sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

3736) Bartolomeu e Sueli (13.2.2015)



(ilustração: Marion Fayolle)

Não, rapaz, eu posso afirmar a você, não foi culpa nem de Bartolomeu nem de Sueli.  Eu era amigo, convivi com um e com outro antes mesmo deles se conhecerem. Acompanhei tudo. À distância, claro, mas a gente convivia.  E tem mais: pelo grau de amizade, eu não saía apenas com o casal. Às vezes saía para tomar uma cerveja a sós com ele, tínhamos nossos papos de livros e de futebol.  E outras vezes era com ela, porque dávamos aula no mesmo curso, e mil vezes dei carona, tínhamos uma conversa legal sobre política, música, essas coisas.

Culpa não sei, porque ninguém tem culpa de nada.  Se quer mesmo a minha opinião.  Só existe culpa quando existe dolo, intenção de prejudicar, de fazer o mal a alguém.  E muitas vezes o mal que é feito nasce de ruído de comunicação, nasce de uma síndrome-de-Babel em que a gente não só não se entende como nem percebe que está sendo assim, aquilo vira uma bola de neve, no fim dá no que deu. Gosto nem de pensar.

Bartolomeu me perguntou certa vez: “Você acha que Sueli é minha Mega-Sena?”.  Eu dei de ombros, meio em cimão do muro, porque ela não era propriamente uma capa da “Trip”, mas falei: “Rapaz, tem gente que roda a vida toda e não consegue o que tu tem. Aproveita.”  Sueli era um doce, apesar de teimosa com certas coisas, mas me falou certa vez, numa festa junina, no sítio de um professor da faculdade: “Meuzinho é trabalhoso, sim, mas homem que não é trabalhoso não merece confiança”. Não sei porque ela disse isso, achei na época que era um elogio, e era, porque todo mundo o achava meio bobo, mas agora, depois do que ocorreu, eu estou relativizando tudo.

Casal é uma química que nem os dois envolvidos entendem. Como é que a torcida, lá de cima da arquibancada, vai entender?  Não, amigo, pense num mistério. Quando se vê um filme não se visita coxias nem camarins. Ninguém assiste o drama entre quatro paredes, ninguém lê os pensamentos que até quem pensou procura tirar da cabeça o mais depressa possível, ninguém vê o vulcão por baixo da geleira, a ratoeira em volta, só vê queijo.

Hoje é fácil todo mundo dizer que estava destinado a acabar assim.  E Sueli era uma pessoa tênue, maneira. Pra onde o tempo e o vento a assoprassem ela derivaria em paz.  Se o final foi como foi, então palmas para o que foi.  Deixa cada um saber lidar com o momento.  Parece auto-ajuda, mas é somente calo, é cicatriz, é cascão.  Chega às vezes um momento em que o mundo, que parecia cheio de problemas, revela um problema único e final. E só então aquela pessoa percebe que até então estava vivendo o seu melhor momento, tornado ainda melhor pela esperança real de que dali para a frente ficasse tudo assim.





quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

3735) O Jamacós (12.2.2015)



Existe uma zona limítrofe entre o reino animal e o reino vegetal. Musgos, líquens, fungos – tudo isso, embora pertença a um lado, guarda semelhanças ou afinidades com o outro, ou com nenhum. É o que se dá, só que numa escala maior e sob formas imprevisíveis, com o jamacós, uma criatura encontradiça em Bornéu, Sumatra, na Indonésia e em regiões tropicais do Pacífico. Falar do jamacós envolve vários níveis de dificuldade, a primeira delas relativa ao uso do plural ou do singular.

Visto à solta, na natureza, o jamacós parece uma mancha arroxeada de geléia de amora, grudada à casca de algumas árvores que são seu habitat preferido.  Essa mancha aumenta, diminui, desloca-se ao longo da casca de que se alimenta, deixando-a polida, sem rugosidades. Vista ao microscópio, a mancha revela ser um aglomerado fervilhante de pequenas criaturas arredondadas, com ventosas no ventre, unidas umas às outras por filamentos, como irmãos siameses. O jamacós adulto parece-se a uma joaninha, com um décimo de milímetro de diâmetro,  uma quase-esfera arroxeada coberta de pontos negros. A certa altura do ciclo vital, um desses pontos incha, estende-se em filamento e produz na ponta um jamacós idêntico ao original; sem se desprender do primeiro, este segundo jamacós também produz outros filamentos, reiniciando o ciclo, o que dá ao conjunto de todos eles o aspecto de uma infinidade de colares de contas, entrelaçados.

