de contos. Hoch (pronuncia-se “Rôuk”) foi um típico escritor da ficção popular dos EUA. Às vezes somos tentados a chamar toda essa literatura-de-gênero de “pulp fiction”, mas existe uma grande diferença de formato e de estilo entre a pulp fiction propriamente dita (que floresceu nas décadas de 1920-30-40) e a ficção das revistas dos anos 1950 em diante, as chamadas revistas “digest”, de tamanho menor, com menos ênfase do que as “pulp” no melodrama e no sensacionalismo, histórias em média mais bem escritas e mais curtas. O modelo mais conhecido do leitor brasileiro é o saudoso Mistério Magazine de Ellery Queen.

Um diferencial de Hoch é a variedade de detetives que criou. Suas histórias são formulaicas, ou seja, cada uma delas repete obrigatoriamente um certo número de efeitos e até mesmo uma estrutura fixa, onde variam os elementos. Isto é típico da ficção popular, escrita em quantidade, e na qual seria contraproducente ter que reinventar tudo do zero em cada nova narrativa. As enciclopédias detetivescas listam entre 20 e 30 detetives inventados por ele, vários com dezenas de histórias.

Meus preferidos são o Dr. Sam Hawthorne, um médico da Nova Inglaterra que resolve crimes impossíveis (quarto fechado, etc.); Rand, um espião inglês cuja especialidade é decifrar códigos secretos (os mais implausívelmente barrocos!) usados por espiões inimigos; e Nick Velvet, um ladrão profissional que se especializa em roubar para seus clientes objetos aparentemente sem valor ou sem motivo aparente (a água de uma piscina, p. ex.).

Hoch é considerado o contista mais prolífico do mundo literário, com cerca de 940 contos publicados. Em maio de 1973 ele iniciou uma série que dificilmente será igualada: todos os meses uma nova história sua apareceu na edição norte-americana do Mistério Magazine de Ellery Queen, e isto se manteve por 34 anos ininterruptos.

Este meu artigo de hoje no Jornal da Paraíba poderia ser dedicado aos escritores que mais admiro: Borges, Guimarães Rosa, Machado, Joyce, Kafka... Mas este é o meu artigo 4.000 desde que iniciei esta coluna em março de 2003, sem faltar um dia sequer.  Prefiro render homenagem a um obscuro profissional da máquina de escrever, que, mais do que qualquer gênio da literatura, me deu o mais importante dos exemplos. Ser escritor é tornar-se capaz de escrever todos os dias. Ergo uma cerveja, portanto, em honra de Edward D. Hoch.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

3899) Drummond e a FC (22.8.2015)




Em seu livro Lição de Coisas (1962) Carlos Drummond de Andrade incluiu um poema curto cujo título me atraiu desde o primeiro olhar: “Science Fiction”.  Assim mesmo, em inglês, sintoma de uma época em que a assimilação de certas palavras ainda estava incompleta, e ainda se dizia “goal-keeper”, “whisky”, etc.  O texto do poema diz:

“O marciano encontrou-me na rua / e teve medo de minha impossibilidade humana. / Como pode existir, pensou consigo, um ser / que no existir põe tamanha anulação de existência? // Afastou-se o marciano, e persegui-o. / Precisava dele como de um testemunho. / Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se / no ar constelado de problemas. // E fiquei só em mim, de mim ausente.”

O poema surgiu num momento em que a FC estava presente na imprensa e na cultura brasileira em geral, através das edições de Gumercindo R. Dórea (Editora GRD), que vinha publicando obras de FC de Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Rubens Teixeira Scavone e outros, além da primeira Antologia Brasileira de Ficção Científica (1961).

O texto de Drummond, no entanto, sempre me lembrou outro conto: “Encontro Noturno” de Ray Bradbury, incluído na antologia Maravilhas da Ficção Científica, da Editora Cultrix (1958), organizada por Fernando Correia da Silva, com seleção de Wilma Pupo Nogueira Brito e introdução de Mário da Silva Brito.

