segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

3733) Amor humor (10.2.2015)



(ilustração: Lisa Congdon)


Oswald de Andrade foi um dos praticantes mais espirituosos do poema curto tipo poema-piada.  

Um dos seus mais conhecidos e mais citados intitula-se “AMOR”, e tem uma palavra apenas: “humor”.  

AMOR

humor

Um jogo-de-palavras até simplório para o homem que disse “Tupi or not Tupi, that is the question” e outros biscoitos finos. Oswald tem outros belos poemas de amor.  Era um sujeito meio vulcânico, tinha qualidades únicas, tinha os defeitos de sua época e os de seu temperamento, mas sua atitude amorosa ao escrever é às vezes exuberante.

Muita gente lê esse poema assim: O amor é humor.  O amor tem que ser divertido.  Amor era para ser uma coisa bonita e leve, uma coisa que passa.  Amor não é para carraspanas, melodramas, aquelas tragédias gregas de paixões e de vinganças.   O amor teria que ser uma coisa art-noveau e Modernista ao mesmo tempo. 

Outros leem assim: para manter um amor é preciso ter muito bom humor.  Senão, você endoidece. O humor surge aí não como a essência do amor, mas como uma espécie de contrapeso ou atenuante.  O modo como Oswald os colocou no poema não implica equação.  Pode ter lido, por exemplo, como uma polarização, como se o título fosse “YIN” e o poema tivesse apenas a palavra “yang”. 

YIN

yang

De fato, o amor é muitas vezes descrito pelos seus bardos como a fusão ideal entre duas pessoas, que se tornam capazes de ver com os olhos um do outro, sabem o que o outro está pensando, etc.  

E o humor, claro, é o contrário: é saber se cortar e se isolar instantaneamente de algo ou de alguém, em função de outra associação de idéias que só é possível fazer “de fora”.  A expressão popular “eu perco um amigo mas não perco uma piada” existe porque devem ser muitos os episódios em que alguém manda um gracejo pesado demais para que a amizade se mantenha.  

O amor aproxima, o humor distancia, então o humor é o contrapeso brechtiano, cortando o barato da paixão, que só enxerga a si mesma. Cuidado com um e cuidado com o outro.

Uma das declarações mais bonitas de Riobaldo no Grande Sertão é um trecho em que ele diz que, pro “doutor” ter uma idéia do quanto ele amava Diadorim, ele diz que nunca mangou dele.  O termo não é este, mas é o sentido.  

Quando você manga, zomba de alguém, quando você acha o outro ridículo, é o máximo do distanciamento, é o humor cruel que não tem volta.  O outro nunca mais poderá ser amado, se o mico que pagar for muito grande.  (Ou nem é assim, e sou eu que estou dramatizando a coisa; até isso sara.)  

Não mangar da pessoa amada é um compromisso de honra dos que amam com pureza.  É um pouco como não mangar de Deus, não fazer humor com Deus (pelo menos com o Deus que a gente crê).





domingo, 8 de fevereiro de 2015

3732) O escritor e a mãe (8.2.2015)



(Cortázar e sua mãe)


“Momma boy”, filhinho-da-mamãe, há expressões igualmente desdenhosas em qualquer idioma.  Foi feita para aplastrar aquele menino assustado ou impertinente que não larga a saia materna, e o máximo de independência que ganha ao crescer é uma certa autonomia para chantageá-la e extrair o que quer.  

Porém são igualmente numerosos os casos de meninos criados na órbita de uma matrona e que se tornaram, se não grandes homens, pelo menos grandes artistas (o que, pelo menos pra mim, parece melhor negócio.)

Penso em Julio Cortázar, cujo pai sumiu por completo quando ele tinha cinco anos.  Quando o filho estava famoso, o velho escreveu-lhe pedindo que por gentileza se assinasse “Julio Florencio Cortázar”, para que não fossem confundidos um com o outro. Ele respondeu: “Querido senhor, nada sei do senhor, espero que esteja muito feliz, mas eu vou continuar assinando Julio Cortázar”. 