A ciência ainda questiona: o jamacós individual é a bolinha, ou o conjunto de todas elas? Metaforicamente: o indivíduo é a uva, ou o cacho de uvas?  Será que um conjunto dessas manchas de jamacós não pode ser considerado também um indivíduo?  Um conjunto de “cachos” de jamacós comporta-se muitas vezes (principalmente em sua absorção de cascas vegetais) como um indivíduo consciente de si e do ambiente à sua volta, capaz de tomar decisões, capaz de tirar do ambiente o que precisa para sua sobrevivência e de se reorganizar em função desse ambiente.

Há cada vez mais perguntas não-respondidas sobre essa estranha espécie, nas pranchetas e nos tablets dos biólogos. O que leva o jamacós de uma fazenda a aprender com as experiências alimentares de outro, a mil km de distância?  Por que um jamacós precisa alimentar-se sem cessar, se ele mal dorme, é quase imóvel, e não aparenta ter como consumir tanta energia?  São questões ainda em aberto para os que, como nós, se dedicam a essa pesquisa.  Estamos focados no objetivo final, aqui nas inúmeras estufas do Instituto.  Vários de nós já têm até jamacós de estimação, espalhados sobre o colo das professoras, como echarpes, ou presos à testa dos doutorandos mais jovens, estilo bandana.




quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

3734) O original também erra (11.2.2015)



(ilustração: Giambatista Della Porta)

Dizer que o original erra parece uma heresia tão grande quanto afirmar que o Papa se equivoca em matéria canônica.  A idéia de um erro no livro original produz no tradutor, no revisor, um vacilo de incerteza cósmica.  Seria como dizer que Deus joga dados.  Mas é fato. Os originais impressos em qualquer país estão sujeitos às idas e vindas do trabalho assalariado em qualquer país.  O que eu já vi de calamidade de editoração em livro estrangeiro não tá no gibi.

Traduzindo um livro de Tim Powers me deparei com a frase “a darting garb” (numa cena de multidão ao ar livre), cujas traduções possíveis não se encaixavam.  Comecei a pedir ajuda.  Chegou uma carta (era nos tempos das cartas, dos aerogramas, do Coupon Réponse International, tudo o mais) de um amigo dizendo que os livros da Ace Books eram notórios pela revisão claudicante, e que aquilo devia ser “a darting grab”.  Abri uma cerveja e escrevi “um bote certeiro” (o autor estava descrevendo a coreografia de um batedor de carteiras).

Traduzi um romance de horror contemporâneo, ambientado no campus de uma universidade nos EUA, e a certa altura o livro era interrompido por umas duas páginas de um texto totalmente diferente falando de antropóides primitivos duelando numa caverna, e depois voltava para o romance como se nada tivesse acontecido.  Uma gralha; um pedaço de arquivo que alguém tinha botado na Área de Transferência e sem querer tacou Ctrl+V noutro arquivo que estava revisando, e depois ninguém revisou de novo.

Já vi num livro que eu estava traduzindo o autor colocar umas 3 ou 4 vezes ao longo de um compridíssimo diálogo: “ele ergueu-se da mesa”, “ele levantou-se para sair”, etc.  Como se tratava de um enorme “infodump” de desfecho da história, um entulho de explicações do enredo, imaginei que o autor tinha recortado com tesoura-e-cola vários trechos (da Era pré-computador), e os montou. Algumas dessas rubricas, que vinham de diferentes esboços, acabaram vindo junto das respectivas falas.  Cortei e deixei apenas o que orientava a ação.

O original pode errar.  Que o digam Joyce, Rosa, Flaubert e outros que sucumbiram à maldição de Lynotípia, a cruel deusa invocada pelos tipógrafos quando querem rogar praga a um autor muito trabalhoso.  Quanto mais eles corrigiam, mais erros novos se infiltravam em seu edifício perfeito, corroendo-o por dentro.

