segunda-feira, 13 de abril de 2015

3787) Best-sellers (14.4.2015)



Poucos termos do mercado editorial são usados de maneira tão frouxa quanto este. “Best seller” significa, ao pé da letra, “o que vende melhor”. É uma indicação puramente numérica, quantitativa, que diz respeito a quantos exemplares um livro vendeu durante um certo período. “Best seller” não é sinônimo de livro de auto ajuda, nem de thriller de ação, nem de história apimentada sobre a vida sexual de gente rica, nem de romance de fantasia heróica.  Qualquer um desses pode eventualmente aparecer nas listas de best-sellers, mas ser de algum desses gêneros não é garantia de que o livro vai vender. (Muita gente acha que quem vende é o gênero, aí produz um livro meia-bomba, num gênero que conhece mal, achando que o gênero vai vender o livro sozinho. Se vendesse todo mundo era rico.)

Nenhuma editora e nenhum autor sabem o que faz um livro vender muitos exemplares; se soubessem, usariam essa fórmula o tempo inteiro, com o mesmo efeito que tem a macumba do campeonato baiano. Todos acham que sabem, aplicam a fórmula, geralmente dão com os burros nágua, e na semana que vem tentam de novo. O mercado editorial cria seus sucessos na base da tentativa-e-erro, e é bom que seja assim. No dia em que conseguiram produzir uma fórmula pra valer, acabou-se a literatura.

Acho fantasia pura essas listas de best-sellers que aparecem nas revistas e nos jornais. Nem preciso aventar hipóteses de jabá e payola, para dizer que aquele título está vendendo muito, e mediante isto fazer as vendas decolarem. (Na música, tem todos aqueles prêmios que são entregues a quem vende mais numa série de faixas de mercado. Com o passar do tempo, os brindes deixam de ser um prêmio pelo bom desempenho e tornam-se uma maneira de chamar a atenção sobre o artista e puxar as vendas até alcançar o número necessário.)

E fiquei por aqui, remexendo na memória e pensando em best-sellers antigos. Posso estar enganado num ou noutro título, mas, pelo que me lembro, todos estes livros apareceram durante algumas semanas seguidas nos primeiros lugares das listas brasileiras de best-sellers. Pode-se não gostar deste ou daquele, mas ninguém dirá que são livros “picaretas”, voltados ao consumo fácil. Entre os best-sellers que recordo terem vendido muito no Brasil, estão A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera, Dicionário Khazar de Milorad Pavic, A Vida Modo de Usar de Georges Perec, O Nome da Rosa de Umberto Eco, A Grande Arte de Rubem Fonseca, Galvez, Imperador do Acre de Márcio Souza, Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, Poesia de Paulo Leminski...  Todos são best-sellers; todos, em algum momento, venderam muito, para muitos leitores.




domingo, 12 de abril de 2015

3786) O fim do livro (12.4.2015)



Toda essa luta para evitar o fim do livro não vai adiantar muita coisa se as livrarias florescerem e se multiplicarem vendendo apenas o tipo de livro que a gente encontra nas livrarias de aeroporto.  Os best-sellers inevitáveis do ano, as biografias de celebridades, os livros de conselhos para vendedores, livros para administradores de empresa, livros religiosos, livros de cozinha, de viagens... Não é impossível imaginar uma Distopia onde o livro vá de vento em popa e a literatura esteja extinta. Na verdade, há motivos para supor que é isto o que está em processo de criação, nas estratégias empresariais, em mais países do que me atrevo a imaginar.

Criou-se uma falsa oposição entre, digamos, O Cão dos Baskervilles de papel e O Cão dos Baskervilles eletrônico, quando na verdade deveríamos ser gratos por termos pelo menos duas formas totalmente diferentes de registro para preservar o texto de O Cão dos Baskervilles, que ao fim e ao cabo é o que realmente importa. Os suportes tecnológicos acabam sempre sendo superados por algo mais novo. O texto literário é alegria pra sempre.