John Lennon reagiu com mais acidez ainda, quanto o pai o procurou depois da fama; mas Lennon não teve por muito tempo “a virtude de dormir entre dois seios”, como versejou Lourival Batista.  A mãe morreu atropelada quando ele era ainda garoto, mas a preferência afetiva por ela sempre foi muito clara em tudo que ele escreveu.

Penso em Cornell Woolrich, o rei do “roman noir” levado ao cinema (A Sereia do Mississipi, A Noiva Estava de Preto, Janela Indiscreta, etc.). Pais separados; ele ao que parece era gay, teve durante 3 meses um casamento frustrado e depois viveu num hotel com a mãe até a morte dela, quando ele tinha 54 anos. Bebeu até apagar.

Raymond Chandler, que nunca conheceu o pai (alcoólatra, como ele viria a ser), e cuidou da mãe até os 35 anos, quando ela morreu. Meses depois ele casou-se com Cissy Pascal, 18 anos mais velha, e cuidou dela até a morte. 

Não muito diferente foi a trajetória de Jorge Luís Borges, que após a morte do pai cuidou da mãe, D. Leonor (cuidou é eufemismo para “foi cuidado por”).  Teve também um casamento mal sucedido e voltou para morar com a mãe até a morte dela aos 99 anos, quando ele próprio tinha 75. 

Todos parecem ter feito tudo isso em parte pelo bem delas e em parte para si mesmos.  Pode ser imaturo, mas essa convivência gerou talvez um canal de entendimento que foi bom para a literatura de cada um.  

Mas talvez nenhum deles tenha tido o espírito arlequinesco e lúdico que Sartre afirma (As Palavras) ter experimentado na infância ao lado da mãe, que enviuvou muito jovem, o que gerou entre ela e o filho uma convivência de cúmplices numa família dominada por um avô tonitruante; ela e o menino partilhavam passeios, filmes, pequenas aventuras de gente sem culpa que se diverte com bem pouco.







sábado, 7 de fevereiro de 2015

3731) A loucura e a lucidez (7.2.2015)



("The Tell-Tale Heart", por Virgil Finlay)

Não sei quem foi que disse que o remédio de um doido é outro na porta.  Talvez seja preciso um maluco para entender o que se passa na cabeça de outro maluco.  Ele tem que ser capaz de pensar como o maluco e ver que até certo ponto toda maluquice é justificada.  E tem que ser capaz de dar um passo atrás e ver que é só doidice mesmo, ou seja, aquilo não é a narrativa-mãe, aquilo é o Delírio do Depoente.  Por mais comovente que esse delírio seja.  Assim como um bêbado é alguém que ‘NÃO ESTÁ BÊBADO!!!”, um bom doido relativiza qualquer loucura.

Num ensaio sobre a imaginação, Montaigne diz (não li o ensaio, vi a citação por aí): “Gallus Vibius preparou sua mente de tal forma para compreender a essência e a dinâmica da loucura que deixou seus critérios serem distorcidos, a ponto de não poder acomodá-los de novo em seus devidos lugares; e, caso quisesse, poderia se vangloriar de ter-se tornado um abestado através da sabedoria.” 

O psicanalista Robert Lindner tem um ensaio famoso, “O divã espacial” (“The Jet-Propelled Couch”) onde ele descreve a longa terapia de um homem que acreditava piamente num universo paralelo “space opera” onde alternava seus dias com os dias passados na Terra.  (Há uma tese de que esse paciente teria sido o escritor Cordwainer Smith.)  O analista dava-lhe conselhos de como administrar seu império galáctico, mas acabou se envolvendo e entrando na viagem do outro. Recompôs-se depois (não é spoiler), mas admitiu que houve um duelo psicológico intenso, e que por um momento o Delírio do Depoente prevaleceu.

Vejo, por exemplo, Rubião tentando glosar os motes de Quincas Borba, tentando a ominosa tarefa de entender um doido por dentro.  Deve acontecer muito com empresários no campo das artes, que endoidecem por artistas imbancáveis, que se deixam levar mais pelos seus instintos do que pela razão, e que antes dos interesses pessoais pensam acima de tudo nos interesses do coração. Muitos ficam ricos. Provavelmente porque sabem como pensam os seus fãs na derradeira fila a contar do palco. São mentes iguais. 

