terça-feira, 10 de março de 2015

3758) Caça aos clichês (11.3.2015)



Lendo uma entrevista do jornalista Sérgio Augusto no suplemento Cândido (Curitiba-PR), li um parágrafo que me alegrou e me constrangeu, quando ele fala do uso insuportável de clichês nas matérias de jornal e revista. Diz ele:

“Para ganhar tempo, paro de ler de imediato qualquer texto com clichês e expressões que abomino.  De imediato, mesmo, ainda que o assunto me esteja interessando. É minha forma de protestar em silêncio contra o insulto que a meu ver representam coisas do tipo ‘resgatar a memória’, ‘conquistar corações e mentes’, ‘ícone’ disso e daquilo, ‘emblemático’, e por aí vai, o glossário não para de crescer. Com a internet e seu vale-tudo vernacular, sintático e estilístico, esse descalabro atingiu culminâncias inéditas. Há blogs que, só de olhar, me provocam engulhos, com seus pontos de exclamação torrenciais, suas palavras ‘gritadas’ em caixa alta, seu gosto por hipérboles do tipo ‘o máximo’, ‘genial’, ‘imperdível’.”

Fiquei alegre porque concordo, e constrangido porque uso alguma dessas besteiras. São as filhas da pressa e da palavra impressa. Vemos uma frase repetida dia e noite, noite e dia, em jornal, em livro, em TV, em rádio, em papos ao vivo... Aquilo se instala em nossa memória por mero peso estatístico. Quando tentamos dizer alguma coisa parecida, nossa memória age como um Google e nos traz “a mais frequente, a mais acessada”. Aí a gente escreve coisas do tipo: “O novo livro de Fulano de Tal me deu um prazer inenarrável”.

O clichê nunca é uma simplificação, é sempre uma enfeitação de uma idéia.  Como tantas enfeitações, no momento em que aparece produz um susto-de-novidade que pode passar como uma comunicação mais intensa.  O leitor percebe aquela expressão que nunca viu na vida: “Resgatar a memória”. Que coisa profunda: a nossa memória, a nossa História foi sequestrada, e estamos invadindo o território inimigo, pegando-a de volta na marra, como é nosso direito, etc.  Depois da décima vez, no entanto (e pra isso bastam alguns meses depois da primeira vez), quem aguenta mais ouvir o clichê? Deixou de dizer. Virou uma expressão coringa, sem informação própria, e que está ali meio que guardando lugar para a próxima expressão criativa que alguém vier a produzir.

O clichê é como aquele cigarro de mentira dos caras que estão tentando deixar de fumar.  Eles ficam segurando, levando à boca, aspirando sem fumaça, botando no cinzeiro ou na beirada da mesa...  O objeto cumpre todo o ritual de movimentos de um cigarro, mas não tem essência de cigarro.  Não transmite informação nicotínica, assim como o clichê não transmite mais nenhuma informação verbal nova.



segunda-feira, 9 de março de 2015

3757) Racismo e literatura (10.3.2015)




(Nalo Hopkinson e Samuel R. Delany)


Num artigo de 1998 sobre “Racismo e Ficção Científica” (aqui: http://tinyurl.com/corglp), Samuel R. Delany comentou, entre outras coisas, o que ele chama de “racismo de boas intenções”. Ele afirma, muito tranquilo, que o racismo não é necessariamente um impulso de maldade: 

“O racismo é um sistema. Como tal, ele é alimentado tanto pelo acaso quanto por intenções hostis e até mesmo boas intenções.  Ele é tudo que sistematicamente acostuma  as pessoas, de todas as cores, a se sentirem confortáveis com o isolamento e a segregação das raças, num nível visual, social ou econômico – o que por sua vezes tanto apoia quanto é apoiado por uma discriminação sócio-econômica.”

Delany, que é negro, conta o episódio de sua ida a uma convenção de FC onde as sessões de autógrafos eram realizadas com duplas de autores, durante uma hora, para dar chance a todos. A autora indicada para autografar junto com ele nesse dia foi Nalo Hopkinson, uma jovem autora negra, ex-aluna e amiga dele.  