A luta pelo livro é importante por tudo quanto o livro de papel representa de prático (portabilidade, autonomia, etc.) e simbólico, em nossa cultura. De nada vai nos adiantar, contudo, focar a luta apenas no livro, como se o fato de as pessoas passarem a comprar mais livros de papel fosse resolver o problema. Comprar que livros, cara pálida? Como Parecer Menos Rico e Viver em Paz? Os Onze Conselhos do Vendedor Bem SucedidoAs Memórias de Kim Kardashian?  Ou obras de literatura? A literatura é mais importante do que o livro. E basta ver como ela tem pouco espaço em nossos cadernos culturais, geralmente voltados para a psicanálise, a história, as ciências sociais, etc.  A literatura (o romance, o conto, a poesia) acaba sendo, ironicamente, a prima pobre das publicações literárias.

Em momentos de especulações mais “dark”, nada nos impede inclusive de imaginar que aquela Distopia antiliterária citada acima seja o produto, construído a longo prazo mas de efeito relativamente rápido, de um lento processo de empobrecimento compulsório da imaginação e da linguagem, de tal sorte que os últimos escritores descerão para a tumba e livros novos continuarão a aparecer, não se sabe como. A essa altura alguém terá produzido o texto que escreve a si mesmo, o programa que se autoinventa à medida que avança. Os livros serão escritos por uma Antártida de logaritmos, capazes de reproduzir, imitar ou recombinar qualquer estilo a que sua franquia tenha acesso no contrato. Os livros se autoescreverão, e o homem será somente leitor.



sexta-feira, 10 de abril de 2015

3785) "A Hora do Lobo" (11.4.2015)



Estou coordenando, para o cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Amanhã, após a sessão, haverá debate comigo e com o prof. Sérgio Almeida.)

A Hora do Lobo (“Vargtimmen”, 1968) deve ter sido o primeiro filme de Bergman que eu assisti. Me marcou mais do que seus numerosos filmes sobre crises amorosas (Cenas de um Casamento, A Hora do Amor, A Paixão de Ana, etc.)  O diretor sueco pode ser considerado um diretor de filmes conjugais, mas para mim é um diretor de filmes fantásticos, ou de clima fantástico, mesmo quando não acontece nada literalmente impossível. O Rosto (“Ansiktet”, 1958) mostra um grupo de artistas ambulantes que realizam números mediúnicos e de magia. O Sétimo Selo (1957) é o famoso filme do cavaleiro medieval que joga xadrez com a Morte. Morangos Silvestres (1957) não é propriamente fantástico mas sua maneira de justapor um personagem no presente vendo uma cena do seu passado criou um estilo único de quebra temporal.

O fantástico em A Hora do Lobo tem algo de gótico, de fatalista. Neste filme, um artista (Max von Sydow) atormentado por visões ameaçadoras resolve se afastar do mundo e vai viver com a mulher (Liv Ullmann) numa ilha pouco habitada, imaginando com isto se livrar dos fantasmas que o perseguem. A convivência com as outras pessoas da ilha acaba fazendo recrudescer suas alucinações, que a esposa, solidariamente, começa a compartilhar. A aridez da ilha deserta, na fotografia em preto-e-branco de Sven Nykvist, ganha a aparência daqueles pesadelos superficialmente realistas, onde apenas os fatos são bizarros, mas as imagens são de uma nitidez dolorosa.

Neste filme há uma cena memorável pela maneira como faz sentir a passagem do tempo. Max von Sydow, durante uma madrugada de insônia, pega o relógio e começa a marcar a passagem de um minuto.  Nunca cronometrei, mas acredito que se passe de fato um minuto, tornado concreto, sensível. E li que Bergman teria feito uma referência a uma cena de Bande à Part de Godard (1964), em que os personagens se propõem a fazer um minuto de silêncio, mas interrompem-se antes disso. Os Beatles contaram um minuto inteiro, com um desenho por segundo (e indo até o “sixty-four”) no Submarino Amarelo de George Dunning (1968).  Há muitas maneiras de fazer caber em um minuto histórias inteiras, pequenas epifanias, tragédias de bolso.  Quem sabe o personagem de Bergman sente um certo alívio quando se passa um minuto e nada acontece.




quinta-feira, 9 de abril de 2015

3784) Dupla identidade (10.4.2015)



Oscar Wilde, o rei do paradoxo, dizia: “Se quiser conhecer a verdadeira personalidade de alguém, dê-lhe uma máscara”. Faz sentido. Quando estamos mostrando nossa própria cara, estamos mostrando uma imagem presa a convenções e regras sociais, familiares, morais, etc.  

