sábado, 6 de setembro de 2014

3597) A palavra bola (6.9.2014)



Quando escuto futebol pelo rádio, fico imaginando um estrangeiro ouvindo uma transmissão de futebol aqui no Brasil. Me refiro a um estrangeiro que sabe português, que estudou, que desembarcou aqui botando português pelo ladrão e doido para testar sua pronúncia e seu entendimento. 

O futebol irradiado é uma narrativa que depende de algo externo a si mesma. O narrador não pode narrar algo que não está acontecendo ou não chegou a acontecer, embora o folclore radialístico esteja cheio de episódios mirabolantes vividos pelos grandes locutores e comentaristas dos tempos heróicos.

Fiquei pensando em quantos contextos a palavra “bola” pode aparecer na transmissão de um jogo. E não incluo expressões de fora do futebol, como “dar bola”, “bolar um plano”, etc.  A bola é o substantivo bola, que deve ter um termo equivalente quase inevitável em muitas línguas, ou pelo menos nas que se parecem com a nossa, mas bola também significa passe, jogada. “Olha que bola que Fulano lançou... deixou Sicrano na cara do gol”: a palavra se refere ao lançamento em si.  Bola deixa de ser representada por um ponto, passa a ser uma linha, o trajeto percorrido desde o pé do lançador até o pé do artilheiro. E pode ser também a conclusão da jogada: “como é que você me perde uma bola daquela, rapaz?”. O mesmo sentido está na expressão “a bola do jogo”, uma jogada, geralmente perto do fim, cujo desfecho fará pender a vitória para um lado ou para o outro. 

A palavra também indica a posse, a iniciativa da jogada: “O juiz dá arremesso lateral, Flamengo bola.”  Quando dizemos que Fulano está “batendo a maior bola” quer dizer que está jogando bem, está numa grande fase.  A expressão “Fulano não tem bola pra isso” tem equivalentes em outras profissões, mas no futebol todo mundo geralmente sabe quem é realmente bom em cada departamento. Quem tem bola (quem tem vitórias, títulos, números para apresentar) tem sua voz ouvida. O mundo futeboleiro sabe preservar essa meritocracia do talento puro, onde quem é bom é bom mesmo.

Algumas expressões tiram um fino uma na outra. Um jornal pode dizer, por exemplo: “O juiz do jogo passado comeu uma bola para derrotar o Santos, porque Pelé está comendo a bola e era preciso parar o Santos de qualquer jeito.”  A propina e o desempenho são sugeridas com as mesmas palavras, e talvez o único diferencial seja esse tratamento de “uma bola”, uma coisa qualquer, largada, que a desvaloriza, enquanto que quando dizemos “a bola”, é ela mesma primeira e única.  O nosso hipotético estrangeiro teria que captar todas estas nuances da palavra, apenas vendo seu uso.


3596) Neil Gaiman e a escrita (5.9.2014)





Me perguntaram numa entrevista dias atrás se eu achava Neil Gaiman o melhor escritor da fantasia urbana (ou do “macabro insólito”, não lembro bem que rótulo foi usado).  

Falei que ele era excelente – mas não existe “o melhor”, isso é um conceito esportivo, hierárquico, aritmético, que tem tudo a ver com o esporte mas nada tem com a arte, pois esta se baseia em impressões pessoais e coletivas que mudam o tempo inteiro, e se assemelha mais ao mercado de ações, onde o valor é expresso em quantidades numéricas (dinheiro) mas é medido em fantasias subjetivas grupais (avaliações do mercado).  

Quando terminei de explicar, a repórter estava olhando para o microfone como se ele tivesse acabado de brotar ali na mão dela, e nunca me fez a segunda pergunta.

Resposta: sim, Neil Gaiman é um bom autor (seu eventual parceiro Gene Wolfe é melhor ainda) mas a razão de citá-lo é que eu o sigo no Twitter (@neilhimself), então estou mais exposto a irrelevâncias como ficar sabendo da agenda de noites de autógrafos dele por países inacessíveis, mas também a bate-papos ocasionais. 