No conto de Bradbury (na verdade, uma das suas “Crônicas Marcianas” de 1950) um terrestre e um marciano se encontram por acaso no alto de uma colina de Marte, começam a conversar, e descobrem que estão num ponto de cruzamento entre momentos diferentes no tempo. O marciano vê no vale lá embaixo sua civilização viva e florescente; o terrestre vê ruínas desertas. Depois de um diálogo cheio de contradições, os dois se separam, perplexos, e cada um vai cuidar de sua vida.

O poema de Drummond sismografa a presença da FC na nossa literatura da época. O poeta refletia sobre a civilização tecnológica que começava a envolvê-lo: é desse livro seu famoso poema sobre a bomba atômica, “A bomba” (“A bomba / é uma flor de pânico apavorando os floricultores / A bomba / é o produto quintessente de um laboratório falido”). O marciano (que não deixa de lembrar o marciano visitante de Fausto Cunha em “Visita Sentimental de um Jovem Marciano ao Planeta Terra”) torna-se nessa fase um símbolo preferencial do Outro, do Estranho, do que nos descobre e olha para nós com assombro e incredulidade. É o próprio Drummond que se auto-descobre no poema ao lado, “O Retrato Malsim”, constatando o “morrer em pensamento quando a vida queria viver”. Era um símbolo interplanetário para a angústia existencial.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

3898) Tem mas acabou (21.8.2015)




Quem nunca passou por isso num restaurante, num café, ou mesmo em outros tipos de loja?  

Você senta, pede o cardápio, vai passando os olhos, aí descobre algo como: “Sanduíche Montparnasse: baguete crocante com gergelim, fiambre, queijo minas, bacon pulverizado, gomos de tangerina, molho mostarda-e-mel”. 

Você se anima. Aquilo pode até ser indigesto mas pelo menos é diferente; você chama o garçom e pede. Ele olha o cardápio e diz: “Esse aí tem, mas acabou”.

Todo mundo se irrita com essa resposta, mas ela me parece totalmente lógica. O cara está dizendo que sim, de fato, o sanduíche faz parte das atrações da casa. É produzido regularmente ali, recebe pedidos, vende unidades. Ou seja: tem. Acontece que naquele momento acabou, em geral porque se esgotaram alguns ingredientes principais. 

O formato da resposta parece contraditório, mas ela está dizendo apenas: “De fato temos esse sanduíche no cardápio, pode voltar a pedir noutro dia; mas agora não estamos servindo porque acabou o molho de açafrão-pimenta (ou seja lá o que tiver acabado)”.

Se o garçom disser “Não tem” (advertem os especialistas em vendas), está subliminarmente induzindo na mente do freguês a noção de que o produto não tem MESMO, não está à venda, não vale a pena pedir de novo. É o anti-marketing. 

É preciso transmitir ao cliente uma mensagem positiva que o console da frustração momentânea. É preciso fazer com que o cliente não bata em retirada, pelo contrário: volte daí a alguns dias, convencido de que ocorreu apenas uma turbulência momentânea mas ele vive num Universo onde as coisas fazem sentido, e coisas que pareciam ter acabado para sempre acabam é voltando.

O “tem mas acabou” é uma fórmula de teimosia positiva. É o mantra cheio de estoicismo de alguém que mesmo derrotado não dá o braço a torcer, de alguém mantendo viva a chama da esperança de que num dia mais favorável aquele cliente e o seu sonhado sanduíche possam finalmente se encontrar numa lua-de-mel de dentadas, salivas e degustações. 

É um gesto de altivez na derrota, é como o artilheiro de um time que, atravessando um jejum de meses sem marcar um gol, ainda é capaz de dizer no fim de mais um jogo, ao microfone dos repórteres de campo: “Não teve gol, mas domingo vai ter jogo de novo, quem sabe se o gol não vai sair?”.

O “tem mas acabou”, portanto, é implicitamente seguido pela sua formulação inversa e otimista: “Acabou, mas tem”. Vai ter. Pode voltar. Não é o fim do mundo ainda. A frase reafirma (ainda bem, humanidade!) aquela cega confiança de que vale a pena continuar tentando, pois nenhum vazio é eterno e nenhum fracasso é definitivo.





quarta-feira, 19 de agosto de 2015

3897) Nabokov e a tradução (20.8.2015)






Num dos seus primeiros artigos para The New Republic, onde colaborou por muito tempo (“The Art of Translation” - http://tinyurl.com/lcgosud), Vladimir Nabokov listou os três principais equívocos cometidos por tradutores, e os três tipos principais de tradutor. Ele próprio se apressou a dizer que cada erro não correspondia a cada tipo, mas se distribuíam aleatoriamente entre eles.