Cada um de nós é um personagem na convivência social com família, amigos, colegas de trabalho. Sabemos que qualquer passo em falso vai manchar a reputação dessa pessoa que somos, desse papel que é o único que temos. Nosso rosto e nossa imagem pública são esculpidas pelo Superego, pelas exigências que nos massacram de cima para baixo e de fora para dentro.

Quando botamos a máscara, a coisa muda de figura. No carnaval, machões se vestem de mulher, homens pacatos empunham armas de brinquedo e promovem massacres fictícios, mulheres recatadas viram odaliscas se oferecendo (de mentirinha) a qualquer um. 

Botam pra fora o que de fato são (ou uma parte importante e reprimida do que são) e vivem o alívio de uma fantasia permissiva e consolatória.

Freud comentou que a literatura popular, com seus heróis indestrutíveis e sempre triunfantes, é “a literatura do Ego”, destinada a celebrar e gratificar essa imagem idealizada de nós mesmos. Quando colocamos uma máscara, essa máscara vira “o Eu que gostaríamos de ser”; quando criamos um herói, acontece o mesmo. 

Histórias de heróis com dupla identidade são um clichê da literatura popular: Superman, Batman, o Zorro, o Sombra, o Homem Aranha e incontáveis outros têm uma identidade pública, pacata, civil, e uma identidade secreta e famosa, o herói que a cidade inteira teme e reverencia sem saber que se trata daquele mesmo indivíduo banal que todos cumprimentam sem saber que dentro dele se esconde o herói.

A saga do Super-Homem pode muito bem ser vista como um delírio de Clark Kent: um repórter desajeitado, grandalhão, de óculos, tímido, incapaz de arranjar uma namorada. 

Por um processo de compensação, Kent começou, a certa altura da vida, a desenvolver uma fantasia de que era na verdade um extraterrestre dotado de superpoderes. Todas aquelas aventuras são imaginárias, são um processo de autoindenização psicológica onde ele cura as feridas produzidas pelo trabalho e sabe-se lá pelo que mais. 

Na sua rotina de redação, Clark Kent embarca waltermittyanamente em devaneios e delírios onde salva vezes sem conta a cidade de Metrópolis e o planeta Terra. O Super-Homem é a máscara que ele usa para “ser ele mesmo”, ser o que ele de fato gostaria de ser. A máscara é o que o Eu gostaria de ver no espelho, mas precisa de uma máscara para isso.  Ninguém contou ainda a verdadeira história de Clark Kent.








3783) Conrad Veidt (9.4.2015)



Ele foi um dos atores mais característicos do Expressionismo Alemão dos anos 1920-30, com seu rosto longo, feições salientes, olhar magnético. O crítico David Thomson o descreveu como “o mais sensível e mais romanticamente belo dos atores expressionistas alemães”, e elogiou sua capacidade de encarnar na tela “o esteta ou artista atormentado por forças obscuras e levado à violência”.  Seu primeiro grande papel foi o do sonâmbulo Cesare em O Gabinete do dr. Caligari (1919) de Robert Wiene: o homem alto, pálido, vestido de preto, que adormecido cruza os telhados levando nos braços a mocinha desmaiada. Cesare virou o modelo de inúmeros outros heróis “dark” do filme de terror, e muitos Dráculas, Frankensteins e Múmias guardam elementos de sua aparência ou de seus movimentos sonambúlicos. Críticos como Kracauer e Eisner viram nele uma alegoria do povo alemão, inconsciente de si mesmo, teleguiado pelo poder da mente de um gênio do Mal.

