terça-feira, 20 de maio de 2014

3503) Os slogans da Copa (20.5.2014)



Podem dizer que minha abordagem é preconceituosa.  Entre outras coisas, é a pura verdade.  Não tenho preconceito contra a Copa do Mundo, tenho contra a Fifa que a promove e que se parece com uma Máfia, uma Wall Street, uma limusine de mercenários, um valhacouto de cavalheiros-da-indústria, uma gangue de trambiqueiros de alto coturno. Não tenho preconceitos contra negros, judeus, homossexuais, índios, mulheres, contra quase ninguém. Tenho preconceito contra a Fifa. (Não devo pensar que sou melhor do que pessoa alguma.)

A Fifa promoveu uma votação/enquete para escolher 32 slogans, aqueles que são pintados nos ônibus das 32 seleções que disputarão a Copa no Brasil.  Não consegui descobrir como feita essa eleição, se foi com sugestões do público em geral, ou se se deveu à mesma comissão que criou o Fuleco. 

O slogan da nossa seleção é: “Preparem-se! O hexa está chegando!”. Brasileiríssimo, pois não se trata de “Vamos conquistar o hexa, passando por cima de pau-e-pedra!”. É tipo “estamos aqui, na piscina do hotel, e alguém ligou no celular dizendo que o hexa está chegando daqui a pouco, dependendo do trânsito e das manifestações”.  Corre, Neymar!

Alguns slogans são do tipo tiro-no-pé. Os belgas dizem: “Esperem o impossível!”. (Ao que os franceses, mais profissionais, afirmam: “O impossível não existe em francês”). Os uruguaios (logo eles, contumazes estragadores-de-festa) dizem: “Três milhões de ilusões, vamos lá, Uruguai!”. Tomara que fiquem na ilusão mesmo. Alguns recorrem à mitologia totêmica, como Camarões (“Um leão é sempre um leão”) ou a Costa do Marfim (“Os elefantes à conquista do Brasil”).

Vários países concorrentes revelam uma certa pressa ansiosa em afirmar que já realizou sua individuação do Self junguiano. Argentina (“Não somos um time, somos um país”), Colômbia (“Aqui não viaja um time, viaja um país inteiro!”), Equador (“Um compromisso, uma paixão, um só coração, é para ti, Equador!”), Alemanha (“Uma nação, um time, um sonho!”), Honduras (“Somos um povo, uma nação, cinco estrelas de coração”).

Pra não dizerem que sou só má vontade, gostei dos lemas do México (“Sempre unidos, sempre astecas”), do Japão (“Samurai, chegou a hora da luta”), de Portugal, realista e esperançoso (“O passado é história, o futuro é a vitória”). Acho que estou numa fase meio desencantada, mas me pergunto. Será que num mundo de mídia onde rolam tantos milhões de euros é tão difícil inventar um slogan que preste?  Se Lamartine Babo fosse vivo, ele entregava 32 frases impecáveis, em troca de um salário-mínimo, uma média de café-com-leite e um pão com manteiga. E o mundo onde isso acontecia era melhor do que o nosso.


domingo, 18 de maio de 2014

3502) Os derrotados (18.5.2014)



Somente os vencedores têm a sua história contada. Não existe tempo nem espaço na memória dos homens para a história dos que perderam, dos que ficaram pelo meio do caminho, dos que tentaram e não conseguiram. São a cara da humanidade; mas a própria humanidade os despreza. São a parte submersa do iceberg da história, do qual forçamo-nos a ver somente o que se eleva e se destaca, e fingimos que por baixo nada mais existe. Cadê a biografia dos que nunca subiram ao pódio, dos que perderam todas as eleições, dos que foram passados-no-rodo nas batalhas, dos que ficaram em décimo-primeiro lugar nas listas dos dez melhores, dos que buscados no Google dão zero hits? 

Toda história de sucesso é praticamente a mesma coisa, mas cada derrota e cada tragédia é mais individualizada, mais pessoal e mais de-carne-e-osso do que o mero triunfo.  Perguntem a Dante Alighieri, que já respondeu. É uma verdadeira assimetria filosófica que um escritor que publicou dez livros receba uma biografia e um pretendente a escritor que pensou em escrever dez livros e não o fez não receba sequer dez linhas de wiki.  Sem falar naqueles que escreveram livros trabalhosíssimos e deixaram a única cópia datilografada no banco traseiro de um táxi ou numa maleta esquecida na plataforma de um trem. 

