quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

3734) O original também erra (11.2.2015)



(ilustração: Giambatista Della Porta)

Dizer que o original erra parece uma heresia tão grande quanto afirmar que o Papa se equivoca em matéria canônica.  A idéia de um erro no livro original produz no tradutor, no revisor, um vacilo de incerteza cósmica.  Seria como dizer que Deus joga dados.  Mas é fato. Os originais impressos em qualquer país estão sujeitos às idas e vindas do trabalho assalariado em qualquer país.  O que eu já vi de calamidade de editoração em livro estrangeiro não tá no gibi.

Traduzindo um livro de Tim Powers me deparei com a frase “a darting garb” (numa cena de multidão ao ar livre), cujas traduções possíveis não se encaixavam.  Comecei a pedir ajuda.  Chegou uma carta (era nos tempos das cartas, dos aerogramas, do Coupon Réponse International, tudo o mais) de um amigo dizendo que os livros da Ace Books eram notórios pela revisão claudicante, e que aquilo devia ser “a darting grab”.  Abri uma cerveja e escrevi “um bote certeiro” (o autor estava descrevendo a coreografia de um batedor de carteiras).

Traduzi um romance de horror contemporâneo, ambientado no campus de uma universidade nos EUA, e a certa altura o livro era interrompido por umas duas páginas de um texto totalmente diferente falando de antropóides primitivos duelando numa caverna, e depois voltava para o romance como se nada tivesse acontecido.  Uma gralha; um pedaço de arquivo que alguém tinha botado na Área de Transferência e sem querer tacou Ctrl+V noutro arquivo que estava revisando, e depois ninguém revisou de novo.

Já vi num livro que eu estava traduzindo o autor colocar umas 3 ou 4 vezes ao longo de um compridíssimo diálogo: “ele ergueu-se da mesa”, “ele levantou-se para sair”, etc.  Como se tratava de um enorme “infodump” de desfecho da história, um entulho de explicações do enredo, imaginei que o autor tinha recortado com tesoura-e-cola vários trechos (da Era pré-computador), e os montou. Algumas dessas rubricas, que vinham de diferentes esboços, acabaram vindo junto das respectivas falas.  Cortei e deixei apenas o que orientava a ação.

O original pode errar.  Que o digam Joyce, Rosa, Flaubert e outros que sucumbiram à maldição de Lynotípia, a cruel deusa invocada pelos tipógrafos quando querem rogar praga a um autor muito trabalhoso.  Quanto mais eles corrigiam, mais erros novos se infiltravam em seu edifício perfeito, corroendo-o por dentro.

Olha só que besteira eu escrevi.  Posso supor também que ambos aceitavam a contribuição do erro e do acaso. Há testemunhos.  E que às vezes achavam mais legal a palavra errada que veio da oficina.  Um pequeno tributo para apaziguar a Deusa, algo como o golezinho que se verte no chão para aprazer o santo.




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