quarta-feira, 21 de maio de 2014
3504) O Banco de Ferro (21.5.2014)
O Banco de Ferro só é de ferro simbolicamente. Na verdade ele é feito de números, uma linguagem diferente nos nobres ideais dos cavaleiros e fidalgos de casa real. O “real” deles não se refere a reis, mas a mil-réis, à contabilidade dos empréstimos, a dívidas, percentagens, financiamentos a prazo ilimitado e juros compostos, investimentos de olho no comportamento da coluna da direita, independente do que esteja descrito na coluna da esquerda. Os Bancos funcionam assim, desde os Templários e os judeus do Mediterrâneo até Wall Street.
O Banco de Ferro de Braavos começa a surgir na trama do seriado “Game of Thrones” (HBO). Por trás das batalhas, cercos e massacres de terra e mar que têm se sucedido no continente de Westeros, começamos a tomar conhecimento de uma guerra na surdina, uma guerra menos visível do que a dos estandartes e do fogo grego. É a guerra dos números. Quem deve mais do que pode pagar? Quem poderia vencer as batalhas militares, se tivesse mais capital? Quem pode se apresentar como um parceiro econômico mais favorável e lucrativo, independente de quem seja ou do que queira fazer com o que ganhar?
Corre o risco de o livro sexto ou sétimo das “Crônicas de Gelo e Fogo” vir a se chamar “Inside Job” ou “Margin Call”. Talvez seja uma idéia fixa de minha parte, um pesadelo-da-conspiração em que o mundo inteiro é um teatrinho que justifica e encobre a guerra de cifrões e ouro, a única real, a única que mexe no software das sociedades. Dez mil soldados podem ser degolados sem avanço militar significativo, mas dez mil moedas de ouro depositadas todas num mesmo ponto são peso suficiente para fazer mover alavancas gigantescas.
Os Lannister estão no poder, mas endividados, e por trás dos lambris e das tapeçarias da corte movimentam-se cifrões ágeis como répteis. Um reino sem ouro é algo tão artificial e sem fundamento quanto um cheque sem assinatura. A encenação do poder, mesmo capaz de brutalizar aqui, crucificar ali, massacrar acolá, não é nada sem lastro em padrão ouro. Para o Banco de Ferro, as conquistas militares alheias são verdadeiras festas. Todos recorrem a ele para pagar fantasias, alegorias, músicos, comida, bebida; uma guerra consome mais dinheiro do que um casamento real por dia. Alguém tem que pagar, e para pagar recorre a quem tem. “Quem tem” está muitas vezes financiando com a mão esquerda e vendendo os produtos com a direita. O Banco de Ferro não liga quem governe o continente, contanto que governe sob suas asas financeiras. O Banco de Ferro é uma ameaça tão subestimada e tão invisível quanto os dragões da Khaleesi, mas vai se tornando mais presente a cada temporada que passa.
terça-feira, 20 de maio de 2014
3503) Os slogans da Copa (20.5.2014)
Podem dizer que minha abordagem é preconceituosa. Entre outras coisas, é a pura verdade. Não tenho preconceito contra a Copa do Mundo, tenho contra a Fifa que a promove e que se parece com uma Máfia, uma Wall Street, uma limusine de mercenários, um valhacouto de cavalheiros-da-indústria, uma gangue de trambiqueiros de alto coturno. Não tenho preconceitos contra negros, judeus, homossexuais, índios, mulheres, contra quase ninguém. Tenho preconceito contra a Fifa. (Não devo pensar que sou melhor do que pessoa alguma.)
A Fifa promoveu uma votação/enquete para escolher 32
slogans, aqueles que são pintados nos ônibus das 32 seleções que disputarão a
Copa no Brasil. Não consegui descobrir
como feita essa eleição, se foi com sugestões do público em geral, ou se se
deveu à mesma comissão que criou o Fuleco.
O slogan da nossa seleção é: “Preparem-se! O hexa está
chegando!”. Brasileiríssimo, pois não se trata de “Vamos conquistar o hexa,
passando por cima de pau-e-pedra!”. É tipo “estamos aqui, na piscina do hotel,
e alguém ligou no celular dizendo que o hexa está chegando daqui a pouco,
dependendo do trânsito e das manifestações”.
Corre, Neymar!