O sucesso tem uma função meramente ampliadora, mas as histórias que conta não têm um grama sequer a mais do que as catástrofes de subúrbio, os naufrágios de piscina de quintal,  os apocalipses em plena adolescência, os hindemburgs que colecionamos na interminável infância.  Mandem parar a van em qualquer estrada lateral de qualquer interiorzão brabo, e detenham o primeiro transeunte que for passando, como faziam aqueles califas e vizires das mil e uma noites.  Ele lhes contará uma história pessoal que bem escrita deixaria um bilhão de mentes estremecendo mundo afora.

A vitória é um cheque pré-datado de imortalidade, mas sem fundos.  A derrota é o destino cósmico do universo: a extinção da humanidade, indivíduo por indivíduo, ou seja, a demissão da espécie por justa causa. O derrotado é aquele a quem coube receber em nome da espécie esse incômodo recado e essa ainda mais desconfortável eliminação.  Toda vitória é um adiamento; uma história só se conclui de fato quando atinge sua derradeira derrota, que para uns é a morte, para outros é a não-existência de alguma coisa depois dela. Humilhados, ofendidos, condenados da terra, desvalidos, quixotes visionários, drogados incorrigíveis, missionários que em oitenta anos deixam um resíduo de estalactite e cedem lugar ao próximo, artistas jamais ouvidos, vidas que encontraram uma linha reta na direção do fim.


sábado, 17 de maio de 2014

3501) Cinemas antigos (17.5.2014)



(ilustração: Paul Sandby)

O cinema foi uma novidade tecnológica que desembarcou no Brasil nos primeiros anos do século 20 e foi se espalhando. Nas cidades maiores, acho, estabeleciam-se perto dos teatros, por precisar de salas semelhantes. Mas, pelo Brasil afora, onde houvesse feira, quermesse, parque de diversões, espetáculos populares, tômbolas, rifas, pavilhões de jogos, iam surgindo as primeiras tendas ou salinhas de projeção, atraídas pela força gravitacional dessas diversões baratas.  Era o mesmo público, o mesmo espírito, o mesmo preço.

O que às vezes não lembramos é que o cinema foi precedido por projeções das Lanternas Mágicas e dos variados “...scópios” da época, que lidavam com imagens fixas, transparentes, coloridas, projetadas em grande tamanho em parede ou tela. 

Em sua saborosa História da Cidade do Natal (1947, pags. 265-266), Câmara Cascudo lembra o fenômeno no Rio Grande do Norte: 

“Havia o Cosmorama, vistas de cidades e costumes através de um vidro de aumento. Divertimento caro. Um tostão. Os melhores, vindos em 1888, exigiam quinhentos réis de entrada na Praça da Alegria. Depois apareceu a Lanterna Mágica, paisagens, figuras, cenas substituídas com relativa rapidez pela máquina. Ia muita gente boa, bem vestida, comentando o ‘espetáculo’”.

E depois: 

“Em 1906 Natal viu e gostou das descobertas sensacionais. Em abril o sr. Arlindo Costa com o Bioscópio, no teatro Carlos Gomes, vistas fixas e outras com movimento. Por exemplo – o Hotel Mal Assombrado. Em novembro veio Moura Quineau com uma máquina moderna. Quase cinema. O ‘Álbum Maravilhoso’ era um assombro. Em 1911 o primeiro cinema na praça Augusto Severo, Politeama, nome escolhido por eleição popular pelas página d’A República”.

No fim deste século, lá por 2090, quando forem escritas as histórias dos videogames, serão lembradas as máquinas de fliperamas, joguinhos de “arcade” e outras que já foram (ainda são um pouco) tão comuns em rodoviárias, aeroportos, galerias, shopping-centers, etc.  Diversões populares ao preço de uma fichinha, que vão aos poucos sendo substituídas por seus primos tecnológicos mais aperfeiçoados.