Delany depois observou aos organizadores que era amigo e ex-professor de dezenas de outros autores. Por que escolheram Hopkinson para ficar com ele na mesa?  E o pessoal, com toda simpatia, disse: “Bem, achamos que vocês dois juntos se sentiriam mais à vontade”.

A boa intenção da rapaziada acabou reproduzindo um isolamento do tipo “negro anda com negro, branco anda com branco”.  

Delany diz que várias vezes por ano é chamado para mesas-redondas de FC ao lado de Octavia Butler, outra escritora negra, que ele admira, mas que faz uma literatura completamente diferente da literatura dele.  Por outro lado, ele se considera muito identificado com a literatura dos cyberpunks; Wiliam Gibson fez um prefácio elogioso à reedição de seu romance Dhalgren, declarou ter sido influenciado por ele, etc., mas ele não é chamado para debater com os cyberpunks, que por uma certa coincidência são todos brancos (ou eram, na época do texto).  

Não: só o convidam para, junto a Octavia, ou a Nalo Hopkinson, ou a Tananarive Due, falar sobre “a ficção científica afro-americana”, uma coisa, diz ele, “que, em grande parte, existe apenas porque recebeu um nome”.

“Tudo que essa comparação indica,” diz ele, “é a força pura e não-adulterada do discurso de raça em nosso país, comparado a qualquer outra. Numa sociedade como a nossa, o discurso de raça está tão envolvido e misturado com o discurso do racismo que eu desafio qualquer pessoa a conseguir fazer uma distinção clara e precisa entre os dois. (…) O racismo consiste também em acostumar as pessoas a se familiarizar com certas configurações raciais, de modo a que se sintam desconfortáveis com outras.”




domingo, 8 de março de 2015

3756) Quatro tábuas e uma paixão (8.3.2015)



Uma frase muito citada por aí, e atribuída a Shakespeare, é a que define o teatro como “quatro tábuas e uma paixão”.  Ou seja, para se fazer teatro precisa-se apenas de um espaço mínimo, para encenar em cima dele uma paixão humana representada por atores.  É uma frase que equivale à famosa máxima de Glauber Rocha para fazer cinema, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”.

Fui rastrear essa frase e, como sempre, descobri que a história é muito diferente. Pra começar, não é de Shakespeare; tudo indica que seja de Alexandre Dumas.  Num artigo publicado em 1883 a respeito de Dumas, William Ernest Henley cita o autor francês:

“’Tudo que eu quero,’ disse Dumas numa comparação memorável entre ele próprio e Victor Hugo, “são quatro cavaletes, quatro tábuas, dois atores e uma paixão’; e as suas peças são uma prova de que não falava mais que a verdade”.

Quatro cavaletes, com quatro tábuas deitadas por cima deles, fornecem um palco mínimo. Já vi alguns atores e músicos (não são todos, claro) dizerem que pra se apresentarem bem precisam estar acima do chão, nem que seja um palmo. Não por se acharem superiores, mas para terem melhor a sensação de um espaço diferenciado, o espaço da criação, que (na cabeça deles) precisa ser distinto do espaço da platéia.  Veja-se que Dumas lembra de incluir os “dois atores”, porque o ator é o núcleo do teatro, sem eles nenhuma “paixão” é possível.

O número de tábuas varia entre duas, três e quatro, nas outras referências que achei no Google.  Acabei achando até referências minhas, no tempo em que eu, indo de maria-vai-com-as-outras, atribuí a frase a Shakespeare.  Pelo que vi agora, acho que foi mesmo Dumas quem disse primeiro.

Quatro tábuas, dois atores, uma paixão.  Esta seria para mim a fórmula mais redonda para essa idéia, inclusive pela simetria geométrica que propõe, numa concentração de importância proporcional à diminuição de quantidade (4, 2, 1).