Alguns slogans são do tipo tiro-no-pé. Os belgas dizem:
“Esperem o impossível!”. (Ao que os franceses, mais profissionais, afirmam: “O
impossível não existe em francês”). Os uruguaios (logo eles, contumazes estragadores-de-festa)
dizem: “Três milhões de ilusões, vamos lá, Uruguai!”. Tomara que fiquem na
ilusão mesmo. Alguns recorrem à mitologia totêmica, como Camarões (“Um leão é
sempre um leão”) ou a Costa do Marfim (“Os elefantes à conquista do Brasil”).
Vários países concorrentes revelam uma certa pressa ansiosa
em afirmar que já realizou sua individuação do Self junguiano. Argentina
(“Não somos um time, somos um país”), Colômbia (“Aqui não viaja um time, viaja
um país inteiro!”), Equador (“Um compromisso, uma paixão, um só coração, é para
ti, Equador!”), Alemanha (“Uma nação, um time, um sonho!”), Honduras (“Somos um
povo, uma nação, cinco estrelas de coração”).
domingo, 18 de maio de 2014
3502) Os derrotados (18.5.2014)
Somente os vencedores têm a sua história contada. Não existe tempo nem espaço na memória dos homens para a história dos que perderam, dos que ficaram pelo meio do caminho, dos que tentaram e não conseguiram. São a cara da humanidade; mas a própria humanidade os despreza. São a parte submersa do iceberg da história, do qual forçamo-nos a ver somente o que se eleva e se destaca, e fingimos que por baixo nada mais existe. Cadê a biografia dos que nunca subiram ao pódio, dos que perderam todas as eleições, dos que foram passados-no-rodo nas batalhas, dos que ficaram em décimo-primeiro lugar nas listas dos dez melhores, dos que buscados no Google dão zero hits?
Toda
história de sucesso é praticamente a mesma coisa, mas cada derrota e cada
tragédia é mais individualizada, mais pessoal e mais de-carne-e-osso do que o
mero triunfo. Perguntem a Dante
Alighieri, que já respondeu. É uma verdadeira assimetria filosófica que um
escritor que publicou dez livros receba uma biografia e um pretendente a
escritor que pensou em escrever dez livros e não o fez não receba sequer dez
linhas de wiki. Sem falar naqueles que
escreveram livros trabalhosíssimos e deixaram a única cópia datilografada no
banco traseiro de um táxi ou numa maleta esquecida na plataforma de um
trem.
O
sucesso tem uma função meramente ampliadora, mas as histórias que conta não têm
um grama sequer a mais do que as catástrofes de subúrbio, os naufrágios de
piscina de quintal, os apocalipses em
plena adolescência, os hindemburgs que colecionamos na interminável infância. Mandem parar a van em qualquer estrada
lateral de qualquer interiorzão brabo, e detenham o primeiro transeunte que for
passando, como faziam aqueles califas e vizires das mil e uma noites. Ele lhes contará uma história pessoal que
bem escrita deixaria um bilhão de mentes estremecendo mundo afora.
sábado, 17 de maio de 2014
3501) Cinemas antigos (17.5.2014)
(ilustração: Paul Sandby)
O
cinema foi uma novidade tecnológica que desembarcou no Brasil nos primeiros
anos do século 20 e foi se espalhando. Nas cidades maiores, acho,
estabeleciam-se perto dos teatros, por precisar de salas semelhantes. Mas, pelo
Brasil afora, onde houvesse feira, quermesse, parque de diversões, espetáculos
populares, tômbolas, rifas, pavilhões de jogos, iam surgindo as primeiras
tendas ou salinhas de projeção, atraídas pela força gravitacional dessas
diversões baratas. Era o mesmo público,
o mesmo espírito, o mesmo preço.
O
que às vezes não lembramos é que o cinema foi precedido por projeções das
Lanternas Mágicas e dos variados “...scópios” da época, que lidavam com imagens
fixas, transparentes, coloridas, projetadas em grande tamanho em parede ou
tela.
Em sua saborosa História da Cidade do Natal (1947, pags. 265-266),
Câmara Cascudo lembra o fenômeno no Rio Grande do Norte:
“Havia o Cosmorama, vistas de cidades e costumes através de um vidro de aumento. Divertimento caro. Um tostão. Os melhores, vindos em 1888, exigiam quinhentos réis de entrada na Praça da Alegria. Depois apareceu a Lanterna Mágica, paisagens, figuras, cenas substituídas com relativa rapidez pela máquina. Ia muita gente boa, bem vestida, comentando o ‘espetáculo’”.