Ao reconstituir sua história, nem sempre percebemos que as tecnologias vão sendo trocadas como cobra troca a pele, mas os temas eternos retornam. Um tema clássico como o “Hotel Assombrado” mencionado por Cascudo passou do bioscópio para o cinema, deste para os games. Passará dos games para os joguinhos rádio-telepáticos do fim deste século.  Ao longo dessa linhagem, uma corrente incessante de influências, empréstimos, pequenas invenções de linguagem e de expressão, onde uma forma de arte, ao morrer, serve de alimento àquela que a substitui.  



sexta-feira, 16 de maio de 2014

3500) A Bíblia e o cordel (16.5.2014)




Nos meus tempos de menino, devo ter lido a Bíblia quase inteira, em parte por vontade de ir pro Céu, e em parte pela curiosidade (que sempre tive, ouvindo histórias antes mesmo de aprender a ler) de saber o que aconteceu no meio daquelas guerras entre reis, aquelas peregrinações, aquelas sagas de famílias a quem só aconteciam prodígios, aqueles milagres espantosos acontecendo com pessoas que não eram muito diferentes das pessoas da fazenda da Broca, do meu avô, ou do sítio Tatu.

Já comparei a Paraíba (por extensão, o Nordeste) à Grécia Antiga.  

Dois mundos retalhados entre faixas áridas e faixas férteis, cheios de montanhas misteriosas; povos de pastores e agricultores, envolvidos com seres sobrenaturais, com milagres e catástrofes inexplicáveis, com tragédias e epifanias que eles tentavam compreender e justificar através de longos poemas compostos e guardados de cor.  

O mesmo se dá com o mundo da Bíblia.  Andando pelos nossos sertões, nossas serras, nossos vales, nos deparamos a todo instante com um daqueles patriarcas do Velho Testamento, cuja única diferença para com os verdadeiros patriarcas hebreus é que ele leu o Velho Testamento e os hebreus provavelmente não, foram meros personagens.

Bob Dylan não foi o único poeta pop a recorrer à Bíblia em busca de temas entre o terrível e o sublime. Fez isso, também, em busca de uma dicção clássica, concentrada, que no idioma inglês se localiza na famosa Bíblia do rei James VI, do começo dos anos 1600.  

Outros poetas pop norte-americanos que volta e meia “chamam” o vocabulário, os temas e as imagens bíblicas são Leonard Cohen, Allen Ginsberg. Mais do que um fenômeno de crença religiosa, é uma questão de fé literária. Todos sabem que aquilo é uma essência concentrada de verdade literária.

A Bíblia é um melelê de gêneros. Crônicas históricas, lendas heróicas, poemas, provérbios, profecias, epistolário (conjuntos de cartas), livros de preces... 

O nível poético de livros como os Salmos de Davi, o Livro dos Provérbios, o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, é impressionante – uma poesia que salta com facilidade do concreto para o abstrato, da fotografia de uma planta ou um animal correndo sobre as pedras para, na linha seguinte, uma reflexão sobre Deus e o mundo.  

E chego agora ao meu tema: seria interessante uma análise estritamente poética da influência da linguagem bíblica sobre a poética dos cantadores e cordelistas. Vocabulário, figuras de linguagem, estrutura de versos, repetição interna de estruturas sintáticas para efeito poético... 

Que os poetas liam muito a Bíblia é fato corriqueiro. Que traços estilísticos a Bíblia deixou em sua poética?







quinta-feira, 15 de maio de 2014

3499) O filme de Clodoaldo (15.5.2014)



Clodoaldo era dono de um bar pros lados de Bodocongó, rodeado pelo campus da UFCG. Era amigo dos estudantes. Aprendeu na carne e no sangue o que é permitir um caba liso assinar um vale. Mas era uma alma boa, inteligente, lia muito, gostava de papo, e era tão maluco quanto qualquer universitário. 

(Quem segurava as pontas financeiras do bar era a mulher dele, que ele chamava de Receita Federal: “Vocês podem beber em paz aí, que a Receita Federal tá contabilizando tudo.”)

Clodoaldo ganhou uma quadra da Mega-Sena e resolveu dirigir um curta. Chamou o pessoal do curso de Arte & Mídia para trabalhar na equipe, prometendo pagar “tabela do sindicato”. 

O pessoal foi, mais pela curiosidade e pela farra, mas os problemas começaram no roteiro. Cadê o roteiro, Clodoaldo? “Tá todo aqui,” dizia ele subitamente sério, com o indicador apontando a têmpora, firme como um revólver. Qual era a história? Um dia ele dizia: “É uma interpretação urbana do cangaço e da cultura da mandioca.”  Tempos depois, dizia: “É uma guerra entre uma família pobre e uma família rica.”  Noutro dia era: “É a história de um cara que tudo que faz dá errado.”

Na primeira semana de filmagem, ele disse a Duda, o fotógrafo: “Essa cena eu quero com a câmara em cima de um ônibus”. 