Não só ele, sigo algumas dezenas de autores, mas ele é um dos que mais postam, juntamente com Jonathan Carroll e William Gibson. (Mas em surtos. Às vezes somem por semanas a fio.)

Vantagens da cultura digital, substituindo os hollywoodianos “escritórios de divulgação”, que ficavam liberando diariamente factóides sobre os astros seus patrões. Hoje o patrão precisa matar hora numa conexão atrasada e fica trocando idéias com anônimos que lhe perguntam sobre seus livros.  

Perguntado, Gaiman diz que seu filme favorito seria um desses: “If, The Manuscript of Saragossa, e All That Jazz”.  Nunca vi O Manuscrito de Saragoça, adaptação de Wojcieh Jersy Has para o polêmico, misterioso, multiforme e necronômico livro de Jan Potocki (se alguém souber um link pro filme, favor informar.)

Os outros títulos citados por Gaiman eu já vi. 

If, filme inglês de Lindsay Anderson, é sobre a revolta dos estudantes de uma daquelas terríveis escolas-internatos para adolescentes britânicos, um capítulo à parte na história do sadomasoquismo ocidental.  Vi esse filme depois de ter visto Zéro de Conduite de Jean Vigo, um filme parecidíssimo e diferente. 

All that Jazz é aquele filme sobre o diretor de um musical (Roy Scheider) que está pra morrer do coração mas mete o pé na jaca e pipoca o motor e dirige um espetáculo complicado em todos os sentidos. 

O que têm esses dois filmes a ver com a obra de Gaiman, de Sandman a O Livro do Cemitério? Aparentemente nada, e possivelmente alguma coisa, que não está óbvia nos livros mas que pode ser mais bem iluminada em retrospecto.




quinta-feira, 4 de setembro de 2014

3595) Hoaxes literários (4.9.2014)



Um “hoax” (ou “uma hoax”, nunca se sabe, com esses nomes neutros do inglês) é uma farsa, uma falsificação montada de propósito para parecer verdadeira. Na literatura, geralmente consiste na atribuição de um texto a alguém que não o escreveu. Pode ser um personagem famoso, como no caso dos diários falsos de Hitler comprados e publicados pela revista alemã “Stern” nos anos 1980. E pode ser uma pessoa desconhecida (ou supostamente existente) cujos escritos teriam suficiente interesse literário ou humano para justificar a publicação, como no caso do fictício viciado em drogas J. T. Leroy (ver aqui: http://tinyurl.com/qdugcw9).  Esta página do saite Abebooks lista (e oferece à venda por preços módicos) hoaxes literários de todo tipo, inclusive alguns clássicos como “As Canções de Bilitis”, de Pierre Louys, atribuídas a uma poetisa grega (aqui: http://tinyurl.com/pu5ty5b).  

A literatura, contudo, sempre recorreu ao hoax, mesmo que de modo mais aberto, mais franco. A literatura do século 19 está cheia de obras cuja autoria é atribuída, pelo verdadeiro autor, a um personagem. Em geral são “manuscritos” que o autor do livro diz ter herdado, ou descoberto, ou recebido anonimamente pelo correio. É um recurso tão habitual que Umberto Eco, que o utiliza em “O Nome da Rosa”, intitula o capítulo de abertura do livro assim: “Um manuscrito, naturalmente”. Qualquer leitor já sabe.

Os heterônimos de Fernando Pessoa poderiam ter funcionado como “hoaxes”, nas mãos de alguém mais pragmático. Borges e Bioy Casares poderiam se quisessem fingir que H. Bustos Domecq era uma pessoa real, e teriam uma boa chance de serem acreditados. Há autores que ainda dizem: “Encontrei um manuscrito misterioso de autor desconhecido contando a seguinte e extraordinária história”. Outros já dizem assim: “Conheço um autor chamado Fulano, que vive assim e assado, e eis as coisas extraordinárias que ele escreve.”