E a literatura, seria o que?  Eu respondo: um toco de lápis e um pedaço de papel.  Ninguém precisa de mais do que isso (e um cérebro, claro) para fazer boa literatura.  É possível fazer poesia com uma lata de spray e um muro, com uma lasca de carvão e uma parede.  Mas hoje tem romancistas que não conseguem escrever sem ser num notebook Mac, “por causa dos comandos, dos recursos, da interface gráfica”, etc.  É meio constrangedor perceber que, se a humanidade regredir a um estágio pré-computador (o que não é impossível, no caso de uma catástrofe econômico-ecológica em escala mundial) muitos escritores vão deixar de sê-lo, mesmo que estejam cercados por pilhas enormes de cadernos e de canetas esferográficas.




sexta-feira, 6 de março de 2015

3755) "Trovão Tropical" (7.3.2015)



Este filme dirigido por Ben Stiller (Tropic Thunder, 2008) parece se perder um pouco pelo meio do caminho, ou talvez seja só impressão, porque ele descreve um filme de guerra no Vietnam cuja filmagem se perde no meio do caminho. O filme é uma comédia, uma gozação com essa equipe de atores vaidosos, prima-donas, competitivos, amalucados, principiantes, todos vestidos de soldado e reclamando do desconforto. E, depois de entregues a si mesmos, demonstrando uma persistência notável e uma imensa sorte.

O gancho do filme, a sua idéia original, é a de que o diretor, para dar realismo às filmagens, leva seu elenco, vestido para combater os vietcongs, para dentro da mata.  Diz que continuem interpretando o tempo todo, porque há câmaras e microfones espalhados pelo trajeto que deverão seguir.  Essa era a intenção, de fato, mas os vietcongs se antecipam, cercam o pelotão, veem o diretor pisar numa mina e voar em pedaços.  Um dos soldados olha aquilo e diz; “Puxa vida, o pessoal dos efeitos especiais está se superando.”  E o filme vira o confronto entre um grupo que está guerreando pra valer (os vietcongs, que na verdade são traficantes de heroína) e os atores-vestidos-de-soldado, que ainda acham que estão num filme.

Trovão Tropical tem uma porção de piadas menores bem encaixadas, numerosas cenas de paródia, pastiche, homenagens ou meras citações de outros filmes.  Os soldados estão na selva, combatendo vietcongs, mas falam o tempo todo sobre fofocas de Hollywood, se Fulano devia ganhar o prêmio ganho por Sicrano, boatos de bastidores e de filmagens. O personagem de Robert Downey Jr. se pinta de preto para interpretar um negro; diz ele que quando interpretou Neil Armstrong, foi encontrado uma vez num beco, de madrugada, querendo reentrar na atmosfera da Terra dentro de uma caixa.  O de Jack Black é viciado em heroína e cai em plena crise de abstinência.

É um filme curioso este, que consegue manter um mínimo de verossimilhança numa batalha entre atores e guerrilheiros de verdade, porque disparam-se milhares de tiros e as explosões são muitas, e ainda assim sabemos que nada de muito grave vai acontecer.  E todas essas cenas de selva têm contraponto ao mostrar as cenas de Hollywood, nos escritórios do produtor do filme (Tom Cruise) e do agente (Matthew McConaughey) do ator principal (Ben Stiller).  Como sátira ao cinema de ação e ao sistema de produção de Hollywood, tem sem dúvida uma grande contribuição de Ben Stiller (idealizador, produtor, diretor, ator principal e co-roteirista), um comediante nem sempre bem aproveitado mas que aqui, pelo menos, parece que conseguiu fazer o que queria.



3754) Syd Field falou (6.3.2015)



Ele é o deus-pequenino das oficinas de roteiro, e tem uma fórmula mágica pra fazer um filme dar certo. Syd Field já veio ao Brasil trocentas vezes, e espalha pelo mundo sua mensagem com a fé e a euforia de quem descobriu o universo.  Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.  Discordo da faceta engessadora e bitolada da sua teoria de que todo filme tem que ter três atos, todo ato precisa ser encerrado com uma cena de tal ou tal tipo (que ele chama “pinça”, “ponto de virada”, sei lá mais o que).  Por que combato? A fórmula não funciona? Ah, funciona, sim.  Para algum tipo de filme.  Querer impor essa fórmula em todo filme é como se Leonardo da Vinci fosse dar aulas de pintura e dissesse: “Todo quadro tem que mostrar uma mulher sentada, com as mãos pousadas no colo, e sorrindo.  São os três elementos básicos da pintura.”