Duda: “Mas não são duas pessoas conversando? Melhor a câmara parada.” 

Ele: “A gente combina com o motorista pra passar bem devagarinho.” 

Duda: “Mas por que tem que ser o ônibus?” 

Ele: “Eu acho tão bonito, uma câmara em cima de um ônibus!”

Ele inventou de filmar uma briga de faca em que cada vez que uma faca batia na outra se ouvia um tiro de revólver, mas recusou edição no estúdio, a sincronização tinha que ser feita na hora, com um cara mais atrás disparando cartuchos na hora certa. “Dá muito trabalho, Clodoaldo”. E ele: “Tudo que é bem feito dá trabalho. Vocês pensam que isso aqui é Hollywood, onde tudo é facilitado?!”.  

Clodoaldo sujou o prontuário policial de toda a equipe ao invadir a Prefeitura com um grupo de cangaceiros (“tem que ser sem pedir licença, quero espontaneidade”). Discussões acaloradas em cada dia de filmagem. Câmara de cabeça pra baixo (“pra simbolizar a inversão de valores morais”).

Quando o filme ficou pronto, foi inscrito num festival na Alemanha. Mas o dinheiro da Quadra já tinha acabado, e Clodoaldo não pagou a ninguém. 

O pessoal rompeu com ele, e passou a beber no bar de Dionísio, que era perto. Por vingança, nem avisaram a Clodoaldo quando receberam a notícia de que o filme tinha ganho o prêmio especial da crítica. “Quem manda ser xexeiro?”, resmungava Duda. “E se ele se animar, vai querer fazer um longa e aí lascou-se tudo.”






3498) Palavras intraduzíveis (14.5.2014)



(alemão: "Uma cara que tá pedindo pra levar um murro")

Este saite (http://tinyurl.com/qbl6zgw) tem 23 ilustrações interessantes baseadas num conceito que sempre me fascina: palavras que existem numa língua mas não em outras. A gente tem a noção meio ingênua de que para tudo existe uma palavra específica, mas a verdade é que toda língua tem termos que só podem ser traduzidos com longas explicações e circunlóquios. Eis alguns exemplos:

Fernweh (alemão) – sentir saudade de um lugar onde nunca se foi. 

Papakata (Ilhas Maori) – ter uma perna mais curta do que a outra. 

Tingo (ilha da Páscoa) – furtar gradualmente todas as posses de um vizinho, apenas pedindo emprestado e não  nãnão não o devolvendo. 

Tsundoku (japonês) – o ato de deixar um livro sem ler, depois de comprá-lo, tipicamente guardando-o junto a outros livros na mesma condição. 

Waldeinsamkeit (alemão) – a sensação de estar sozinho num bosque.

Pochemuchka (russo) – uma pessoa que faz muitas perguntas. 

Aware (japonês) – a sensação doce-amarga de um momento breve e passageiro de beleza transcendental. 

Gattara (italiano) – uma mulher idosa e sozinha que se dedica a gatos perdidos. 

Won (coreano) – a relutância, da parte de uma pessoa, de abandonar uma ilusão. 

Ilunga (tshiluba) – uma pessoa disposta a perdoar qualquer tipo de abuso pela primeira vez, tolerá-lo uma segunda vez, mas nunca uma terceira. 

Prozvonit (tcheco) – o ato de ligar para um celular e dar apenas um toque, para que a outra pessoa ligue de volta, fazendo-nos economizar dinheiro ou créditos.

Note-se que não é a sensação ou a idéia que são intraduzíveis, pelo contrário, em geral são noções que entendemos facilmente. Mas não temos uma única palavra para exprimir essa idéia. Mais ou menos. A pessoa que tem uma perna mais curta do que a outra é chamada no Nordeste de “29-30”, não sei porque (talvez para indicar numericamente a pequena diferença entre as duas). Gente que faz muitas perguntas é “perguntador”. Nos outros casos (e nos demais termos que não transcrevi aqui), não tem jeito, é preciso uma descrição. Não temos palavras diretas.