O autor inventado faz parte da literatura. Não basta inventar os personagens, é preciso inventar também a cabeça maluca que os inventou. A criação fica terceirizada. Não, não sou eu que penso nessas fantasias doentias e mórbidas: quem gosta disso é meu personagem, o autor deste manuscrito. Claro que eu não tenho nada a ver com isto, estou apenas passando adiante o texto, seguindo as instruções que recebi. Claro que não tenho a menor intenção de dizer que este livro foi escrito há 200 anos por uma poesia do País de Gales. Não, foi escrito por mim. A poetisa do País de Gales, que escreveu os versos que o livro contém, é que foi inventada por mim. É tão fácil inventar um “hoax”. Por que não fazer dele uma parte assumida da invenção literária?


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

3594) Film noir (3.9.2014)


Mulligan é um motorista de ônibus, perdidamente apaixonado por sua amante, Norma, que faz dele gato e sapato e o endoidece a ponto de crime.  Mulligan foge da cidade e se refugia na casa de seu tio-avô em Minesotta, num pé de montanha coberto de neve onde só se fala em indústria madeireira, televisão e folclore. Vai trabalhar no posto de gasolina do casal Stanley e Wilza Carvalhal, um casal anglo-português que há muitos anos se estabelecera ali. Mulligan vira testemunha das brigas constantes do casal. Começa a namorar com Sula, uma portorriquenha que foi o mais próximo que ele encontrou de um ser humano por ali. No dia em que o velho Stanley tem um enfarte no meio de um caso mais áspero de discutir-a-relação, a mulher se apavora, pega o carro e sai sem rumo. Mulligan abre a registradora, embolsa tudo, o equivalente a três meses de salário, e foge tranquilo, visto que a morte do velho foi natural.

Bares de Saint Louis, numa certa época, depois de uma certa hora da noite... Bares são bons lugares para que aconteçam coincidências. “Não é possível, você! o que você está fazendo aqui?” – achamos isso difícil quando na verdade é quase obrigatório. Até as pedras se encontram. Quem frequenta bar sabe onde encontrar quem bar frequenta. Mulligan, oito anos mais velho e algumas classes sociais mais acima, encontra com Wilza. Que aliás era de origem uma loura-platinada brasileira, que o velho Stanley conhecera num cassino vegetariano no Estoril. Ele está numa convenção, ela veio entrevistar um possível cliente. Os dois decidem tomar um uísque para lembrar os velhos tempos e comomorar os novos, visto que ambos se sentem agradavelmente surpresos com o tom geral de juventude alegre e sadia, e com problema de classe social resolvido, que fantasiam ver um no outro.

E o inevitável acontece. Por aquela mulher bronzeada e de cabelos de agave Mulligan larga Sula e as três crianças, rouba um banco, indispõe-se com a ramificação mafiosa a que viera a pertencer, vê todas as suas posses e as suas contas bancárias colocadas automaticamente sob bloqueio eletrônico, vê-se acossado por insistentes celulares que tocam em todos os espaços disponíveis, rouba um carro, explode um hidrante, abalroa carroças do leite e táxis lerdos. Uma verdadeira caçada humana se desencadeia, com ele ao volante e Wilza cobrindo-o de socos, dizendo que ele é um estúpido e acaba de botar tudo a perder. Ele não sabe mais contra quem está combatendo, e se tivesse três braços poderia pilotar o carro, mantê-la sob controle, fuzilar com a submetralhadora os inimigos à direita e à esquerda, para que os carros convergissem todos numa só explosão.


terça-feira, 2 de setembro de 2014

3593) "Grande Hotel Budapeste" (2.9.2014)



Wes Anderson usou as locações reais da cidade de Gorlitz (Alemanha) para realizar seu O Grande Hotel Budapeste (2014), em cartaz por aí. Mesmo assim, nas horas em que foi preciso, por exemplo, mostrar o abismo dos Alpes, o que entra na imagem é um painel pintado, tão antirrealista que parece uma página de livro infantil. Felizmente, este filme não pretende “passar uma sensação de realidade”.  Em termos de enredo e personagens achei-o menos denso e palpável do que Hugo Cabret de Scorsese (ambientado na mesma época) e mais coerente e focado do que o Dr. Parnassus de Terry Gilliam.  Este último é um ponto de referência interessante sobre Anderson. Há muito da imaginação visual torrencial de Gilliam. E algo daquelas suas histórias onde os personagens precisam cumprir uma missão, e escolhem o percurso mais cênico e movimentado, não necessariamente o mais rápido e mais discreto.