Olha só que besteira eu escrevi.  Posso supor também que ambos aceitavam a contribuição do erro e do acaso. Há testemunhos.  E que às vezes achavam mais legal a palavra errada que veio da oficina.  Um pequeno tributo para apaziguar a Deusa, algo como o golezinho que se verte no chão para aprazer o santo.




segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

3733) Amor humor (10.2.2015)



(ilustração: Lisa Congdon)


Oswald de Andrade foi um dos praticantes mais espirituosos do poema curto tipo poema-piada.  

Um dos seus mais conhecidos e mais citados intitula-se “AMOR”, e tem uma palavra apenas: “humor”.  

AMOR

humor

Um jogo-de-palavras até simplório para o homem que disse “Tupi or not Tupi, that is the question” e outros biscoitos finos. Oswald tem outros belos poemas de amor.  Era um sujeito meio vulcânico, tinha qualidades únicas, tinha os defeitos de sua época e os de seu temperamento, mas sua atitude amorosa ao escrever é às vezes exuberante.

Muita gente lê esse poema assim: O amor é humor.  O amor tem que ser divertido.  Amor era para ser uma coisa bonita e leve, uma coisa que passa.  Amor não é para carraspanas, melodramas, aquelas tragédias gregas de paixões e de vinganças.   O amor teria que ser uma coisa art-noveau e Modernista ao mesmo tempo. 

Outros leem assim: para manter um amor é preciso ter muito bom humor.  Senão, você endoidece. O humor surge aí não como a essência do amor, mas como uma espécie de contrapeso ou atenuante.  O modo como Oswald os colocou no poema não implica equação.  Pode ter lido, por exemplo, como uma polarização, como se o título fosse “YIN” e o poema tivesse apenas a palavra “yang”. 

YIN

yang

De fato, o amor é muitas vezes descrito pelos seus bardos como a fusão ideal entre duas pessoas, que se tornam capazes de ver com os olhos um do outro, sabem o que o outro está pensando, etc.  

E o humor, claro, é o contrário: é saber se cortar e se isolar instantaneamente de algo ou de alguém, em função de outra associação de idéias que só é possível fazer “de fora”.  A expressão popular “eu perco um amigo mas não perco uma piada” existe porque devem ser muitos os episódios em que alguém manda um gracejo pesado demais para que a amizade se mantenha.  

O amor aproxima, o humor distancia, então o humor é o contrapeso brechtiano, cortando o barato da paixão, que só enxerga a si mesma. Cuidado com um e cuidado com o outro.

Uma das declarações mais bonitas de Riobaldo no Grande Sertão é um trecho em que ele diz que, pro “doutor” ter uma idéia do quanto ele amava Diadorim, ele diz que nunca mangou dele.  O termo não é este, mas é o sentido.  

Quando você manga, zomba de alguém, quando você acha o outro ridículo, é o máximo do distanciamento, é o humor cruel que não tem volta.  O outro nunca mais poderá ser amado, se o mico que pagar for muito grande.  (Ou nem é assim, e sou eu que estou dramatizando a coisa; até isso sara.)  

Não mangar da pessoa amada é um compromisso de honra dos que amam com pureza.  É um pouco como não mangar de Deus, não fazer humor com Deus (pelo menos com o Deus que a gente crê).





domingo, 8 de fevereiro de 2015

3732) O escritor e a mãe (8.2.2015)



(Cortázar e sua mãe)


“Momma boy”, filhinho-da-mamãe, há expressões igualmente desdenhosas em qualquer idioma.  Foi feita para aplastrar aquele menino assustado ou impertinente que não larga a saia materna, e o máximo de independência que ganha ao crescer é uma certa autonomia para chantageá-la e extrair o que quer.  

Porém são igualmente numerosos os casos de meninos criados na órbita de uma matrona e que se tornaram, se não grandes homens, pelo menos grandes artistas (o que, pelo menos pra mim, parece melhor negócio.)