Esta é uma das muitas questões delicadas que um tradutor precisa enfrentar, porque mesmo uma língua tão familiar a nós como o inglês está cheia de pequenos substantivos ou verbos que lá são usados com toda naturalidade mas para os quais o português não se deu o trabalho de criar um equivalente em escala 1:1.  Quando um termo assim aparece, obriga-nos a alongar explicativamente uma frase que tinha outro ritmo, outro formato, outra intenção. Às vezes até passa, com autores de prosa mais diluída e extensa; mas naqueles prosadores onde tudo é exato, tudo é compacto, tudo é ritmicamente encaixado e preciso... aí o bicho pega.


terça-feira, 13 de maio de 2014

3497) Jair Rodrigues (13.5.2014)



O Brasil chorou a morte de Jair Rodrigues, aos 75 anos, com aquela ponta de remorso de toda platéia que empurrou um artista para a prateleira dos fundos e só lembra das suas qualidades quando percebe que o perdeu. Sou um desses, porque, embora não ficasse imune à simpatia pessoal e ao talento do cantor, não ouvia um disco inteiro dele há mais de trinta anos.  Fazer o quê?  O Brasil é assim. Ninguém pode ser novidade de novo a cada ano, embora alguns tentem heroicamente. O lado positivo é que, na música brasileira, quem foi muito famoso durante alguns anos conseguirá viver de shows eternamente, se souber cuidar da própria agenda. Quando viajo pelo interiorzão do Brasil, nunca deixo de ver faixas ou cartazes no clube local anunciando o show de alguém cujo nome não aparece na TV há décadas. O Brasil é grande, e uma fama residual, bem administrada, dura pelo resto da vida.

O primeiro grande momento de Jair foi a “Disparada” de Geraldo Vandré e Théo, que ele defendeu num festival com um vigor poucas vezes visto. Foi aquele caso feliz do intérprete ideal para uma música diferente. Campeã do festival junto com “A Banda” de Chico Buarque, ela mostrou naquele momento de intensa renovação que a música regional era uma fonte inesgotável de vigor, com uma potência épica que estava sendo redescoberta por músicos como Sérgio Ricardo, Edu Lobo e outros.

Outro grande momento de sua carreira foi seu programa de TV ao lado de Elis Regina. Mais uma vez, o caso feliz de dois intérpretes de gosto musical parecido e estilo parecido: exuberante, pra-fora, a plenos pulmões. Ver os dois juntos na TV, para minha geração, produzia uma irresistível vontade de correr para o violão mais próximo e tentar compor algumas músicas. Felizmente obedeci a este impulso.

O terceiro momento marcante de Jair foi a famosa “Deixe que digam, que pensem, que falem... Deixa isso pra lá, vem pra cá, quê que tem... Faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?”.  Era o “samba da mãozinha”: Jair marcava o ritmo com um vaivém da mão espalmada que para alguns tinha um sentido obsceno mas que na verdade era apenas o suingue musical de quem canta (e rege a banda) com o corpo inteiro. Como Lenine me mostrou anos depois, foi o nosso primeiro “rap”, nossa primeira música canto-falada (OK, pode ter havido outras antes, mas foi a primeira para nossa geração). Era ainda samba mas já era alguma coisa além do samba.  Mais uma vez, um intérprete incontrolavelmente expressivo que projetava em diferentes ritmos e gêneros uma maneira pessoal de fazer as coisas. Jair teve nesses momentos a criatividade e os recursos técnicos para tornar seus esses diferentes tipos de canções alheias.


domingo, 11 de maio de 2014

3496) O Eu poético (11.5.2014)



Fernando Pessoa defendeu em inúmeros textos em prosa (e até em poemas) o conceito de poesia dramática, a poesia que em vez de ser uma confissão intensamente pessoal do autor é uma poesia meio teatralizada, onde o autor inventa pessoas e situações e fala em nome desses personagens imaginários. Ele fez isto há um século, mas grande parte das pessoas que leem poesia continuam presas a um conceito de Eu Poético que resulta de uma compreensão limitada do lirismo. Vejo muita gente dizer: “Fulano faz poesia lírica, então tudo que ele está exprimindo são os verdadeiros sentimentos dele”. 

O Eu Poético não é uma afirmação de opiniões, é a investigação momentânea de estados emocionais.  Não é o que o poeta pensa oficialmente sobre aquele tema (a amada, o seu país, o destino da humanidade, etc.): é o que ele está pensando naqueles momentos em que se sente motivado a escrever.  Ele pode estar sujeito a emoções momentâneas de entusiasmo, raiva, desespero, euforia, espírito moleque e assim por diante.  Escreverá, naquela hora, movido por esse estado de espírito.  Nada o obriga a dar naquele poema uma opinião definitiva sobre algo.  Como dizia Drummond, “hoje ama, amanhã não ama”. Se produzir um poema hoje e outro amanhã, dizendo o por quê de amar ou de não amar, ambos os poemas, mesmo contraditórios, serão verdadeiros.