O protagonista tem um amigo que é doido: eis uma cadeia dramatúrgica presente numa enorme variedade de textos.  Quem entende o doido, sensato lhe parece. O que mais chamamos de loucura é o contrário dela, chamamos de loucura a desorganização fatal do pensamento. Mas não, a loucura também é organização, organização maligna, sugadora, feito raiz de algaroba visitando o poço alheio.  Uma ordem vinda de cima que se recusa a dialogar com o resto e que precipita assim a crise que faltava.  O organismo é invadido por uma linguagem estranha que acaba por matá-lo por dentro.




sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

3730) O talento e o esforço (6.2.2015)


(ilustração: Saul Steinberg)


Existem obras literárias que dão a impressão de ser a coisa mais fácil do mundo. A gente pensa que o sujeito sentou e digitou aquilo em dez minutos, de tão espontâneo e fluido que fica o poema, o conto, o parágrafo de artigo ou de romance.  

Às vezes é assim, sim, mas nem sempre.  Às vezes só se chegou àquela fluidez final depois de ralar muito.  O texto ideal, num sentido imediato, é aquele que tem muita elaboração oculta sob uma superfície aparentemente simples. A primeira leitura dá um sentido imediato.  A segunda traz outro, a terceira mais um, a quarta... A gente começa a perceber sonoridades, jogo de sinônimos, uma ambiguidade proposital ali, uma referência sutil acolá... 

O texto continua ali, claro. Uma quadra de Pessoa ou de Cabral, um soneto de Drummond ou de Bandeira, um epigrama de Millôr ou de Quintana, mas aos poucos vamos reconstituindo os mil afluentes que resultaram naquela correnteza transparente, límpida.

Ariano Suassuna tinha um conhecido que gostava de fazer trocadilhos, mas eram trocadilhos extremamente forçados, tortuosos.  Por exemplo, ele encontrava Ariano na cidade e dizia: “Pois é, rapaz, você é um cara íntegro, uma pessoa tão inteira, tão una...  E num calor como esse que está fazendo... Suas, una?”  Ele se acabava de rir com esse exemplo e dizia: “Imagine só as noites em claro que ele tinha de passar pra chegar a esse resultado!”

O livro mal escrito é assim: é uma tentativa de idéia para a qual o autor nunca acha o caminho mais adequado e acaba jogando sua idéia inicial no colo do leitor dessa forma, uma forma complicada, desajeitada, algo tão distinto da maneira normal de pensar e de falar que precisa de um certo esforço para se entender.  

Quando o texto literário precisa de um esforço muito grande do entendimento para captar o primeiro sentido, o mais superficial, alguma coisa está errada.  Uma frase que precisa ser lida duas vezes ou é uma frase genial ou é uma frase mal escrita (o que é muito mais frequente).

Não devemos confundir esse desajeitamento com o caso do autor que domina mil técnicas e cuja cabeça funciona de modo intrincado, complexo (Thomas Pynchon, David Foster Wallace, etc.).  Neste último caso, é pegar ou largar. A prosa do cara é toda naquele registro, mas ele mostra que é competente porque para cada dificuldade mal resolvida aparece meia dúzia que nos dão um raro prazer estético que não imaginávamos existir.  

Quanto mais difícil um texto, maior a recompensa estética que deve resultar da leitura.  Se a recompensa de todo o nosso esforço é na faixa de “suas, una?”, amigo, melhor ir fazer outra coisa do seu tempo e do tempo alheio.









quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

3729) Máquinas pensantes (5.2.2015)



A revista eletrônica Edge formula todos os anos uma pergunta sobre temas cruciais ligados à ciência, e a distribui a centenas de cientistas.  A pergunta para 2015 foi: “O que você pensa a respeito de máquinas capazes de pensar?”.  Houve 183 respostas (está tudo no saite, aqui: http://tinyurl.com/m4ww7t8) e comentarei algumas.