Em 1926 ele fez o protagonista de O Estudante de Praga de Henrik Galeen, o mesmo Estudante que Vendeu a Alma ao Diabo do folheto de João Martins de Athayde. Outro papel marcante foi o de O Homem que Ri (Paul Leni, 1927), baseado em um romance homônimo de Victor Hugo (1869), onde Veidt faz o nobre francês cujo rosto é desfigurado por uma ordem vingativa do rei. O personagem, com o rosto retalhado e recosturado num esgar que parece uma risada, é considerado a primeira inspiração para o Coringa, adversário de Batman, interpretado depois no cinema por Jack Nicholson, Heath Ledger e outros.

Veidt ainda faria um personagem com ramificações memoráveis no cinema: o grão-vizir Jafar em O Ladrão de Baghdad (1940) de Michael Powell e Alexander Korda. Com bigodes orientais e um fulgor malévolo nos olhos, o seu Jafar serviu de inspiração para o vilão homônimo do desenho Aladim da Disney.  Sua última aparição importante na tela foi como o oficial nazista que inferniza a vida de Rick Blaine em Casablanca (1942) de Michael Curtiz.

Anti-nazista a vida inteira, Veidt tinha um contrato em Hollywood estabelecendo que só faria papéis de alemães se o personagem fosse um vilão. Seu rosto era como o de Greta Garbo: tinha uma expressão que nada revelava do que lhe ia por dentro, mas que aceitava qualquer projeção subjetiva de platéia. Nunca chegou à fama de Vincent Price, Peter Lorre ou Christopher Lee, mas foi uma presença marcante da história do cinema de terror.  Tornou-se a matriz de vilões tão diferenciados que muitas pessoas assistiram Caligari, O Homem Que Ri, Thief of Baghdad, Casablanca, etc., e nunca perceberam que se tratava do mesmo ator por trás daqueles papéis.



terça-feira, 7 de abril de 2015

3782) Definhamento (8.4.2015)



“Thinning” (“definhamento”) é o termo usado pelo crítico John Clute para exprimir o que ele considera um conceito essencial de grande parte da literatura de Fantasia. 

Para Clute (numa argumentação muito mais esmiuçada e cheia de fractais do que sou capaz de reproduzir aqui) a estrutura da história de fantasia básica é a existência de um estado inicial de equilíbrio, depois uma crise que pode ser de definhamento ou de outra vicissitude, e por fim uma arrancada final e uma redenção, mesmo que a um preço alto. 

No caso do horror, é um definhamento sem ruptura, uma queda sem volta nas mãos de forças que podem tudo. O horror é uma fantasia sem luz no fim do túnel.

Na Encyclopedia of Fantasy, Clute diz que muitas fantasias são “fábulas de recuperação”, ou de “restauração”.  O definhamento surge naquelas histórias dos reinos onde não chove mais, onde a rainha não pode ter filhos, onde o rei perdeu a força e a razão, onde algo precioso foi tomado de forma brutal, onde uma maldição recente ou milenar faz a terra regredir a diferentes tipos de entropia, etc.  

A entropia aqui é por minha conta, porque nada impede que uma história de fantasia também ilustre um processo científicamente explicável; não deixa de ser fantasia por isto.  Muitas histórias de fantasia mostram um reino enfraquecido à espera da chegada (ou do retorno) de um herói, ou de um visitante de fora que traga um sopro de energia a um povo que perdeu a vitalidade.

O definhamento não pode ser devido apenas a derrotas militares ou confrontos mal sucedidos com potestades cósmicas.  Pode ser o envelhecimento natural de uma terra, de um povo, que começa a se ver cada vez menos no mundo que criou. A perda dos poderes mágicos de uma civilização pagã, que lentamente dá lugar a uma visão-do-mundo dominante. Os gregos, os romanos, os árabes, a Europa ocidental, todos tiveram seu momento. 

Clute cita como exemplos de “thinning” a exaustão final dos poços de magia em The Farthest Shore de Ursula LeGuin (1972) e o retorno de Frodo a um Condado que não é mais o mesmo no final de O Senhor dos Anéis. (Aqui o verbete sobre “Thinning”: http://tinyurl.com/pq78ukq).