Mas Field, é claro, dá muitos conselhos úteis.  Alguns passam meio despercebidos.  Por exemplo, em Como resolver problemas de roteiro (Ed. Objetiva, 2002) ele diz: “A informação visual que recebemos é cumulativa.”  Ou seja: não temos que mostrar tudo de uma vez só, mas tentar fazer com que cada plano mostre um pedaço a mais da ação ou do ambiente.  Uma das coisas que a narrativa do cinema conquistou com grande esforço foi a capacidade de ajudar o público a visualizar um complexo ambiente interno (uma casa com muitos corredores, salas, etc.) com alguns poucos planos, de modo a que o espectador perceba como estão em relação um ao outro. 

Se a informação faz sentido para o público, é possível encadear os planos numa certa relação: “eles passaram do terraço para o salão... essa escadaria leva ao primeiro andar... esse terraço fica do outro lado da casa, voltado para aquele pomar...”  Às vezes um plano parece desnecessário (uma pessoa sai de um quarto com um candelabro, segue pelo corredor, vira à esquerda) mas ele mostra a que distância e em que direção ficam os quartos de A, B ou C.  O espectador tem que acompanhar os diálogos, entender a história, conhecer os personagens, e também quer entender o espaço onde a ação acontece.

“Encontrar formas de expandir o roteiro visualmente.  Atenção aos detalhes da cena que podem permitir um close, um movimento, um corte brusco, um plano de detalhe.”  Cada avanço ou recuo da câmara, cada mudança de luz amplia o espaço do filme. Um quarto na penumbra.  Um homem deitado. Uma mulher entra, vai direto à janela, abre de par em par, chama o homem com alegria para ver alguma coisa.  Ele levanta, os dois debruçam na janela, ficam tagarelando, mas a luz da janela revelou uma terceira coisa que é agora tudo que o espectador vê, e que os dois não percebem.




quarta-feira, 4 de março de 2015

3753) Táxi com DVD ligado (5.3.2015)



É cada vez mais comum a gente entrar num táxi e ver que o motorista está dirigindo e assistindo TV ao mesmo tempo, numa televisãozinha acoplada ao painel, onde tanto pode estar rolando um noticiário quanto o DVD de uma dupla sertaneja.  

Em vez de implicar, e ficar pedindo que desligue aquilo (o que seria o procedimento mais ajuizado) eu prefiro dar uma de cientista e ficar analisando o comportamento do cara. “Não atrapalha não?”, pergunto. Eles dizem algo como: “Não, eu não fico olhando o tempo todo, só olho quando paro.”  Ou então: “Deixei ligado só pra saber das notícias.”  Eu: “Por que não deixa só o áudio, então?”  Ele: “Ah, porque certas notícias tem imagens que a gente quer ver, enquanto eu vou devagarinho eu dou uma espiada, ou deixo para espiar quando paro no sinal”.

Há um sistema que elimina a imagem quando o carro está em movimento.  Já peguei táxi com um DVD rolando, mas sem imagem: era um show, a música avançava normalmente, mas a tela estava preta, com um letreiro branco no meio.  Cada vez que o carro se imobilizava, a imagem reaparecia.  Quando o carro avançava de novo, a tela ficava preta.  Imagino que seja muito simples fazer esse sistema acoplado, que reduz um pouco o risco de acidentes.

Mas (pergunto) se dirigir falando ao celular pode resultar em multa, por que é permitido ao taxista dirigir assistindo jogo de futebol (pense numa coisa onde a olhadela é inevitável, na hora H!)?  Ou assistindo DVD de música, filme, o que seja?  O risco de acidente, por uma olhadinha rápida, não é o mesmo que o de falar ao celular?