E
depois:
“Em 1906 Natal viu e gostou das descobertas sensacionais. Em abril o sr. Arlindo Costa com o Bioscópio, no teatro Carlos Gomes, vistas fixas e outras com movimento. Por exemplo – o Hotel Mal Assombrado. Em novembro veio Moura Quineau com uma máquina moderna. Quase cinema. O ‘Álbum Maravilhoso’ era um assombro. Em 1911 o primeiro cinema na praça Augusto Severo, Politeama, nome escolhido por eleição popular pelas página d’A República”.
No
fim deste século, lá por 2090, quando forem escritas as histórias dos
videogames, serão lembradas as máquinas de fliperamas, joguinhos de “arcade” e
outras que já foram (ainda são um pouco) tão comuns em rodoviárias, aeroportos,
galerias, shopping-centers, etc.
Diversões populares ao preço de uma fichinha, que vão aos poucos sendo
substituídas por seus primos tecnológicos mais aperfeiçoados.
sexta-feira, 16 de maio de 2014
3500) A Bíblia e o cordel (16.5.2014)
Nos meus tempos de menino, devo ter lido a Bíblia quase inteira, em parte por vontade de ir pro Céu, e em parte pela curiosidade (que sempre tive, ouvindo histórias antes mesmo de aprender a ler) de saber o que aconteceu no meio daquelas guerras entre reis, aquelas peregrinações, aquelas sagas de famílias a quem só aconteciam prodígios, aqueles milagres espantosos acontecendo com pessoas que não eram muito diferentes das pessoas da fazenda da Broca, do meu avô, ou do sítio Tatu.
Já
comparei a Paraíba (por extensão, o Nordeste) à Grécia Antiga.
Dois mundos retalhados entre faixas áridas e faixas férteis, cheios de montanhas misteriosas; povos de pastores e agricultores, envolvidos com seres sobrenaturais, com milagres e catástrofes inexplicáveis, com tragédias e epifanias que eles tentavam compreender e justificar através de longos poemas compostos e guardados de cor.
O mesmo se dá com o mundo da Bíblia. Andando pelos nossos sertões, nossas serras, nossos vales, nos deparamos a todo instante com um daqueles patriarcas do Velho Testamento, cuja única diferença para com os verdadeiros patriarcas hebreus é que ele leu o Velho Testamento e os hebreus provavelmente não, foram meros personagens.
Dois mundos retalhados entre faixas áridas e faixas férteis, cheios de montanhas misteriosas; povos de pastores e agricultores, envolvidos com seres sobrenaturais, com milagres e catástrofes inexplicáveis, com tragédias e epifanias que eles tentavam compreender e justificar através de longos poemas compostos e guardados de cor.
O mesmo se dá com o mundo da Bíblia. Andando pelos nossos sertões, nossas serras, nossos vales, nos deparamos a todo instante com um daqueles patriarcas do Velho Testamento, cuja única diferença para com os verdadeiros patriarcas hebreus é que ele leu o Velho Testamento e os hebreus provavelmente não, foram meros personagens.
Bob
Dylan não foi o único poeta pop a recorrer à Bíblia em busca de temas entre o
terrível e o sublime. Fez isso, também, em busca de uma dicção clássica,
concentrada, que no idioma inglês se localiza na famosa Bíblia do rei James VI,
do começo dos anos 1600.
Outros poetas pop norte-americanos que volta e meia “chamam” o vocabulário, os temas e as imagens bíblicas são Leonard Cohen, Allen Ginsberg. Mais do que um fenômeno de crença religiosa, é uma questão de fé literária. Todos sabem que aquilo é uma essência concentrada de verdade literária.
Outros poetas pop norte-americanos que volta e meia “chamam” o vocabulário, os temas e as imagens bíblicas são Leonard Cohen, Allen Ginsberg. Mais do que um fenômeno de crença religiosa, é uma questão de fé literária. Todos sabem que aquilo é uma essência concentrada de verdade literária.
O nível poético de livros como os Salmos de Davi, o Livro dos Provérbios, o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, é impressionante – uma poesia que salta com facilidade do concreto para o abstrato, da fotografia de uma planta ou um animal correndo sobre as pedras para, na linha seguinte, uma reflexão sobre Deus e o mundo.
E chego agora ao meu tema: seria interessante uma análise estritamente poética da influência da linguagem bíblica sobre a poética dos cantadores e cordelistas. Vocabulário, figuras de linguagem, estrutura de versos, repetição interna de estruturas sintáticas para efeito poético...
