domingo, 11 de maio de 2014

3496) O Eu poético (11.5.2014)



Fernando Pessoa defendeu em inúmeros textos em prosa (e até em poemas) o conceito de poesia dramática, a poesia que em vez de ser uma confissão intensamente pessoal do autor é uma poesia meio teatralizada, onde o autor inventa pessoas e situações e fala em nome desses personagens imaginários. Ele fez isto há um século, mas grande parte das pessoas que leem poesia continuam presas a um conceito de Eu Poético que resulta de uma compreensão limitada do lirismo. Vejo muita gente dizer: “Fulano faz poesia lírica, então tudo que ele está exprimindo são os verdadeiros sentimentos dele”. 

O Eu Poético não é uma afirmação de opiniões, é a investigação momentânea de estados emocionais.  Não é o que o poeta pensa oficialmente sobre aquele tema (a amada, o seu país, o destino da humanidade, etc.): é o que ele está pensando naqueles momentos em que se sente motivado a escrever.  Ele pode estar sujeito a emoções momentâneas de entusiasmo, raiva, desespero, euforia, espírito moleque e assim por diante.  Escreverá, naquela hora, movido por esse estado de espírito.  Nada o obriga a dar naquele poema uma opinião definitiva sobre algo.  Como dizia Drummond, “hoje ama, amanhã não ama”. Se produzir um poema hoje e outro amanhã, dizendo o por quê de amar ou de não amar, ambos os poemas, mesmo contraditórios, serão verdadeiros.

A poesia lírica é a impressão mental do presente do poeta, daquele estado emocional que o faz pegar na caneta. Emoções, o poeta as sente o tempo todo, como qualquer pessoa, mas há emoções que começam a se cristalizar em palavras, em imagens verbais, e é como se ele pensasse: “essa aqui eu consigo dar uma forma”. E ele pega na caneta. É uma poesia contraditória, porque o ser humano oscila o tempo todo entre emoções conflitantes. Meu exemplo preferido quanto a isto é a poetisa chilena Violeta Parra. Ela tem uma canção, “Gracias a la vida” (“Gracias a la vida / que me ha dado tanto...”) que é uma das canções mais belas de alegria de viver, capaz de ajudar a tirar alguém de uma depressão.  E escreveu outra, “Maldigo del alto cielo” (aqui: http://tinyurl.com/ocklytn), que é uma canção de maldição, de desespero, de chutar o balde e desistir do mundo. Qual das duas exprime os verdadeiros sentimentos da poetisa? Ambas.

Poetas sempre usaram o que Pessoa chamou de poesia dramática, mas geralmente se limitavam a ser um personagem; no máximo dois ou três, e mesmo assim parecidos, não-contraditórios. O Modernismo teve essa fator de libertação. Quando o poeta diz “eu”, não fala apenas em seu nome, fala em nomes de pessoas que ele nunca foi, mas que o leitor talvez tenha sido ou seja, e por isto se identifica.


Um comentário:

ode aos deuses disse...
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