A verdade é que a TV invade todos os espaços.  Vi uma entrevista de um europeu que veio ao Brasil e ficou escandalizado com o fato de que em todos os restaurantes em que entrou havia uma TV ligada, geralmente na programação da Globo. “Na Europa,” dizia ele, “vai-se ao restaurante para comer e para conversar.  Uma TV ligada num restaurante é uma invasão de um espaço de privacidade.”

Não é que o achamos aqui, não é mesmo?  Temos TV ligada em salas de espera, em consultórios, em rodoviárias, em lojas, em repartições, em qualquer espaço onde se pressupõe que um grupo de pessoas estará parada, esperando.  É preciso evitar que essas pessoas pensem, que fiquem entediadas, que fiquem sozinhas com elas mesmas.  É preciso massacrar programas, blá-blá-blá, filme de carro explodindo, futebol, talk show, não importa o quê.  

A televisão é a forma mais avançada de condicionamento mental, onde importa menos o que está sendo mostrado, e importa muito mais o que, através daquilo, está sendo mantido longe dos corações e mentes. Há muitas formas do Big Brother fazer-se amar, fazer-se obedecer.





terça-feira, 3 de março de 2015

3752) Como começar um livro (4.3.2015)


(Flannery O'Connor)


Nos blogs e saites com listas dos “melhores começos de livros”, “melhores finais”, etc., as listas me dão boas dicas para livros que nunca li e nunca lerei.  

O que falta neles, às vezes, é teoria.  Tudo bem escolher algumas linhas do romance de Fulano e dizer que é uma das grandes aberturas-de-romance de todos os tempos.  Mas, por quê?  

Nem todo sujeito que faz essas listas se dá o trabalho de justificar suas escolhas.  Em geral não são críticos – estes, sim, têm o trauma de precisar justificar até o-que-não-é-preciso.  São simples fãs, e as verdades estéticas de um fã são “auto-evidentes”.

Vou escolher um trecho colhido num desses saites, de uma autora que nunca li, um livro que não conheço. 

São as linhas iniciais do romance The Violent Bear It Away (1960), de Flannery O’Connor, uma escritora do sul dos EUA, muito respeitada, mas não me lembro de ter lido sequer um conto dela. Sou um leitor indiferente, portanto.  Como começa o livro? 

“Fazia apenas metade de um dia que o tio de Francis Marion Tarwater estava morto, quando o menino ficou bêbado demais para terminar de cavar sua cova e um negro chamado Buford Munson, que tinha vindo encher um garrafão, teve que acabar o serviço e arrastar o corpo desde a mesa do café-da-manhã, onde ele ainda estava sentado, e sepultá-lo de um jeito decente e cristão, com o sinal do Salvador plantado na cabeça do túmulo, e terra bastante por cima para impedir que os cães o puxassem para fora.”

Não tenho a menor idéia do que é esse romance (só vou olhar depois), mas olhe só que começo cheio de informação!  

Tem esse menino (que idade terá ele?), a quem cabe a tarefa de enterrar sozinho o tio (imagino que F. M. Tarwater seja o próprio garoto) e não pôde terminar porque ficou bêbado. (Talvez isso corresponda a uma tradição como a tradição nordestina de que trabalhadores que limpam fossa sanitária bebem cachaça durante o trabalho, o que sempre deu origens a episódios pitorescos e escatológicos.)  

Aparece um negro, com aqueles nomes pomposos e vazios de tantos personagens negros do Sul dos EUA, que parecem nome de governador.  

Veio em busca de bebida (um garrafão, “a jug”) – talvez fosse um local de “moonshiners”, fabricantes clandestinos de bebidas.  

Teve que ir buscar o corpo, que, num detalhe digno de Buñuel, continua sentado à mesa onde morreu.  

E os detalhes finais mostram uma mistura de espiritualidade (“the sign of its Saviour at the head of the grave”) e de brutalismo (“enough dirt on top to keep the dogs from digging it up”).  

O leitor sente firmeza em quem escreve. Não precisa mais do que isso para dar vontade de ler o resto.