Gostei da resposta de Haim Harari (físico, ex-presidente do Weizmann Institute of Science, em Israel).  Ele vai direto ao ponto, dizendo que as pessoas em geral têm medo de máquinas capazes de pensar como um ser humano, mas o que ele próprio teme são os seres humanos que pensam igualzinho a uma máquina.  O hábito de raciocinar acompanhando o raciocínio das máquinas está embotando o que o ser humano tem de mais precioso: “Exercer o bom senso na tomada de decisões, e ser capaz de levantar questões significativas são, até agora, prerrogativas dos humanos. Misturar a intuição, a emoção, a empatia, a experiência e o background cultural; usar tudo isto para formular perguntas relevantes, e tirar conclusões através da combinação de fatos e princípios não-relacionados. Isso é a marca registrada do pensamento humano, algo que as máquinas ainda não compartilham”.

Harari critica o pensamento bitolado, preso a regras, incapaz de dar um salto para fora da “letra da lei” ou dos manuais de procedimentos.  Diz ele: “Todo novo edifício deve dar acesso a pessoas com necessidades especiais; prédios antigos podem ir funcionando sem esse acesso, até serem remodelados.  Mas será que faz sentido vetar a remodelação de um velho banheiro, para que ele ofereça este acesso, apenas porque não pode ser instalado um novo elevador?  Ou exigir a revelação pública de todos os segredos da CIA ou do FBI para que um júri possa condenar um terrorista que evidentemente matou centenas de pessoas?  Ou exigir consentimento dos pais antes de dar uma aspirina a um adolescente, na escola?  E quando os textos escolares são convertidos de milhas para quilômetros, a frase ‘Do alto da montanha dá para se ver num raio de aproximadamente cem milhas’ deve ser traduzida para ‘Do alto da montanha dá para se ver num raio de aproximadamente 160.943 quilômetros?’”

Tenho comentado aqui há anos sobre o impressionante bitolamento que o medo do terror impõe às pessoas nos EUA.  Professores, bibliotecários, policiais, temem não somente uma tragédia mas temem tomar decisões erradas e apegam-se de um modo cego às instruções que receberam, numa obediência cega que é uma forma de passar a responsabilidade “pro andar de cima”.  Se começarmos a pensar assim, não precisamos temer robôs inteligentes.  Os humanos burros nos destruirão.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

3728) O vírus fantasma (4.2.2015)



(ilustração: David Delruelle)

A imprensa tem me assediado, após a morte repentina e inexplicável de André Moiré-Carrera, em busca de informações sobre meu amigo. André era um maluco-beleza, se é que pode-se dizer isto de um nerd, fanático por tecnologia da informação e pela obra do pouco celebrado Raymond Queneau. 

Ficamos amigos por volta de 2000, quando em função de um evento literário em São Paulo passamos quatro dias de farra num hotel da Faria Lima, às custas do contribuinte paulistano. Ele já tinha o seu blog, o Inkosikaas; eu tinha o meu Mundo Fantasmo, e passamos a conviver virtualmente.  Depois daquela semana em São Paulo, vi-o apenas uma ou duas vezes.

E agora, isto.  Ou melhor, istos.  A morte absurda de André – e os acontecimentos inexplicáveis que vêm se sucedendo. Tentarei botar o leitor em dia com a minha visão dos fatos.  

André era basicamente um nerd, um cara que aos sete anos abria o console do game para tentar melhorar a jogabilidade de um “shoot-‘em-all” qualquer. Tudo dele tinha a ver com isso: no hotel vi-o lendo obras de Vilem Flusser e Douglas Hofstadter.  Era um leitor voraz e um redator diabólico. Seus posts eram invariavelmente com menos de 50 linhas, e eu levava dias para digeri-los por inteiro.

Morto André, textos seus começaram a aparecer na seção de comentários no meu blog, no blog de todo mundo.  Quem leu André Moiré-Carrera não esquece jamais; é como ler o Catatau de Leminski. Não há duas prosas como aquela.  E agora ele brota do nada, comentando o que postamos, fazendo as piadas de sempre, os trocadilhos infames. 

Aventou-se a hipótese de alguém da família: negativo. Um amigo, imitador? Negativo.  Era de poucos amigos, e vivia, aos 30 e poucos anos, comprovadamente só.