Nem toda fantasia tem que apresentar alguma forma de definhamento, imagino eu, é apenas algo muito típico, tal como a “jornada do herói” tão citada pelos roteiristas.  É uma história possível e uma estrutura mítica profunda. Elementos dramatúrgicos que correspondem a algum modo de sentir ou de devanear que não tem lugar nem época. Podem não ser ingredientes “sine qua non”, mas aparecem com tal frequência e peso que somos obrigados a levá-los em conta quando tentamos entender o espírito do gênero.





segunda-feira, 6 de abril de 2015

3781) "Guardiões da Galáxia" (7.4.2015)



Advertência necessária: gosto de quadrinhos mas não distingo sequer entre a Marvel e a DC Comics, que no mundo das HQs são como a Microsoft e a Apple. 

Não presto atenção às guerras editoriais e corporativas, e quando ouço as palavras “Batman”, “Superman”, “Homem Aranha”, o que me vem à mente não é a fisionomia atual do herói, é uma compostagem de tudo que li e vi sobre eles nos últimos cinquenta anos.

Guardiões da Galáxia (2014) de James Gunn é um filme que resulta disso, de uma compostagem de tipos e situações conhecidos, rearranjados como os pedregulhos de um calidoscópio, de forma a produzir uma falsa impressão de ordem. 

A ficção científica é nesse universo apenas um eco distante, uma espécie de ruído de fundo. O cinema de heróis é um almoxarifado cenográfico onde se vão buscar personagens já prontos, dos quais basta trocar o nome, o ator e a roupa, e aí estão de novo Han Solo e Chewbacca e Indiana Jones e Hulk e outros, sem necessidade de pagar direitos. 

É um filme de ação interplanetária para o público infanto-juvenil – qualquer filme que tenha um guaxinim-falante pilotando uma espaçonave é infanto-juvenil, e ponto final. Sua relação com a FC é a mesma de certas histórias de Carl Barks estreladas pelo Pato Donald e seus sobrinhos.

Assistir esses filmes de ação ininterrupta (que eu, pelo menos, assisto com prazer) é como assistir as “Videocassetadas do Faustão”: ficamos olhando porque a fórmula nos garante que de dez em dez segundos alguma coisa movimentada vai acontecer. Essa promessa é cumprida em Guardiões da Galáxia, que é uma mistura de gincana, trem-fantasma, desfile no sambódromo, Keystone Cops e (como se tornou obrigatório na FC pós-George Lucas) duelos de aviõezinhos da I Guerra Mundial.

Entender a história não é possível, nem necessário, porque todas essas histórias giram em torno de um objeto fácil de reconhecer (neste caso “o Orbe”, uma esfera de metal com propriedades borgianas) que pode ser tomado, furtado, escondido, roubado, prestidigitado de mil maneiras. (Queria ver um filme desses cujo McGuffin fosse do tamanho de uma pirâmide.) 

É sempre arriscado emitir opiniões desdenhosas sobre franquias que têm fãs, porque todo fã é um talibãzinho em defesa dos produtos que adquire. Na verdade não sou fã de ninguém, sou fã das mitologias do nosso tempo, que botam no bolso as mitologias gregas ou nórdicas, pelo menos nos quesitos som, fúria e valores-de-produção. Assim como os gregos criaram o Monte Olimpo à sua imagem e semelhança, criamos nós Gotham City, Metropolis e essas galáxias tão parecidas com o mundo corporativo, manipulativo, cruel e bem assalariado que as imaginou.




sábado, 4 de abril de 2015

3780) Caminhos do insólito (5.4.2015)