3751) O Sr. Spock (3.3.2015)



(Spock, por Ellygator)


Nunca assisti Jornada nas Estrelas (“Star Trek”) na época em que deveria ter assistido.  Se o tivesse feito, a série estaria protegida pelos mesmos habeas-corpus afetivos que beneficiam Quinta Dimensão, Além da Imaginação e outras.  Só comecei a ler a seu respeito quando em 1981 pus a mãos na Encyclopedia of Science Fiction (Nicholls/Clute) e fiquei sabendo do seu imenso sucesso.  Vi alguns episódios ao acaso, vi 2 ou 3 longas-metragens feitos depois, mas, não, não posso dizer que sou um fã de Star Trek.  Olho suas qualidades (são várias), anoto suas limitações (idem), avalio tudo com olhos de crítico, com um olhar de não-fã, um olhar distanciado, brechtiano.  O olhar (só agora me ocorre isto) do Sr. Spock.

Spock (cujo ator, Leonard Nimoy, faleceu dias atrás aos 83 anos) era um Vulcano, um humano pertence a uma raça que, pelo que entendo, não exterioriza suas emoções.  A frieza de Spock, sua postura imperturbável, tinham algo do não-sorriso permanente de Buster Keaton, do cerebralismo autoconfiante de Sherlock Holmes, do pragmatismo calmo de tantos robôs na história da FC.  A discussão a seu respeito ia de “ele é incapaz de emoções” até “ele se emociona mas aprendeu a não demonstrar”.

A indústria cultural se baseia no estímulo às emoções.  Excluam as emoções e escutem o desmoronamento do cinema, da TV, da música, da literatura popular.  Se esse comércio todo tivesse que se basear na lógica, na frieza e no raciocínio que Spock representava, não passaria de uma barraca de fundo de quintal.  O mundo é emoção, e Spock se destacava por contraste. Ele é frio e lógico. Consegue analisar problemas, em situações de emergência, como se fosse algo meramente formal, algo de que não dependesse a sobrevivência da Enterprise e a dele próprio.  Na política, talvez procure uma posição em que a brasa possa aquecer por igual as sardinhas disponíveis.

Uma parte dos admiradores de Spock são todos aqueles nerds que, como eu, já pagaram algum mico por não saberem controlar as emoções. Já meteram os pés pelas mãos, quebraram a cara, produziram episódios de grosseria ou descontrole; e ficaram depois, com a cara enterrada no travesseiro, jurando a si mesmos que da próxima vez não se deixariam manipular daquela forma.  E uma parte vem das fãs femininas, para quem a imagem de um homem totalmente apolíneo é O Grande Desafio de suas vidas. Será que ele é assim, indiferente, apenas “por que ainda não achou a garota certa”?  Toda trekkie adolescente já alimentou essa fantasia de ser um dia “a mulher que fez o Sr. Spock balbuciar de paixão, confessar seu amor, dizer que está morrendo de saudade”.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

3750) Spoilers (1.3.2015)




(Agatha Christie)




Quando o cartunista Péricles fazia “O Amigo da Onça” na revista O Cruzeiro, um dos meus preferidos era o que mostrava uma fila na bilheteria do cinema e o Amigo da Onça saindo da sessão anterior e repetindo, enquanto caminha ao longo da fila: “O assassino é o pai da moça... o assassino é o pai da moça...”  

Eu já lia Agatha Christie; era capaz de captar a crueldade dessa ação. Quando uma narrativa (filme, livro, etc) coloca todo seu peso no aparecimento de um enigma e sua posterior resolução, saber essa solução antecipadamente estraga 90% do prazer.

Daí que um debate antigo na literatura policial tenha sido o de manter a presença e o interesse do enigma, mas de tal maneira que ele não seja o único motivo pelo qual o livro está sendo lido.  

Um leitor do O Caso dos Dez Negrinhos de “Dame” Agatha pode, mesmo sabendo quem é o “vingador invisível”, reler o livro somente pelo clima de suspense, pela detalhada criação de personalidades.  Mas nem todo livro dela se sustenta para quem já sabe o final.  

Um volume de análise muito interessante (A Talent to Deceive – An Appreciation of Agatha Christie, 1980, de Robert Barnard) previne o leitor, na introdução, de que os capítulos de 4 a 6 são obrigados, por serem capítulos de análise técnica dos enredo, a revelar o final; mas o autor avisa que os demais capítulos podem ser lidos sem susto, pois não revelam mais nada.