Minha teoria é que André criou (e largou no ciberespaço) um vírus estilístico capaz de usar sua sintaxe, sua bibliografia; de abordar seus temas preferidos, rastreados diariamente num universo finito de blogs e redes sociais. Porque não são postagens redigidas em vida e escalonadas para publicação numa data futura. São reações tipicamente “andrezianas” a fatos ocorridos após sua morte, como o 7x1, a eleição de Dilma, o massacre do Charlie Hebdo

Lendo esses comentários, um calafrio me incomoda dos pés à cabeça. É uma mente humana, que está recombinando essas frases e produzindo argumentos, e se essa mente está viva ou não é irrelevante.  Os jornalistas perguntam se se trata de plágio, de hoax, e tudo que posso dizer é: André Moiré-Carrera criou o primeiro vírus-fantasma da História, a primeira simbiose entre um vírus informático auto-propagador e o resíduo vivo e sensível de uma mente humana que não tem mais existência física.





segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

3727) O Lote 49 (3.2.2015)



Thomas Pynchon é um desses autores que a gente lê tanta resenha de livro, e comentário, e teorizações onde ele é transcrito e citado como exemplo, que é como se já tivesse lido um livro do cara.  Eu li alguns contos e artigos, começos de vários romances e por inteiro somente The Crying of Lot 49 (“O Leilão do Lote 49”), de 1966.  É um livro enganosamente fino que se destaca numa obra como a de TP, de livros robustos, que vistos a meio metro podem ser confundidos com “A Song of Ice and Fire”. Pynchon é um dos criadores  de um hiperrealismo pop, energizado pela ciência, imprevisível pelo uso da fabulação.  Sua influência na FC está por toda parte: Gibson, Sterling, DiFilippo, K. S. Robinson, Tim Powers – cada um tem algo de Pynchon, de sua maneira de escrever nas entrelinhas da História.

Lot 49 é um livro sobre uma teoria da conspiração que a protagonista vai desvelando pouco a pouco, enquanto executa a tarefa de inventariar os bens de um amigo morto. Ela descobre, para seu horror, que existe um outro sistema postal funcionando dentro da América, um sistema que ela descobre chamar-se W.A.S.T.E. e ser gerido por uma organização invisível chamada Trystero.  É uma imensa rede postal subterrânea, clandestina, não-percebida pelas autoridades, e que também lida com malotes, carteiros, entregadores, selos, carimbos, viagens.  Uma verdadeira “deep web” inacessível, girando a todo vapor seu próprio mecanismo.

Oedipa Maas, mal começa a manusear os papéis de seu ex-namorado Pierce Inverarity, percebe sinais estranhos aqui, ali e em toda parte.  Não lembro se alguma daquela correspondências vindas, digamos, pela ferrovia subterrânea, é citada no livro de TP.  Porque seria fantástico descobrir que há séculos aquelas pessoas nada mais diziam umas às outras, mas para que o maquinismo não caducasse enviavam-se cartas em branco. Para que a hera da rede postal não murchasse.  Há séculos o sistema mantinha-se ocupado e competente à custa de uma atividade humana sem mensagem humana sendo trocada.

Alguns críticos torcem o nariz a Pynchon achando que nos livros dele as coisas acontecem mais parecidamente com o que acontece numa graphic novel do que com o que acontece num romance mainstream. James Wood criou o termo “hysterical realism” para a literatura de Pynchon, D. F. Wallace, Salman Rushdie, Zadie Smith e outros. Um realismo aparente, mas com uma proliferação surreal de efeitos especiais, de distorções e caricaturas, de absurdismo do cotidiano, forças dramatúrgicas imprevisíveis que nessa literatura ocupa a função antes reservada aos complexos psicológicos e às motivações de classe social.


domingo, 1 de fevereiro de 2015

3726) Confluências (1.2.2015)



Alguns anos atrás eu comprei na Berinjela um livro de Jean Gattégno sobre Lewis Carroll.  Não é propriamente uma biografia, no sentido cronológico, mas são trinta e tantos capítulos sobre temas específicos como “Fotografia”, “Política”, “Pseudônimos”, “Sexualidade”, “Teatro” e assim por diante.  No final, um retrato bem variado do criador de “Alice”.  Eu estava de madrugada folheando o livro, quando cheguei à cronologia da vida de Carroll.  Dizia a certa altura: “1898: no princípio de janeiro, um leve resfriado evolui para bronquite; Charles Lutwidge Dodgson morreu em paz em 14 de janeiro.”  Nesse momento ergui os olhos para o calendário sobre a mesa: estávamos, já, nas primeiras horas de 14 de janeiro, e o ano era 1998.  Talvez eu tenha lido essas palavras exatamente cem anos depois que o reverendo bateu o trinta-e-um.