Para o autor de Lolita, o primeiro erro, e menor, corresponde aos “erros óbvios devidos à ignorância e ao conhecimento equivocado”. São p. ex. os tradicionais “falsos amigos” e outras semelhanças ilusórias, que nos fazem traduzir “eventually” por “eventualmente” ou “push” por “puxe”. Um erro de natureza técnica, que o tradutor se apressaria a corrigir se ficasse sabendo. Em segundo lugar, diz ele, vem o caso do tradutor que “intencionalmente pula palavras ou trechos que não quer se dar o trabalho de entender, ou que poderiam parecer obscuros ou obscenos para leitores vagamente imaginados”. O terceiro caso é uma radicalização do segundo, quando “uma obra-prima é aplastada e rebatida num tal formato, e vilmente embelezada de forma a se enquadrar de conformidade aos valores e aos preconceitos de um público qualquer”. São erros cuja gravidade aumenta na proporção da opção consciente do tradutor, da sua intenção de errar.

E os tipos de tradutores? Diz ele que são: “o erudito ansioso para fazer com que o mundo aprecie as obras de um gênio obscuro tanto quanto ele próprio aprecia; o mercenário bem intencionado; e o escritor profissional relaxando na companhia de um confrade estrangeiro”.  Nabokov parece temer o terceiro tipo mais do que os outros dois, pois adverte: “quanto maior o seu talento individual, mais provável que ele acabe submergindo a obra original sob a cascata cintilante do seu próprio estilo. Ao invés de vestir a pele do autor verdadeiro, ele obriga o autor vestir a pele dele próprio”.

Nabokov, russo, ficou famoso com sua obra em inglês, tal como seu conterrâneo Isaac Asimov ou o polonês Joseph Conrad. Só que poucos autores nessa condição produziram uma prosa tão elaborada quanto a dele, tão consciente dos seus próprios efeitos, tão ludicamente empenhada de extrair de cada palavra tudo que ela pudesse fornecer de possibilidades expressivas. Um autor que escrevia traduzindo (mesmo que pensasse em inglês), e produziu uma das prosas mais desafiadoras para outro tradutor em qualquer idioma. Sua prosa parece vibrar o tempo inteiro numa região de múltiplas assonâncias que sugerem sentidos secundários ou ocultos. É um desses autores que parecem ter arregaçado as mangas para provar que traduzir é impossível.

3896) O leão sorridente (19.8.2015)




Por volta de 1731, o rei Frederico da Suécia recebeu um presente enviado pelo Rei de Argel: um leão, coisa rara na Suécia, algo que pouquíssimos habitantes do país nórdico tinham visto a não ser nas ilustrações pouco confiáveis da época, nos brasões heráldicos, nas pinturas. 

Presentear animais selvagens era um costume dos nobres daquele tempo. Podemos lembrar do romance de José Saramago, O elefante do rei A viagem do elefante (2008), que conta a odisséia do paquiderme que o rei João III de Portugal enviou de presente ao Arquiduque Maximiliano, da Áustria.

No caso do leão, o rei sueco se afeiçoou ao animal e o manteve em cativeiro e em exibição enquanto o animal durou. Após sua morte, decidiu que ele continuaria sendo visto pelo público, e enviou seus restos mortais para um taxidermista, a quem caberia empalhar o animal. Só que o artista não conhecia leões, e recebeu apenas os ossos e a pele do bicho.

O resultado foi uma criatura que não parece leão nem aqui nem em Estocolmo; lembra mais um cachorro sorridente, com dentes humanos e língua de fora. Sua imagem tem sido usada satiricamente na Internet (ver aqui: http://tinyurl.com/p5byrym). 