Que os poetas liam muito a Bíblia é fato corriqueiro. Que traços estilísticos a Bíblia deixou em sua poética?
quinta-feira, 15 de maio de 2014
3499) O filme de Clodoaldo (15.5.2014)
Clodoaldo era dono de um bar pros lados de Bodocongó, rodeado pelo campus da UFCG. Era amigo dos estudantes. Aprendeu na carne e no sangue o que é permitir um caba liso assinar um vale. Mas era uma alma boa, inteligente, lia muito, gostava de papo, e era tão maluco quanto qualquer universitário.
(Quem segurava as pontas
financeiras do bar era a mulher dele, que ele chamava de Receita Federal:
“Vocês podem beber em paz aí, que a Receita Federal tá contabilizando tudo.”)
Quando o filme ficou pronto, foi inscrito num
festival na Alemanha. Mas o dinheiro da Quadra já tinha acabado, e Clodoaldo
não pagou a ninguém.
Clodoaldo
ganhou uma quadra da Mega-Sena e resolveu dirigir um curta. Chamou o pessoal do
curso de Arte & Mídia para trabalhar na equipe, prometendo pagar “tabela do
sindicato”.
O pessoal foi, mais pela curiosidade e pela farra, mas os problemas
começaram no roteiro. Cadê o roteiro, Clodoaldo? “Tá todo aqui,” dizia ele
subitamente sério, com o indicador apontando a têmpora, firme como um revólver.
Qual era a história? Um dia ele dizia: “É uma interpretação urbana do cangaço e
da cultura da mandioca.” Tempos depois,
dizia: “É uma guerra entre uma família pobre e uma família rica.” Noutro dia era: “É a história de um cara que
tudo que faz dá errado.”
Na
primeira semana de filmagem, ele disse a Duda, o fotógrafo: “Essa cena eu quero
com a câmara em cima de um ônibus”.
Duda: “Mas não são duas pessoas
conversando? Melhor a câmara parada.”
Ele: “A gente combina com o motorista pra
passar bem devagarinho.”
Duda: “Mas por que tem que ser o ônibus?”
Ele: “Eu
acho tão bonito, uma câmara em cima de um ônibus!”
Ele
inventou de filmar uma briga de faca em que cada vez que uma faca batia na
outra se ouvia um tiro de revólver, mas recusou edição no estúdio, a
sincronização tinha que ser feita na hora, com um cara mais atrás disparando
cartuchos na hora certa. “Dá muito trabalho, Clodoaldo”. E ele: “Tudo que é bem
feito dá trabalho. Vocês pensam que isso aqui é Hollywood, onde tudo é
facilitado?!”.
Clodoaldo sujou o
prontuário policial de toda a equipe ao invadir a Prefeitura com um grupo de
cangaceiros (“tem que ser sem pedir licença, quero espontaneidade”). Discussões
acaloradas em cada dia de filmagem. Câmara de cabeça pra baixo (“pra simbolizar
a inversão de valores morais”).
O pessoal rompeu com ele, e passou a beber no bar de
Dionísio, que era perto. Por vingança, nem avisaram a Clodoaldo quando
receberam a notícia de que o filme tinha ganho o prêmio especial da crítica.
“Quem manda ser xexeiro?”, resmungava Duda. “E se ele se animar, vai querer
fazer um longa e aí lascou-se tudo.”
3498) Palavras intraduzíveis (14.5.2014)
(alemão: "Uma cara que tá pedindo pra levar um murro")
Este
saite (http://tinyurl.com/qbl6zgw) tem
23 ilustrações interessantes baseadas num conceito que sempre me fascina:
palavras que existem numa língua mas não em outras. A gente tem a noção meio
ingênua de que para tudo existe uma palavra específica, mas a verdade é que
toda língua tem termos que só podem ser traduzidos com longas explicações e
circunlóquios. Eis alguns exemplos:
Fernweh
(alemão) – sentir saudade de um lugar onde nunca se foi.
Papakata (Ilhas Maori)
– ter uma perna mais curta do que a outra.
Tingo (ilha da Páscoa) – furtar
gradualmente todas as posses de um vizinho, apenas pedindo emprestado e não nãnão
não o devolvendo.
Tsundoku (japonês) – o ato de deixar um livro sem ler,
depois de comprá-lo, tipicamente guardando-o junto a outros livros na mesma
condição.