Não vi os outros filmes de Wes Anderson, então vou falar apenas deste. É uma dessas aventuras meio sofisticadas, com direção de arte primorosa, um roteiro vertiginoso e bem encaixado, para quem não for muito exigente. E sempre com um tom de comédia, aquela leveza que nos faz apenas lamentar com um oh a morte de um coadjuvante, e nada mais. Monsieur Gustave (Ralph Fiennes) é um gerente de hotel cheio de requintes e de recursos. Sua convivência com pessoas idosas de clãs multimilionários o envolve num caso de possível assassinato, desaparecimento de uma valiosa obra de arte, testamentos conflitantes, etc.  Melodrama puro, diluído naquela leveza de espírito de Amélie Poulain.

O universo é o que em literatura se convencionou chamar de “ruritânio”. A Ruritânia é um país europeu cheio de castelos, arquiduques, bosque, campos nevados. Sugerido em O Prisioneiro de Zenda (1894) de Anthony Fox, esse país imaginário tornou-se uma espécie de cenário de aluguel para histórias que não precisem da tecnologia de comunicação de hoje. Tecnologias com algo de moderno e algo de antiquado, ultimamente meio adotado pelos steampunk, onde convivem a espada e o revólver, o telefone e o cavalo.

Existe um charme na Europa entre 1870 e 1930, e as histórias ruritânias (mesmo quando a nação fictícia se chama “Zubrowka”, como neste filme) recuperam um pouco desse passado em que podemos fantasiar sem remorsos a vida dos muito ricos, suas estações de banho, seus hotéis de luxo, seus expressos do Oriente. A Europa de cem anos atrás nos parece tão charmosa, tão fotogênica. Comédias leves como esta nos fazem esquecer que ela está cheia de aposentos não abertos há anos, com coisas indescritas jazendo nas camas.


domingo, 31 de agosto de 2014

3592) A hipótese Tunguska (31.8.2014)



Foi um risco incendiário e chispante, que cruzou o céu noturno, explodiu em estilhaços de fagulhas amarelo-rubras no meio de uma floresta ou tundra nevada, e desde esse dia o mundo não foi mais o mesmo. Ninguém percebeu a princípio, porque a escala da propagação foi orçada por volta de um século. Pois bem. Já mais de um século se passou.



Até então o mundo era determinista, era o que um cientista chamaria de mecânico e newtoniano. A explosão que teve ali não era uma bomba de nêutrons, que mata os seres vivos e deixa a propriedade intacta, nem uma bomba radioativa, que fulmina venenosamente o corpo vivo. Era uma bomba probabilística.  Ia direto alterar o menu do possível. O mundo tornou-se probabilisticamente instável. Em termos macrocósmicos um nerd poderia dizer que era um patch para fazer um upgrade de dificuldade no universo.



A causalidade de tudo, que era só dividida por dois, em infinitos múltiplos pares, se viu estilhaçar em dízimas periódicas irresolvíveis, com mais dígitos do que existem quarks no universo físico. O mundo tornou-se um produto de causa-e-efeito não-simétrico, sabotando a simplicidade das tabelas periódicas. O software básico do mundo tornou-se errático, cheio de exceções, de numeradores primos, de denominadores infinitos.



O choque da semicolisão entre o artefato e a Terra foi se alastrando anos afora. Onze anos depois, Charles Fort publicava seu primeiro volume de anomalias, e Robert L. Ripley começava a colecionar o estranho, o bizarro, o inesperado. O que antes eram franjas da mais remota improbabilidade pareciam de repente tomar conta do mundo. Metaforicamente falando, as telhas estavam subindo sozinhas para o teto. Tudo que era improvável mas não cientificamente impossível começou a ser um lugar comum. Mundo mais instável.