O caso do Leão do Castelo de Gripsholm, como é chamado, lembra outro presente real famoso, o rinoceronte que Dom Manuel I de Portugal recebeu e que foi imortalizado numa célebre gravura de Albrecht Durer. É um animal mais ornamental do que zoológico, sobre o qual já escrevi aqui: http://tinyurl.com/pu8hj4a).   


Não se trata apenas de que os artistas envolvidos são incompetentes ou maus observadores. Eu diria, pra resumir, que o contato com o Extraordinário estimula mais a imaginação do que a observação. Ao enxergar uma criatura que não corresponde aos seus parâmetros, ao seu repertório de referências, o artista interpreta detalhes erradamente; faz associações de idéias que não se aplicam ao caso; preenche lacunas coma primeira coisa ou a coisa mais vistosa) que lhe vem à mente. 

Sua imaginação é despertada por aquele objeto exótico ou bizarro que parece menos uma coisa real do que um produto da imaginação de outro artista.

O leão sorridente de Gripsholm e o rinoceronte de Durer pertencem à mesma categoria que aqueles mapas náuticos seiscentistas cheios de referências a lugares imaginários e a monstros fantásticos. 

Neles convivem, num mesmo plano, a realidade observada e os complementos arbitrariamente fantasiados pelo artista. 

É a mesma receita da ficção científica – só que neste caso a mistura é consciente, proposital e faz parte de uma convenção cultural da época. São objetos literários estimuladores da imaginação, mesmo que aparentados da observação científica.




segunda-feira, 17 de agosto de 2015

3895) "Guerra em Surdina" (18.8.2015)




Lutar na guerra deve ser uma das experiências mais traumatizantes que um sujeito pode ter. Só não digo que é “a mais” porque ser submetido a tortura deve ser pior ainda. Quando eu era pequeno via filmes de guerra e sonhava com heroísmo, aventura e principalmente massacre de soldados inimigos. Se todos os soldados alemães imaginários que já derrubei com minha metralhadora entrassem no cômputo da II Guerra Mundial, era mais gente do que os russos efetivamente abateram.

Guerra em Surdina (1964), de Boris Schnaiderman, é um livro curioso escrito pelo nosso grande tradutor e ensaísta, nascido na Rússia e abrasileirado como tantos outros da sua geração. Bóris veio para o Brasil menino, naturalizou-se, e lutou na FEB, na campanha da Itália. Seu livro é um relato bem pessoal de suas experiências, um misto de memórias e ficção. A ficção entra através do fato de que seu foco é o soldado “João Afonso”, no qual Bóris projetou fatos ocorridos tanto com ele próprio quanto com outros companheiros.

O livro é narrado tanto na primeira quanto na terceira pessoa, com alguns capítulos muito longos e outros muito curtos, mudanças de ponto de vista e mesmo de estilo. Parece uma obra escrita ao longo dos anos, aquele tipo de livro que o autor deixa na gaveta por algum tempo, escreve mais um pouquinho, esquece de novo e assim por diante. Mas seu andamento não muda, o relato é direto e cheio de detalhes curiosos.

Acima de tudo, no entanto, ele transmite a sensação de embrutecimento provocada pela guerra. Já li aqui e ali testemunhos desse tipo, de que a ameaça constante, a fadiga física e a violência extrema deixam os soldados feito zumbis, autômatos, executando ordens e tarefas sem pensar, como se por uma espécie de trauma protetor eles trancassem dentro de si mesmos a maior parte de sua mente ativa e deixassem apenas um piloto automático encarregado de cumprir com o dever. A fome, a sujeira, a espantosa penúria da população italiana por onde passam os batalhões brasileiros, o choque cultural do contato com as tropas dos EUA, tudo isso deixa João Afonso e seus companheiros numa espécie de estado crepuscular permanente.

Como zumbis ou como personagens de videogame, os soldados repetem as mesmas ações, obedecem ordens incompreensíveis, atiram-se de encontro à morte com indiferença, uma indiferença de quem está brutalizado e embrutecido a ponto de não mais mandar em si mesmo. Exaustos, animalizados pela sujeira, pela fome e pelo frio, viram robôs sem emoções e sem racionalidade, lutando contra um inimigo que não odeiam, numa guerra absurda em que um país sob ditadura manda seus rapazes morrerem em terra alheia pela democracia.