Não é só com o romance policial.  Muitas obras de literatura mainstream têm revelações finais que são cruciais para o enredo, e que não são necessariamente sobre um crime. Pode ser uma revelação de identidade, como em Grande Sertão: Veredas, ou a descoberta de que o mundo não é o que parece ser, como em tantos romances de ficção científica. 

O mistério e o enigma não pertencem apenas à literatura de crime. Eu gostei muito dos desfechos de A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco, ou de A Invenção de Morel de Bioy Casares. Se vier a escrever sobre esses livros, terei que omitir informações, para que o leitor leia em paz, fique impregnado do livro por inteiro, e possa extrair desses momentos literários a satisfação que eles pretendem produzir. 

Como resenhar livros dessa natureza?  Eu diria que a uma solução possível é: 

1) resenhar o romance descrevendo-o apenas em parte; 

2) prevenir o leitor de que o enredo se baseia em algum tipo de surpresa ou resolução de enigma; 

3) criar um certo suspense sobre o não-dito.  Deixar que a consciência de que há “spoilers” (revelações inoportunas) à espreita funcione como um atiçador a mais da curiosidade do leitor, e é melhor ainda que ele não saiba ao certo qual aspecto da história está sujeito a spoilers.





sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

3749) "The Black Room" (28.2.2015)



Colin Wilson, escritor existencialista britânico, propôs o conceito de “outsider” para designar o indivíduo inquieto, rebelde, movido por uma intensa busca de sentido na vida, e que tanto pode derivar para a grande arte quanto para o crime.  Muitos livros seus têm como centro personagens que realizam essa busca.  Neste romance de 1971, a história acompanha o compositor erudito Christopher “Kit” Butler, que aceita, meio na esportiva, o convite de um amigo que faz parte do Serviço Secreto britânico, o MI5, para participar de uma experiência científica como cobaia altamente qualificada.  A experiência, realizada numa espécie de hotel-com-laboratório num lugar remoto, consiste em submeter-se durante dias à experiência da total privação dos sentidos da visão e (tanto quanto possível) da audição.  O objetivo é medir o grau de resistência ao tédio e ao isolamento, para seleção e treinamento futuro de espiões.

Butler é o porta-voz das teorias de Wilson, e discute com os cientistas e as outras cobaias sobre energia mental, concentração, autocontrole emocional, etc.  Ao mesmo tempo, ele percebe que outras agências, como a CIA, a KGB e uma misteriosa “Estação X”, espionam as pesquisas dos ingleses.  Na segunda parte do livro, Butler, já aprovado, está em Praga numa missão um tanto inócua mas arriscada. É sequestrado e depois de algumas aventuras violentas vai parar na sede da misteriosa Estação X, onde se defronta com um chefe cheio de teorias próprias sobre o assunto.

Em matéria de escritor popular, conheço poucos como Colin Wilson capazes de encadear uma discussão filosófica e psicológica superficial, mas que faz sentido, com aventuras e um senso de realidade satisfatório.  Os seus romances policiais são bem melhores que sua ficção científica, e The Black Room lembra um pouco aquelas histórias de espionagem cheias de traições, subentendidos e reviravoltas, tipo John Le Carré.  O único defeito do livro, se é que é defeito e não um corte ousadíssimo, é que ele não acaba, interrompe-se bruscamente.  Há um desfecho em vista, mas precisaria de mais 20 ou 30 páginas para dar-lhe alguma conclusão satisfatória numa situação política tão complicada, embora haja algumas alusões interessantes à política européia de 1968. 

Pode-se dizer de Wilson o que já foi dito de Philip K. Dick: que a leitura de sua obra pode começar com qualquer título, porque sua visão do mundo está inteira em cada um, e cada um conduz aos demais como se todos fossem continuação de todos. A fé infatigável de Wilson nos poderes da mente humana perpassa sua filosofia, seus romances populares, suas antologias, sua obra sobre crimes e sobre ocultismo.