A parafernália astronômica e cosmológica é para distrair os humanos da verdadeira natureza do Universo e da Terra (com os dados da Terra, a situação real). O Universo não está em expansão, e sim em contração. Como uma esfera cheia de gás, estreitando-se, comprimindo o frevo de movimentos brownianos das moléculas que a habitam. O polarizador de probabilidades está zunindo a mil por hora. Pós-Tunguska, o mundo ficou mais acelerado, o tempo mais rápido, os anos mais curtos. O auge do surrealismo, o surgimento da mecânica quântica, de Tesla, de James Joyce, uma procissão de sintomas, filosóficos ou estéticos, registrando esse mundo de probabilidades que se estilhaçam em infinitos. Ficou como uma HQ de Moebius. Nada é tão comum que não possa ficar extraordinário, e nada é tão improvável que não haja um fiapo de história onde ele faça sentido.


sábado, 30 de agosto de 2014

3591) As listas do escritor (30.8.2014)


(ilustração: Hamish Hamilton websaite)

Já me aconteceu mais de uma vez. Tenho uma boa idéia para uma história, sento no teclado e começo a escrever. A certa altura surge uma frase tipo: “Depois de um dia inteiro de cavalgada, ao entardecer chegaram ao Castelo de...”  

E aí pronto. Como vai ser o nome do castelo?  Tem que ser um nome imponente, significativo... Começo a pensar, vou na janela, vou fazer um café, vou folhear livros de História Antiga, e o conto vai pro espaço, porque encalhei naquele ponto e estou ali até hoje.

Muitos escritores, para evitar essas indecisões, fazem listas. Listas de nomes de personagens, divididas por idade, classe social, país, época...  Listas de nomes de lugares: cidades, castelos, casas comerciais, tudo que tiver importância na história e tenha que ser mencionado mais cedo ou mais tarde.  E assim por diante.  

Fazer essas listas ajuda o autor a não perder o pique quando precisar citar um grupo de pessoas, por exemplo, mesmo que depois resolva que o personagem “Juliano” tem mais cara de se chamar “Tarcísio”. O importante é não quebrar o embalo narrativo só porque precisa matutar num detalhe.

Raymond Chandler fazia listas de tudo, e muitas estão reproduzidas em The Notebooks of Raymond Chandler (Ecco Press, 1976). Listas de títulos de histórias, de termos de gíria, de “wisecracks” (aquelas frases irônicas e demolidoras que ele usava nos diálogos), etc.  

Muitas acabam não sendo usadas, mas não há problema. O importante é que o autor fica com bala na agulha, para o momento em que precisar.

Damon Knight, em seu precioso manual Creating Short Fiction (St. Martins’s Press, 1997) sugere que o autor anote nomes próprios interessantes sempre que encontrar um, e vá montando uma lista variada.  Se um personagem é estrangeiro, diz ele, consulte numa enciclopédia o verbete sobre aquele país, mas não use os nomes dos personagens famosos e históricos. Melhor recorrer aos nomes das pessoas que prepararam o verbete, e que vêm no final, na bibliografia. (Um leitor brasileiro acharia estranho uma história norte-americana ambientada no Brasil onde os personagens, gente comum, se chamassem Kubitschek, Collor, Sarney, Roussef...)

Em último caso (sugere Knight) se um nome qualquer não lhe ocorrer na hora, e os nomes da lista não servirem, vale a pena guardar o lugar com um sinal gráfico qualquer e seguir em frente.  Ele sugere barras inclinadas, //.  Nos meus textos eu prefiro usar alguma coisa entre colchetes: [.....].  

“Nove vezes em dez,” diz ele, “um detalhe assim, que pode imobilizar você durante meia hora diante do teclado, será resolvido em um ou dois minutos na próxima vez que você estiver revisando o texto”.







sexta-feira, 29 de agosto de 2014

3590) Meu pequeno crime (29.8.2014)



Eu tinha pegado um daqueles voos que saem da Paraíba de madrugada e aterrissam no Galeão ao amanhecer, um voo cansativo, e a coluna me incomodando. Desci apressado, cruzei o saguão e entrei na fila do táxi, na calçada do desembarque. Tinha umas oito ou dez pessoas na minha frente. Os carros vinham chegando de um em um, enchendo e partindo. Quase no começo da fila tinha um gringo. Um cara de 30-e-poucos anos, rosto sério de gringo, roupas desajeitadas de gringo, duas malas enormes e algumas sacolas. Quando o táxi foi se aproximando, ele moveu a posição das sacolas e eu vi alguma coisa cair no chão.