Qual a chance de eu pegar aquele livro (não lembro se foi no mesmo dia em que o comprei, ou algum tempo depois) justamente no dia da morte do cara?  Eu nunca soube essa data, não podia ser memória inconsciente.  E aliás não é tão raro.  Outra vez, de madrugada, eu estava lendo as linhas iniciais de The Eye in the Pyramid, um thriller psicodélico-surreal de Robert Shea e Robert Anton Wilson. O narrador diz:

“Por exemplo, não estou muito seguro nem sequer a respeito de quem sou eu, e meu constrangimento nesse aspecto me leva a imaginar se alguém será capaz de acreditar no que digo.  Pior ainda: neste momento eu estou agudamente consciente de um esquilo, no Central Park, perto da Rua 68, em Nova York, e esse esquilo está pulando de um galho para outro, e acho que isso acontece na noite de 23 de abril (ou madrugada de 24?).”

Preciso dizer?  Era exatamente isso: eu estava começando a ler aquele livro, no qual pegava pela primeira vez, nas primeiras horas da madrugada de um 24 de abril, o ano não importa.  Nossa geração, felizmente, criou um jargão para isso: falha na Matrix.  E nomear uma coisa misteriosa com um jargão não reduz seu mistério, mas facilita a gente pegar aquela coisa e botar no fim de uma lista. 

Para ser científico, devo informar que esses dois casos (não lembro se houve algum outro) me animaram a prestar mais atenção, e dessa época em diante foram numerosíssimas as datas que pipocaram num trecho de ficção e foram rapidamente desmentidas pelo calendário.  Mas...  O que me leva a pegar um livro ao acaso, numa estante, abrir numa página qualquer, e daí a pouco ver impressa, no texto, o dia e o mês em que estou eu agora, de livro em punho?  Como uma daquelas operações “macro” do editor de textos, onde premindo uma combinação de teclas fica registrada na tela a data e a hora atual.




sábado, 31 de janeiro de 2015

3725) Os escritores pop (31.1.2015)



As flips, flibos, flipoços, fliportos e tantas outras festas literárias e bienais têm alvoroçado muita gente.  A imprensa achou a expressão “fenômeno midiático”. No movimento browniano em que se entrechocam as opiniões e os gostos, há duas aglomerações opostas. 

Há os que se entusiasmam com essa interatividade, porque seu temperamento os conduz para isto e o processo todo os favorece.  E há os que têm repulsa a um processo assim, em parte porque não foram talhados para ele, e em parte porque acham que ele favorece quem escreve mal.

O escritor deve somente escrever, arder o cérebro pela madrugada, como uma vela no altar da Musa? Ou pode também se entregar à política literária, à vida social, organizar-se em “escolas” e “movimentos”, inventar um “ismo”, colaborar na imprensa, meter-se em polêmicas, meter-se na política, cortejar a fama? 

É a antiga oposição entre Gustave Flaubert e Émile Zola, dois escritores de peso, amigos, que podem até ilustrar os polos opostos dessa discussão.  Flaubert era o sacerdote, Zola era o publicitário. Machado... e Alencar. Graciliano... e Jorge Amado.

Henry James tem um conto fantástico, “The Private Life” (1892) que conta (entre outras coisas bizarras, machadianas) sobre um escritor famoso, encontrado pelo narrador numa colônia de férias na montanha, e que não faz outra coisa senão conversar e entreter os admiradores, fãs, tietes em geral.  O narrador sobe até a suíte onde esse autor está hospedado e descobre que ele tem um duplo, um outro corpo igual ao original, que fica se esfalfando na escrivaninha, produzindo os textos que fazem a fama do primeiro.

