domingo, 8 de março de 2015

3756) Quatro tábuas e uma paixão (8.3.2015)



Uma frase muito citada por aí, e atribuída a Shakespeare, é a que define o teatro como “quatro tábuas e uma paixão”.  Ou seja, para se fazer teatro precisa-se apenas de um espaço mínimo, para encenar em cima dele uma paixão humana representada por atores.  É uma frase que equivale à famosa máxima de Glauber Rocha para fazer cinema, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”.

Fui rastrear essa frase e, como sempre, descobri que a história é muito diferente. Pra começar, não é de Shakespeare; tudo indica que seja de Alexandre Dumas.  Num artigo publicado em 1883 a respeito de Dumas, William Ernest Henley cita o autor francês:

“’Tudo que eu quero,’ disse Dumas numa comparação memorável entre ele próprio e Victor Hugo, “são quatro cavaletes, quatro tábuas, dois atores e uma paixão’; e as suas peças são uma prova de que não falava mais que a verdade”.

Quatro cavaletes, com quatro tábuas deitadas por cima deles, fornecem um palco mínimo. Já vi alguns atores e músicos (não são todos, claro) dizerem que pra se apresentarem bem precisam estar acima do chão, nem que seja um palmo. Não por se acharem superiores, mas para terem melhor a sensação de um espaço diferenciado, o espaço da criação, que (na cabeça deles) precisa ser distinto do espaço da platéia.  Veja-se que Dumas lembra de incluir os “dois atores”, porque o ator é o núcleo do teatro, sem eles nenhuma “paixão” é possível.

O número de tábuas varia entre duas, três e quatro, nas outras referências que achei no Google.  Acabei achando até referências minhas, no tempo em que eu, indo de maria-vai-com-as-outras, atribuí a frase a Shakespeare.  Pelo que vi agora, acho que foi mesmo Dumas quem disse primeiro.

Quatro tábuas, dois atores, uma paixão.  Esta seria para mim a fórmula mais redonda para essa idéia, inclusive pela simetria geométrica que propõe, numa concentração de importância proporcional à diminuição de quantidade (4, 2, 1).

E a literatura, seria o que?  Eu respondo: um toco de lápis e um pedaço de papel.  Ninguém precisa de mais do que isso (e um cérebro, claro) para fazer boa literatura.  É possível fazer poesia com uma lata de spray e um muro, com uma lasca de carvão e uma parede.  Mas hoje tem romancistas que não conseguem escrever sem ser num notebook Mac, “por causa dos comandos, dos recursos, da interface gráfica”, etc.  É meio constrangedor perceber que, se a humanidade regredir a um estágio pré-computador (o que não é impossível, no caso de uma catástrofe econômico-ecológica em escala mundial) muitos escritores vão deixar de sê-lo, mesmo que estejam cercados por pilhas enormes de cadernos e de canetas esferográficas.




Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Lembro aquele conto de Asimov no qual ninguém mais sabe fazer contas. Quando os computadores entenderem completamente os comandos de voz, a humanidade vai desaprender a escrever e esquecer mesmo qualquer regra de ortografia.