Era um pacotezinho de plástico com algumas coisas dentro, parecia um saquinho com cartões, um ou outro documento, a ponta de plástico enrolada e dada um nó.  Quando aquilo caiu no chão o cara estava preocupado com o equilíbrio das sacolas em cima da mala enorme (nisso o táxi dele já vinha encostando no meio-fio), e não viu. Esperei que as pessoas atrás dele, mais próximas, mostrassem a queda do objeto. Ninguém se mexeu. Eu podia ter mostrado. Nem precisaria conversar, arriscar meu inglês. Bastaria fazer “Ei!” bem alto, erguendo o braço, e, quando ele olhasse, apontar o pacotinho no chão.



Não o fiz.  Fiquei somente olhando enquanto ele e o motorista botavam a bagagem na mala do carro, ele se acomodava com suas sacolas no banco traseiro e o táxi ia embora. O pacotinho ficou no chão. Ninguém viu. As pessoas seguintes passaram as rodinhas de suas malas por cima dele. Quando chegou minha vez, embarquei também e fui embora.



Por que não ajudei o cara?  Não me custava nada. “Ei!” – e apontar o chão. Podia não ser nada, podia ser algum comprimido para enjoo, sem maior valor. E podia ser um documento, um cartão, algo essencial quando se está em terra estranha. Não avisei porque fiquei esperando que as pessoas mais próximas o fizessem. E depois não o fiz porque estava cansado, impaciente, doido pra meu táxi chegar logo. O cara foi embora com o problema dele, e eu vim embora com os meus.


A pior coisa, quando a gente faz uma desatenção assim, é que o mundo não se acaba. E você começa a achar que já que o mundo não se acabou, nunca mais vai se acabar. E aí tome a fazer o que dá na telha; tudo é permitido.  Era bom que, cada vez que a gente praticasse uma maldade omissa ou forçosa sobre alguém, pelo menos alguma pequena catástrofe ocorresse em seguida, para se saber que aquilo ali incomodava o Universo, era uma desarmonia, desequilibrava tudo em volta e requeria compensação. Todo pequeno gesto conta. Toda pequena gentileza casual conta. Toda chance que fez vapt e depois fez vupt, os quatrocentos golpes de cada dia. Tudo conta.


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

3589) A Vida e os Tempos de Cabrocha Divã (28.8.2014)



Cap. 1 – De como Cabrocha Divã tornou-se logo aos 16 anos a bailarina mais notada no corpo de dança do Colégio Paulo VI.  

Cap. 2 – De todos os tortuosos caminhos que Cabrocha Divã teve que trilhar até poder ocultar o nome horroroso de Anilstina Ferreira da Silva, e tornar-se uma criatura feita de fogo e marketing, uma força da Natureza. 

Cap. 3 – De como sucessivos empresários e sucessivos ininteligíveis contratos ensinaram a Cabrocha Divã a obediência à letra-da-lei, fazer sempre o que se comprometera a fazer, para inicial susto seu, mas um certo alívio por ter finalmente confirmado serem aquelas as regras do show-business, e dando graças aos céus pelo fato de os testemunhos de boa-vontade que lhe eram solicitados eram tão de acordo com sua própria índole que ela bem de gosto pagaria, se lhe fosse exigido, e se tivesse com quê, para adquirir todas aquelas experiências.

Cap. 4 – De como ela acabou se organizando, graças a Nossa Senhora da Conceição, aos comprimidos de Maracugina que se lhe tornaram indispensáveis, e a Fernando Adolfo, um rapaz que entendia de contabilidade e era um doce de pessoa. 

Cap. 5 – De como ela, cada vez mais dependente das prestidigitações contábeis de Fernando Adolfo, hesitava entre casar com ele e mandar matá-lo por um pistoleiro. 

Cap. 6 – De como ela entrevistou meia dúzia de pistoleiros tentando achar um em que pudesse confiar, e vejam só o que é o destino, aparece-lhe pela frente Zé de Crisaldo, assassino regulamentar e frio, pelo qual ela se apaixona.