Participei dias atrás do VI Encontro Nacional “O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional”, realizado na Uerj (Rio de Janeiro), sob a coordenação do Prof. Flávio Garcia, numa mesa que contou com as presenças de Júlio França e Flávio Carneiro.  Os “encontros do insólito” na Uerj são um importante evento acadêmico de discussões sobre a literatura fantástica, tendo gerado inclusive uma série de livros reunindo as conferências e palestras dos participantes, num arco temático que inclui Murilo Rubião, literatura gótica, Mia Couto, realismo mágico, Borges, ficção científica e por aí vai. Juntamente com o Congresso de Literatura Fantástica (CLIF) organizado pelo Prof. André de Sena na UFPE (Recife), é um dos eventos acadêmicos mais importantes no estudo do que é variadamente chamado de “literatura não-mimética”, “literatura anti-científica”, “literatura meta-consensual”, “literatura da imaginação”... O Fantástico é como Tebas, a cidade das cem portas: qualquer uma lhe dá acesso.

O Fantástico tem mil facetas, porque são mil os pontos de vista que o examinam. O Fantástico (que em suas franjas se confunde com o estranho, o bizarro, o grotesco, o maravilhoso, o absurdo, etc.) é um curto-circuito na narrativa realista de ficção, uma fórmula que exerce um efeito tão poderoso sobre quem a cultiva. Nossa noção de realidade é construída pelas camadas sucessivas de narrativas que nos são impostas ou oferecidas ao longo da vida. Mesmo as narrativas que não aceitamos (as narrativas religiosas ou políticas de interpretação-do-mundo, p. ex.) exercem um certo poder sobre nós, produzem uma inflexão qualquer em nossa maneira de ver as coisas.

No caso da ficção, o Fantástico produz, na experiência da leitura, um choque de estranhamento, de paradoxo, de crise interpretativa. Ler uma história é crer nela pelo menos no nível palavra-a-palavra: “Certa manhã, depois de uma noite de sonhos inquietos...”  Vamos acreditando em tudo à medida que lemos, porque esse é o mecanismo inevitável da literatura, e nesse acreditar transpomos sem perceber um limite onde começam a suceder coisas que relutamos em aceitar.  O Fantástico não envolve apenas uma negação instintiva dos fatos narrados (“não, isso não pode acontecer na vida real!”), mas um retratar-se, uma negação da própria crença momentânea que tivemos no instante de leitura da frase. É a nossa própria voz interior, como leitores, que nos “diz” (porque está lendo e entendendo) o fato bizarro e insólito, o fato inacreditável.  É um debate entre o Eu que leu e por um segundo acreditou e o Eu que se ergueu, vigilante, e proibiu que ele acreditasse.



sexta-feira, 3 de abril de 2015

3779) Fim dos tempos (4.4.2015)


(ilustração: Saul Steinberg)

Um dia ainda vamos lembrar dos tempos difíceis de hoje e sentir saudades deles, e vamos chamá-los, com nostalgia, “o tempo em que tínhamos tudo”.  Porque já estaremos num tempo em que vai ser mais importante ter uma arma e munição à cabeceira do que comida no refrigerador.  A humanidade gosta de correr riscos, ou se não gosta pelo menos dá essa impressão, a julgar pelos riscos desnecessários que corre. Um futuro tipo Mad Max 2 não é mais impossível do que um futuro sem guerras, e ainda existe tanta gente que luta por um mundo sem guerras. “Pobrema”, diria o coronel Galdino, “é que guerra engorda mais o putufu”.

Se a vida é de fato um sonho, como queria o poeta, talvez não seja o sonho de algum redator de Hollywood, e sim o pesadelo de algum professor de filosofia lituano da década de 1930. Em seu mundo paralelo, ele usou, para descrever o mundo industrial pós-moderno, a expressão “cobra que se devora a si mesma deixando apenas matéria negativa em seu lugar”. A imagem o deixou tão fascinado que ele foi o primeiro humano em mais de dois séculos a dar uma guinada na História pela mera intensidade de um pensamento. O mundo em que vivemos é o que ele vem pensando desde então, numa dimensão onde não existe morte.