Waldeinsamkeit (alemão) – a sensação de estar sozinho num bosque.
Pochemuchka
(russo) – uma pessoa que faz muitas perguntas.
Aware (japonês) – a sensação
doce-amarga de um momento breve e passageiro de beleza transcendental.
Gattara
(italiano) – uma mulher idosa e sozinha que se dedica a gatos perdidos.
Won
(coreano) – a relutância, da parte de uma pessoa, de abandonar uma ilusão.
Ilunga (tshiluba) – uma pessoa disposta a perdoar qualquer tipo de abuso pela
primeira vez, tolerá-lo uma segunda vez, mas nunca uma terceira.
Prozvonit
(tcheco) – o ato de ligar para um celular e dar apenas um toque, para que a
outra pessoa ligue de volta, fazendo-nos economizar dinheiro ou créditos.
Note-se
que não é a sensação ou a idéia que são intraduzíveis, pelo contrário, em geral
são noções que entendemos facilmente. Mas não temos uma única palavra para
exprimir essa idéia. Mais ou menos. A pessoa que tem uma perna mais curta do
que a outra é chamada no Nordeste de “29-30”, não sei porque (talvez para
indicar numericamente a pequena diferença entre as duas). Gente que faz muitas
perguntas é “perguntador”. Nos outros casos (e nos demais termos que não
transcrevi aqui), não tem jeito, é preciso uma descrição. Não temos palavras
diretas.
terça-feira, 13 de maio de 2014
3497) Jair Rodrigues (13.5.2014)
O Brasil chorou a morte de Jair Rodrigues, aos 75 anos, com aquela ponta de remorso de toda platéia que empurrou um artista para a prateleira dos fundos e só lembra das suas qualidades quando percebe que o perdeu. Sou um desses, porque, embora não ficasse imune à simpatia pessoal e ao talento do cantor, não ouvia um disco inteiro dele há mais de trinta anos. Fazer o quê? O Brasil é assim. Ninguém pode ser novidade de novo a cada ano, embora alguns tentem heroicamente. O lado positivo é que, na música brasileira, quem foi muito famoso durante alguns anos conseguirá viver de shows eternamente, se souber cuidar da própria agenda. Quando viajo pelo interiorzão do Brasil, nunca deixo de ver faixas ou cartazes no clube local anunciando o show de alguém cujo nome não aparece na TV há décadas. O Brasil é grande, e uma fama residual, bem administrada, dura pelo resto da vida.
O primeiro grande momento de Jair foi a “Disparada” de
Geraldo Vandré e Théo, que ele defendeu num festival com um vigor poucas vezes
visto. Foi aquele caso feliz do intérprete ideal para uma música diferente.
Campeã do festival junto com “A Banda” de Chico Buarque, ela mostrou naquele
momento de intensa renovação que a música regional era uma fonte inesgotável de
vigor, com uma potência épica que estava sendo redescoberta por músicos como
Sérgio Ricardo, Edu Lobo e outros.
Outro grande momento de sua carreira foi seu programa de
TV ao lado de Elis Regina. Mais uma vez, o caso feliz de dois intérpretes de
gosto musical parecido e estilo parecido: exuberante, pra-fora, a plenos
pulmões. Ver os dois juntos na TV, para minha geração, produzia uma
irresistível vontade de correr para o violão mais próximo e tentar compor
algumas músicas. Felizmente obedeci a este impulso.
domingo, 11 de maio de 2014
3496) O Eu poético (11.5.2014)
Fernando Pessoa defendeu em inúmeros textos em prosa (e até em poemas) o conceito de poesia dramática, a poesia que em vez de ser uma confissão intensamente pessoal do autor é uma poesia meio teatralizada, onde o autor inventa pessoas e situações e fala em nome desses personagens imaginários. Ele fez isto há um século, mas grande parte das pessoas que leem poesia continuam presas a um conceito de Eu Poético que resulta de uma compreensão limitada do lirismo. Vejo muita gente dizer: “Fulano faz poesia lírica, então tudo que ele está exprimindo são os verdadeiros sentimentos dele”.
O Eu Poético não é uma afirmação de opiniões, é a
investigação momentânea de estados emocionais.
Não é o que o poeta pensa oficialmente sobre aquele tema (a amada, o seu
país, o destino da humanidade, etc.): é o que ele está pensando naqueles
momentos em que se sente motivado a escrever.