Cap. 7 – De como ela e Zé de Crisaldo entram numa tarambola maluca de matar gente, inclusive pessoas próximas a ela, que loucura, gente de que ela gostava até, mas acabou matando pela folia-a-dois que Zé de Crisaldo lhe ensejava.  

Cap. 8 – De como um dia uma bala chapa-branca cruza o cérebro de Zé de Crisaldo e a liberta, ficando ela boquiaberta e devastada diante da extensão do que tinha feito. 

Cap. 9 – De como é testemunho do amadurecimento de nossas instituições penais o fato de que Cabrocha Divã foi rapidamente inocentada daquela enfieira de crimes, que na verdade não tinha cometido, meramente inspirado, e conseguiu bons contratos no Casino do Leblon, namorou um vice-presidenciável, ganhou memes impublicáveis, brilhou nos principais talk-shows daquele semestre. 

Cap. 10 – De como no auge de sua forma física, aos 28 anos, Cabrocha Divã sucumbiu a uma psicose irreprimível por chocolates, que deflataram sua auto-estima e inflacionaram sua forma física, transformaram-na num  espectro regurgitante de si mesma, a tal ponto que ela jogou a toalha e realizou seu verdadeiro sonho, que não lembro mais qual era.


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

3588) A gravidade e o poder (27.8.2014)



(foto: Jacob Sutton)

O Poder político e econômico exerce uma espécie de atração gravitacional sobre as pessoas. Umas parecem mais sensíveis a essa atração do que outras. Onde quer que estejam, aquilo começa a puxá-las irresistivelmente para cima, na direção dos postos de comando. Uma força irracional, inconsciente, que em muitos momentos chega a parecer involuntária. A pessoa parece pedindo socorro, veladamente. Ela não quer o Poder, mas é como se estivesse sendo empurrada para ele (que é na verdade o Abismo) por tudo que a cerca. Percebe-se isto naquele velho discurso com que alguns políticos anunciam uma candidatura: “Eu não queria ser candidato, porque não me sinto à altura de uma missão tão espinhosa, de um compromisso que exige alguém mais preparado do que eu, mas é uma exigência do meu partido, dos meus eleitores, dos meus companheiros de luta, e não possso me furtar a esse chamamento, não posso fugir a esse grande desafio...”  Parece jogador de futebol recitando aquela fala sobre objetivo e resultado.

No romance Os Portais de Anúbis, de Tim Powers, há um feiticeiro magicamente ligado à Lua por uma série de encantamentos e rituais. Isto faz com que ele seja fisicamente atraído para ela, e precise andar amarrado a um peso qualquer.  Se saísse solto ao ar livre, a atração o faria subir pelo ar rumo à estratosfera, e de lá “cair para cima” na direção da Lua.  Tem gente que é assim: parece estar sendo atraída pelo Poder, e sobe rumo a ele, esperneando, pedindo licença, pedindo desculpa, dizendo que não quer, dizendo: “É algo mais forte do que eu.” E é mesmo. Não é uma virtude que essas pessoas têm. É antes uma fraqueza.  O Poder precisa de pessoas como elas, pessoas que não têm forças para resistir a ele, que não têm um peso a que possam se amarrar para escapar à sua atração.

O Poder precisa de pessoas de olhar fixo e vidrado, capazes de sacrificar sua vida pessoal e emocional, seu tempo como pessoa, seu prazer, seu lazer, seu crescimento íntimo, para servir-lhe 24 horas por dia. “O Poder é um sacrifício, é um sacerdócio,” suspiram os poderosos, e é mesmo. Um sacerdócio vampírico que suga algumas almas deixando-as com um vazio central que alguns tentam preencher com fortunas promissórias, outros com drogas e orgias, outros com a paranóia exaltatória de que são mais iguais do que os iguais. Surgem os rituais do poder, as coroas, os tronos, os Versalhes, os jatinhos, as Swats de assessores. Para que serve isso tudo? Para dar àquela pessoa a ilusão de que tem poder. Essa pessoa é como aquele parafuso que acha que é ele quem está girando aquela chave de fenda e que está entrando por vontade própria naquela rosca.