O parágrafo acima é a sugestão para um começo de conto fantástico, mas seria possível torná-lo mais FC. Digamos que essa imagem mitogeométrica foi divulgada por um grupo de cientistas em experimentos quânticos, e foi ela que sugeriu, a certa altura, a formulação relativamente simples de algum abstruso entrelaçamento infratômico. A descoberta desencadeou, entre outros efeitos medianos, a criação de um videogame simulacrônico onde cada um de nós é apenas um algoritmo ensinado a pensar como cada um de nós. Nós, a Terra, nosso universo, somos um videogame para alienígenas ociosos e com uma dimensão a mais que nós.  Jogam conosco com a mesma sede de rejuvenescimento que fazia os deuses do Olimpo descerem aos bailes rurais da Grécia.

O Universo é um “Show de Truman” onde Truman somos sete bilhões de inadvertidos, quebrando a cabeça com os problemas daqui, esquentando o sangue com as patifarias daqui, perdendo o sono por causa das incertezas daqui. E o tempo todo, como naqueles contos do tempo do romantismo, “era tudo um sonho”. Tudo um jogo, não menos honroso que um xadrez, não menos desfrutável do que se fosse um futebol. O mundo não é real? Que seja, mas cada hipótese do Real é um conjunto de regras. É só tê-las em mente e aplicá-las a uma pseudo-existência qualquer. O jogo é para ser jogado, a vida é para ser vivida, mesmo que a gente descubra que é de mentira.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

3778) Trilogia Comando Sul (3.4.2015)



Um dos projetos de tradução em que estou envolvido desde o ano passado é o da trilogia Southern Reach (“Comando Sul”), de Jeff VanderMeer, que está sendo publicada no Brasil pela Editora Intrínseca. O primeiro volume, Aniquilação (“Annihilation”) já saiu. No momento, estou finalizando a tradução do segundo volume, Autoridade (“Authority”). O terceiro, Aceitação (“Acceptance”) deverá sair no fim deste ano ou começo do ano que vem, mas por questões de cronograma talvez venha a ser traduzido por outra pessoa.

O primeiro livro é o diário de uma bióloga (os personagens não recebem nomes) membro de uma expedição à Área X, uma região misteriosa que, há mais de trinta anos, foi isolada do mundo por uma barreira invisível, com apenas um pequeno portal por onde os EUA (isto se dá mais ou menos no litoral da Flórida) enviam expedições sucessivas para investigar. As expedições são às vezes exterminadas com violência por forças desconhecidas, ou então seus membros se matam uns aos outros, ou voltam todos incólumes mas desmemoriados, incapazes de dizer algo útil sobre o que viram, e morrem rapidamente de um tipo raro de câncer.

Não vi nas entrevistas de VanderMeer nenhuma referência ao cinema de Andrey Tarkovsky, mas sua trilogia me lembra em primeiro lugar o filme Stalker (sobre uma área igualmente misteriosa e inacessível, bloqueada pelo governo, e que produz em quem a invade uma espécie de estado alterado de consciência) e a certa altura também Solaris (um ambiente que produz réplicas semi-conscientes de pessoas reais).  Mas o foco de VanderMeer muda no segundo livro. Autoridade ocorre fora da Área X, nas instalações do Comando Sul, a agência do governo (ligada à CIA) a quem cabe investigar o mistério. O novo protagonista, Controle, é o chefe recém-nomeado das investigações, perdido num labirinto kafkeano de burocracia e conspirações políticas, enquanto tenta fazer sentido dos fatos espantosos daquela área onde surgem “anomalias topográficas” (uma torre invertida, entrando de chão adentro, etc.) e onde pessoas e animais parecem sofrer mutações espantosas e aceleradas.

VanderMeer tem uma prosa rica e precisa, principalmente no primeiro livro, que é mais enxuto e mais evocativo. Sua obra (City of Saints and Madmen, Secret Life, etc.) sempre se destacou por se voltar para a biologia, a botânica, a oceanografia; é uma FC do planeta Terra, ou de planetas semelhantes à Terra em sua biodiversidade bizarra. Sua trilogia mostra um mistério científico espantoso relegado a segundo plano (de verbas, orçamento, pessoal, etc.) num mundo caótico, consumido pelo terrorismo e pela crise econômica.