Ele pode estar sujeito a emoções momentâneas de entusiasmo, raiva,
desespero, euforia, espírito moleque e assim por diante. Escreverá, naquela hora, movido por esse
estado de espírito. Nada o obriga a dar
naquele poema uma opinião definitiva sobre algo. Como dizia Drummond, “hoje ama, amanhã não
ama”. Se produzir um poema hoje e outro amanhã, dizendo o por quê de amar ou de
não amar, ambos os poemas, mesmo contraditórios, serão verdadeiros.
A poesia lírica é a impressão mental do presente do poeta,
daquele estado emocional que o faz pegar na caneta. Emoções, o poeta as sente o
tempo todo, como qualquer pessoa, mas há emoções que começam a se cristalizar
em palavras, em imagens verbais, e é como se ele pensasse: “essa aqui eu
consigo dar uma forma”. E ele pega na caneta. É uma poesia contraditória,
porque o ser humano oscila o tempo todo entre emoções conflitantes. Meu exemplo
preferido quanto a isto é a poetisa chilena Violeta Parra. Ela tem uma canção,
“Gracias a la vida” (“Gracias a la vida / que me ha dado tanto...”) que é uma
das canções mais belas de alegria de viver, capaz de ajudar a tirar alguém de
uma depressão. E escreveu outra,
“Maldigo del alto cielo” (aqui: http://tinyurl.com/ocklytn), que
é uma canção de maldição, de desespero, de chutar o balde e desistir do mundo.
Qual das duas exprime os verdadeiros sentimentos da poetisa? Ambas.
sábado, 10 de maio de 2014
3495) Mini-contos de terror (10.5.2014)
(Minha contribuição ao gênero chamado Dark Quarks – contos de terror em duas frases.)
1) Na esperança de engravidar, ela recitou preces, fez
simpatias, preparou um berço, e toda noite ia olhar para ele. Uma noite havia
alguém lá.
2) O chão cedeu durante a fuga e ele afundou até a cintura numa lama
espessa. Quando tentou nadar seus braços
ficaram presos.
3) Quando a luz do elevador apagou, ele ficou aborrecido. O medo só começou quando ouviu um rangido
profundo e o elevador começou a mover-se lateralmente, cada vez mais depressa.
4) Ao enfiar o pé na bota esquerda e amarrar os cadarços
experimentou com prazer aquela sensação protetora. Ao enfiar o outro, sentiu a
ferroada na sola do pé.
5) Ele morava sozinho, e levantou no meio da noite para
atender as insistentes batidas na porta da frente. Somente ao acender a luz da
sala viu o braço descarnado que começava a se enfiar por baixo da porta.
6) Ele
percebeu que tinha se perdido na caatinga, e desceu do jipe para se orientar
pelas estrelas. Quando o jipe arrancou sozinho, começou o rumor na mata.
7) Morando à beira de um bosque, sempre achou que seus
inimigos eram os lobos. Até o dia em que fugindo de um lobo caiu dentro de um
poço vazio e aí começaram seus problemas.
8) O poema saiu inteiro, num jato,
como se já viesse pronto, uma, duas páginas, os dedos voando no teclado,
perfeito. “Deseja salvar as alterações?” “Não”.
9) Brincando no parque, a garotinha foi seguida por um homem
mal encarado. Assustada, pediu carona no carro de uma moça, respirou aliviada,
mas a motorista parou o carro na esquina e o homem entrou no banco traseiro.
10)
A festa do casamento foi divina, a viagem agradável, o hotel da lua-de-mel era
um paraíso. Mas ela não esperava que na suíte nupcial estivessem quatro amigos
do marido, fumando e bebendo, à espera.
12) O quarto à noite começou a se encher de mosquitos formando uma nuvem alongada, quase sólida. A nuvem esvoaçou até perto da cama e desligou o ventilador para ficar mais à vontade.
13) Ao ouvir o terceiro sinal, ajeitou o black-tie, o smoking, flexionou os dedos e dirigiu-se para o palco, pressentindo rumor de casa cheia. Chegando ao proscênio, deparou-se com mil e duzentos caiapós armados e pintados para a guerra.
14) Uma ventania súbita e um vozerio na rua o levaram à janela, de onde avistou a praia, seca, numa extensão de centenas de metros. Procurou o mar com os olhos e o viu no horizonte, erguendo-se até a metade do céu, como uma naja armando o bote.
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