Penso em Julio Cortázar, cujo pai sumiu por completo quando ele tinha cinco anos.  Quando o filho estava famoso, o velho escreveu-lhe pedindo que por gentileza se assinasse “Julio Florencio Cortázar”, para que não fossem confundidos um com o outro. Ele respondeu: “Querido senhor, nada sei do senhor, espero que esteja muito feliz, mas eu vou continuar assinando Julio Cortázar”. 

John Lennon reagiu com mais acidez ainda, quanto o pai o procurou depois da fama; mas Lennon não teve por muito tempo “a virtude de dormir entre dois seios”, como versejou Lourival Batista.  A mãe morreu atropelada quando ele era ainda garoto, mas a preferência afetiva por ela sempre foi muito clara em tudo que ele escreveu.

Penso em Cornell Woolrich, o rei do “roman noir” levado ao cinema (A Sereia do Mississipi, A Noiva Estava de Preto, Janela Indiscreta, etc.). Pais separados; ele ao que parece era gay, teve durante 3 meses um casamento frustrado e depois viveu num hotel com a mãe até a morte dela, quando ele tinha 54 anos. Bebeu até apagar.

Raymond Chandler, que nunca conheceu o pai (alcoólatra, como ele viria a ser), e cuidou da mãe até os 35 anos, quando ela morreu. Meses depois ele casou-se com Cissy Pascal, 18 anos mais velha, e cuidou dela até a morte. 

Não muito diferente foi a trajetória de Jorge Luís Borges, que após a morte do pai cuidou da mãe, D. Leonor (cuidou é eufemismo para “foi cuidado por”).  Teve também um casamento mal sucedido e voltou para morar com a mãe até a morte dela aos 99 anos, quando ele próprio tinha 75. 

Todos parecem ter feito tudo isso em parte pelo bem delas e em parte para si mesmos.  Pode ser imaturo, mas essa convivência gerou talvez um canal de entendimento que foi bom para a literatura de cada um.  

Mas talvez nenhum deles tenha tido o espírito arlequinesco e lúdico que Sartre afirma (As Palavras) ter experimentado na infância ao lado da mãe, que enviuvou muito jovem, o que gerou entre ela e o filho uma convivência de cúmplices numa família dominada por um avô tonitruante; ela e o menino partilhavam passeios, filmes, pequenas aventuras de gente sem culpa que se diverte com bem pouco.







sábado, 7 de fevereiro de 2015

3731) A loucura e a lucidez (7.2.2015)



("The Tell-Tale Heart", por Virgil Finlay)

Não sei quem foi que disse que o remédio de um doido é outro na porta.  Talvez seja preciso um maluco para entender o que se passa na cabeça de outro maluco.  Ele tem que ser capaz de pensar como o maluco e ver que até certo ponto toda maluquice é justificada.  E tem que ser capaz de dar um passo atrás e ver que é só doidice mesmo, ou seja, aquilo não é a narrativa-mãe, aquilo é o Delírio do Depoente.  Por mais comovente que esse delírio seja.  Assim como um bêbado é alguém que ‘NÃO ESTÁ BÊBADO!!!”, um bom doido relativiza qualquer loucura.

Num ensaio sobre a imaginação, Montaigne diz (não li o ensaio, vi a citação por aí): “Gallus Vibius preparou sua mente de tal forma para compreender a essência e a dinâmica da loucura que deixou seus critérios serem distorcidos, a ponto de não poder acomodá-los de novo em seus devidos lugares; e, caso quisesse, poderia se vangloriar de ter-se tornado um abestado através da sabedoria.” 

O psicanalista Robert Lindner tem um ensaio famoso, “O divã espacial” (“The Jet-Propelled Couch”) onde ele descreve a longa terapia de um homem que acreditava piamente num universo paralelo “space opera” onde alternava seus dias com os dias passados na Terra.  (Há uma tese de que esse paciente teria sido o escritor Cordwainer Smith.)  O analista dava-lhe conselhos de como administrar seu império galáctico, mas acabou se envolvendo e entrando na viagem do outro. Recompôs-se depois (não é spoiler), mas admitiu que houve um duelo psicológico intenso, e que por um momento o Delírio do Depoente prevaleceu.