Eu entendo perfeitamente que alguém que não goste de falar em público ou de viajar (eu gosto).  Por outro lado, não sei se eu teria disposição para autografar 500 livros ao longo de umas três horas, como já vi pessoas fazendo. Cada um pode ter recursos ou disponibilidades diferentes  para se aproximar do público, mas isso não importa. Ser autor é escrever e publicar.  E nenhuma propaganda de livro é melhor do que a de boca em boca.

O personagem de Henry James é uma variante do médico-e-o-monstro.  É o escritor-e-marqueteiro, que surge espontaneamente em certas culturas. Quem não sabe ser marqueteiro, fique escrevendo no quarto do hotel.  O quarto vai ficar cheio de folhas manuscritas, cheio até o teto. Algumas folhas acabarão sendo empurradas para fora, por baixo da porta.  Um vento as erguerá no corredor e as conduzirá flutuando até a  rua, até uma tipografia, onde alguém, quase sem perceber, fará daquilo um livro.  Se for um livro bom, é nesse momento que o jogo começa. Se o livro é ruim, é aí que o jogo acaba.




sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

3724) O fair-play do mistério (30.1.2015)



(O "cuidado, leitor" em The Roman Hat Mystery, 1930, virou depois "Desafio ao leitor")

Alguns amigos estavam conversando sobre o filme Os Suspeitos, de Bryan Singer, aquele sobre uma quadrilha de delinquentes envolvidos com as maquinações de um gênio-do-mal, Keyser Soze, uma espécie de Fu Manchu ou de Vlad Dracula.  Não vou largar spoilers sobre o filme.  Para quem não o viu, basta dizer que é um filme que conta uma história longa e complexa, cheia de peripécias, tendo como pontos-de-vista cinco bandidos envolvidos num golpe, e o que acontece a cada um deles.  Nos últimos minutos há uma reviravolta espantosa na narrativa, quando o mistério final se revela.

A narrativa policial de mistério gira em torno disso: o mistério, a coisa estranha e inexplicável, que cabe à história solucionar.  A história de mistério não precisa ser policial: pode ser mistério com FC, mistério com horror.  Basta que haja um mistério, que o leitor ou espectador seja provocado a propor uma explicação.  O jogo dedutivo entre Sherlocks e Moriartys é o mesmo jogo do leitor, querendo adivinhar o pensamento e as intenções do autor.  Coube a Ellery Queen disciplinar esse xadrez de pistas e de suspeitas, quando criou nos anos 1930 o “Desafio ao Leitor” que interrompia seus romances. “Vocês já têm nas mãos todas as pistas que Ellery Queen usou para descobrir o criminoso”. 

O termo clássico para isso é “fair play”.  Se é um jogo entre intelectos habilidosos e atentos, é preciso jogar limpo com o leitor. Existem indícios? Então, que o leitor tenha acesso a eles, e só precisa interpretar corretamente cada fragmento de informação.  O interessante é a diferença de conceito de “fair play” no romance literário dos anos 1930 ou no taquicardíaco cinema de 2015.  No livro, a gente pode se deter, voltar algumas páginas, consultar um diálogo, checar uma data, ou seja: as pistas continuam ali onde o romancista as colocou, e o leitor volta lá quantas vezes quiser. É possível uma leitura não-linear.

Já o cinema virou um tobogã. Os Suspeitos tem um excelente roteiro, que faz um bordado complexo de peripécias e de agentes duplos, onde nunca se tem certeza de nada.  É num certo sentido um filme sobre o talento do repentista que não é poeta, mas é um contador de histórias.  Só que no cinema a projeção do filme é linear, sessão contínua até o fim. Filme de sala. As pistas passam, mas passam muito rápidas, piscou perdeu.  (Muitos diretores se comprazem em mostrar de novo tudo, no final: “olha aqui, eu mostrei bem claro...” ) Só em casa, com DVD e controles, ele vai ter com o filme uma experiência tão livre quanto a que um leitor tem com um livro; uma dimensão a mais, para poder saltar pra qualquer ponto da história.