Vejo, por exemplo, Rubião tentando glosar os motes de Quincas Borba, tentando a ominosa tarefa de entender um doido por dentro.  Deve acontecer muito com empresários no campo das artes, que endoidecem por artistas imbancáveis, que se deixam levar mais pelos seus instintos do que pela razão, e que antes dos interesses pessoais pensam acima de tudo nos interesses do coração. Muitos ficam ricos. Provavelmente porque sabem como pensam os seus fãs na derradeira fila a contar do palco. São mentes iguais. 

O protagonista tem um amigo que é doido: eis uma cadeia dramatúrgica presente numa enorme variedade de textos.  Quem entende o doido, sensato lhe parece. O que mais chamamos de loucura é o contrário dela, chamamos de loucura a desorganização fatal do pensamento. Mas não, a loucura também é organização, organização maligna, sugadora, feito raiz de algaroba visitando o poço alheio.  Uma ordem vinda de cima que se recusa a dialogar com o resto e que precipita assim a crise que faltava.  O organismo é invadido por uma linguagem estranha que acaba por matá-lo por dentro.




sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

3730) O talento e o esforço (6.2.2015)


(ilustração: Saul Steinberg)


Existem obras literárias que dão a impressão de ser a coisa mais fácil do mundo. A gente pensa que o sujeito sentou e digitou aquilo em dez minutos, de tão espontâneo e fluido que fica o poema, o conto, o parágrafo de artigo ou de romance.  

Às vezes é assim, sim, mas nem sempre.  Às vezes só se chegou àquela fluidez final depois de ralar muito.  O texto ideal, num sentido imediato, é aquele que tem muita elaboração oculta sob uma superfície aparentemente simples. A primeira leitura dá um sentido imediato.  A segunda traz outro, a terceira mais um, a quarta... A gente começa a perceber sonoridades, jogo de sinônimos, uma ambiguidade proposital ali, uma referência sutil acolá... 

O texto continua ali, claro. Uma quadra de Pessoa ou de Cabral, um soneto de Drummond ou de Bandeira, um epigrama de Millôr ou de Quintana, mas aos poucos vamos reconstituindo os mil afluentes que resultaram naquela correnteza transparente, límpida.

Ariano Suassuna tinha um conhecido que gostava de fazer trocadilhos, mas eram trocadilhos extremamente forçados, tortuosos.  Por exemplo, ele encontrava Ariano na cidade e dizia: “Pois é, rapaz, você é um cara íntegro, uma pessoa tão inteira, tão una...  E num calor como esse que está fazendo... Suas, una?”  Ele se acabava de rir com esse exemplo e dizia: “Imagine só as noites em claro que ele tinha de passar pra chegar a esse resultado!”

O livro mal escrito é assim: é uma tentativa de idéia para a qual o autor nunca acha o caminho mais adequado e acaba jogando sua idéia inicial no colo do leitor dessa forma, uma forma complicada, desajeitada, algo tão distinto da maneira normal de pensar e de falar que precisa de um certo esforço para se entender.  

Quando o texto literário precisa de um esforço muito grande do entendimento para captar o primeiro sentido, o mais superficial, alguma coisa está errada.  Uma frase que precisa ser lida duas vezes ou é uma frase genial ou é uma frase mal escrita (o que é muito mais frequente).

Não devemos confundir esse desajeitamento com o caso do autor que domina mil técnicas e cuja cabeça funciona de modo intrincado, complexo (Thomas Pynchon, David Foster Wallace, etc.).  Neste último caso, é pegar ou largar. A prosa do cara é toda naquele registro, mas ele mostra que é competente porque para cada dificuldade mal resolvida aparece meia dúzia que nos dão um raro prazer estético que não imaginávamos existir.  

Quanto mais difícil um texto, maior a recompensa estética que deve resultar da leitura.  Se a recompensa de todo o nosso esforço é na faixa de “suas, una?”, amigo, melhor ir fazer outra coisa do seu tempo e do tempo alheio.









quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

3729) Máquinas pensantes (5.2.2015)



A revista eletrônica Edge formula todos os anos uma pergunta sobre temas cruciais ligados à ciência, e a distribui a centenas de cientistas.  A pergunta para 2015 foi: “O que você pensa a respeito de máquinas capazes de pensar?”.  Houve 183 respostas (está tudo no saite, aqui: http://tinyurl.com/m4ww7t8) e comentarei algumas.

Gostei da resposta de Haim Harari (físico, ex-presidente do Weizmann Institute of Science, em Israel).  Ele vai direto ao ponto, dizendo que as pessoas em geral têm medo de máquinas capazes de pensar como um ser humano, mas o que ele próprio teme são os seres humanos que pensam igualzinho a uma máquina.  O hábito de raciocinar acompanhando o raciocínio das máquinas está embotando o que o ser humano tem de mais precioso: “Exercer o bom senso na tomada de decisões, e ser capaz de levantar questões significativas são, até agora, prerrogativas dos humanos. Misturar a intuição, a emoção, a empatia, a experiência e o background cultural; usar tudo isto para formular perguntas relevantes, e tirar conclusões através da combinação de fatos e princípios não-relacionados. Isso é a marca registrada do pensamento humano, algo que as máquinas ainda não compartilham”.

Harari critica o pensamento bitolado, preso a regras, incapaz de dar um salto para fora da “letra da lei” ou dos manuais de procedimentos.  Diz ele: “Todo novo edifício deve dar acesso a pessoas com necessidades especiais; prédios antigos podem ir funcionando sem esse acesso, até serem remodelados.  Mas será que faz sentido vetar a remodelação de um velho banheiro, para que ele ofereça este acesso, apenas porque não pode ser instalado um novo elevador?  Ou exigir a revelação pública de todos os segredos da CIA ou do FBI para que um júri possa condenar um terrorista que evidentemente matou centenas de pessoas?  Ou exigir consentimento dos pais antes de dar uma aspirina a um adolescente, na escola?  E quando os textos escolares são convertidos de milhas para quilômetros, a frase ‘Do alto da montanha dá para se ver num raio de aproximadamente cem milhas’ deve ser traduzida para ‘Do alto da montanha dá para se ver num raio de aproximadamente 160.943 quilômetros?’”

Tenho comentado aqui há anos sobre o impressionante bitolamento que o medo do terror impõe às pessoas nos EUA.  Professores, bibliotecários, policiais, temem não somente uma tragédia mas temem tomar decisões erradas e apegam-se de um modo cego às instruções que receberam, numa obediência cega que é uma forma de passar a responsabilidade “pro andar de cima”.  Se começarmos a pensar assim, não precisamos temer robôs inteligentes.  Os humanos burros nos destruirão.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

3728) O vírus fantasma (4.2.2015)



(ilustração: David Delruelle)

A imprensa tem me assediado, após a morte repentina e inexplicável de André Moiré-Carrera, em busca de informações sobre meu amigo. André era um maluco-beleza, se é que pode-se dizer isto de um nerd, fanático por tecnologia da informação e pela obra do pouco celebrado Raymond Queneau. 

Ficamos amigos por volta de 2000, quando em função de um evento literário em São Paulo passamos quatro dias de farra num hotel da Faria Lima, às custas do contribuinte paulistano. Ele já tinha o seu blog, o Inkosikaas; eu tinha o meu Mundo Fantasmo, e passamos a conviver virtualmente.  Depois daquela semana em São Paulo, vi-o apenas uma ou duas vezes.

E agora, isto.  Ou melhor, istos.  A morte absurda de André – e os acontecimentos inexplicáveis que vêm se sucedendo. Tentarei botar o leitor em dia com a minha visão dos fatos.  

André era basicamente um nerd, um cara que aos sete anos abria o console do game para tentar melhorar a jogabilidade de um “shoot-‘em-all” qualquer. Tudo dele tinha a ver com isso: no hotel vi-o lendo obras de Vilem Flusser e Douglas Hofstadter.  Era um leitor voraz e um redator diabólico. Seus posts eram invariavelmente com menos de 50 linhas, e eu levava dias para digeri-los por inteiro.

Morto André, textos seus começaram a aparecer na seção de comentários no meu blog, no blog de todo mundo.  Quem leu André Moiré-Carrera não esquece jamais; é como ler o Catatau de Leminski. Não há duas prosas como aquela.  E agora ele brota do nada, comentando o que postamos, fazendo as piadas de sempre, os trocadilhos infames. 

Aventou-se a hipótese de alguém da família: negativo. Um amigo, imitador? Negativo.  Era de poucos amigos, e vivia, aos 30 e poucos anos, comprovadamente só.

Minha teoria é que André criou (e largou no ciberespaço) um vírus estilístico capaz de usar sua sintaxe, sua bibliografia; de abordar seus temas preferidos, rastreados diariamente num universo finito de blogs e redes sociais. Porque não são postagens redigidas em vida e escalonadas para publicação numa data futura. São reações tipicamente “andrezianas” a fatos ocorridos após sua morte, como o 7x1, a eleição de Dilma, o massacre do Charlie Hebdo

Lendo esses comentários, um calafrio me incomoda dos pés à cabeça. É uma mente humana, que está recombinando essas frases e produzindo argumentos, e se essa mente está viva ou não é irrelevante.  Os jornalistas perguntam se se trata de plágio, de hoax, e tudo que posso dizer é: André Moiré-Carrera criou o primeiro vírus-fantasma da História, a primeira simbiose entre um vírus informático auto-propagador e o resíduo vivo e sensível de uma mente humana que não tem mais existência física.





segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

3727) O Lote 49 (3.2.2015)



Thomas Pynchon é um desses autores que a gente lê tanta resenha de livro, e comentário, e teorizações onde ele é transcrito e citado como exemplo, que é como se já tivesse lido um livro do cara.  Eu li alguns contos e artigos, começos de vários romances e por inteiro somente The Crying of Lot 49 (“O Leilão do Lote 49”), de 1966.  É um livro enganosamente fino que se destaca numa obra como a de TP, de livros robustos, que vistos a meio metro podem ser confundidos com “A Song of Ice and Fire”. Pynchon é um dos criadores  de um hiperrealismo pop, energizado pela ciência, imprevisível pelo uso da fabulação.  Sua influência na FC está por toda parte: Gibson, Sterling, DiFilippo, K. S. Robinson, Tim Powers – cada um tem algo de Pynchon, de sua maneira de escrever nas entrelinhas da História.

Lot 49 é um livro sobre uma teoria da conspiração que a protagonista vai desvelando pouco a pouco, enquanto executa a tarefa de inventariar os bens de um amigo morto. Ela descobre, para seu horror, que existe um outro sistema postal funcionando dentro da América, um sistema que ela descobre chamar-se W.A.S.T.E. e ser gerido por uma organização invisível chamada Trystero.  É uma imensa rede postal subterrânea, clandestina, não-percebida pelas autoridades, e que também lida com malotes, carteiros, entregadores, selos, carimbos, viagens.  Uma verdadeira “deep web” inacessível, girando a todo vapor seu próprio mecanismo.

Oedipa Maas, mal começa a manusear os papéis de seu ex-namorado Pierce Inverarity, percebe sinais estranhos aqui, ali e em toda parte.  Não lembro se alguma daquela correspondências vindas, digamos, pela ferrovia subterrânea, é citada no livro de TP.  Porque seria fantástico descobrir que há séculos aquelas pessoas nada mais diziam umas às outras, mas para que o maquinismo não caducasse enviavam-se cartas em branco. Para que a hera da rede postal não murchasse.  Há séculos o sistema mantinha-se ocupado e competente à custa de uma atividade humana sem mensagem humana sendo trocada.

Alguns críticos torcem o nariz a Pynchon achando que nos livros dele as coisas acontecem mais parecidamente com o que acontece numa graphic novel do que com o que acontece num romance mainstream. James Wood criou o termo “hysterical realism” para a literatura de Pynchon, D. F. Wallace, Salman Rushdie, Zadie Smith e outros. Um realismo aparente, mas com uma proliferação surreal de efeitos especiais, de distorções e caricaturas, de absurdismo do cotidiano, forças dramatúrgicas imprevisíveis que nessa literatura ocupa a função antes reservada aos complexos psicológicos e às motivações de classe social.