A poesia lírica é a impressão mental do presente do poeta, daquele estado emocional que o faz pegar na caneta. Emoções, o poeta as sente o tempo todo, como qualquer pessoa, mas há emoções que começam a se cristalizar em palavras, em imagens verbais, e é como se ele pensasse: “essa aqui eu consigo dar uma forma”. E ele pega na caneta. É uma poesia contraditória, porque o ser humano oscila o tempo todo entre emoções conflitantes. Meu exemplo preferido quanto a isto é a poetisa chilena Violeta Parra. Ela tem uma canção, “Gracias a la vida” (“Gracias a la vida / que me ha dado tanto...”) que é uma das canções mais belas de alegria de viver, capaz de ajudar a tirar alguém de uma depressão.  E escreveu outra, “Maldigo del alto cielo” (aqui: http://tinyurl.com/ocklytn), que é uma canção de maldição, de desespero, de chutar o balde e desistir do mundo. Qual das duas exprime os verdadeiros sentimentos da poetisa? Ambas.

Poetas sempre usaram o que Pessoa chamou de poesia dramática, mas geralmente se limitavam a ser um personagem; no máximo dois ou três, e mesmo assim parecidos, não-contraditórios. O Modernismo teve essa fator de libertação. Quando o poeta diz “eu”, não fala apenas em seu nome, fala em nomes de pessoas que ele nunca foi, mas que o leitor talvez tenha sido ou seja, e por isto se identifica.


sábado, 10 de maio de 2014

3495) Mini-contos de terror (10.5.2014)




(Minha contribuição ao gênero chamado Dark Quarks – contos de terror em duas frases.)

1) Na esperança de engravidar, ela recitou preces, fez simpatias, preparou um berço, e toda noite ia olhar para ele. Uma noite havia alguém lá. 

2) O chão cedeu durante a fuga e ele afundou até a cintura numa lama espessa.  Quando tentou nadar seus braços ficaram presos. 

3) Quando a luz do elevador apagou, ele ficou aborrecido.  O medo só começou quando ouviu um rangido profundo e o elevador começou a mover-se lateralmente, cada vez mais depressa.

4) Ao enfiar o pé na bota esquerda e amarrar os cadarços experimentou com prazer aquela sensação protetora. Ao enfiar o outro, sentiu a ferroada na sola do pé. 

5) Ele morava sozinho, e levantou no meio da noite para atender as insistentes batidas na porta da frente. Somente ao acender a luz da sala viu o braço descarnado que começava a se enfiar por baixo da porta. 

6) Ele percebeu que tinha se perdido na caatinga, e desceu do jipe para se orientar pelas estrelas. Quando o jipe arrancou sozinho, começou o rumor na mata.

7) Morando à beira de um bosque, sempre achou que seus inimigos eram os lobos. Até o dia em que fugindo de um lobo caiu dentro de um poço vazio e aí começaram seus problemas. 

8) O poema saiu inteiro, num jato, como se já viesse pronto, uma, duas páginas, os dedos voando no teclado, perfeito. “Deseja salvar as alterações?” “Não”.

9) Brincando no parque, a garotinha foi seguida por um homem mal encarado. Assustada, pediu carona no carro de uma moça, respirou aliviada, mas a motorista parou o carro na esquina e o homem entrou no banco traseiro. 

10) A festa do casamento foi divina, a viagem agradável, o hotel da lua-de-mel era um paraíso. Mas ela não esperava que na suíte nupcial estivessem quatro amigos do marido, fumando e bebendo, à espera.

11) Acordou num lugar desconhecido, numa cama de metal, coberto de ataduras ensanguentadas. Antes que pudesse sequer pensar, um celular começou a tocar dentro do seu estômago. 

12) O quarto à noite começou a se encher de mosquitos formando uma nuvem alongada, quase sólida. A nuvem esvoaçou até perto da cama e desligou o ventilador para ficar mais à vontade. 

13) Ao ouvir o terceiro sinal, ajeitou o black-tie, o smoking, flexionou os dedos e dirigiu-se para o palco, pressentindo rumor de casa cheia. Chegando ao proscênio, deparou-se com mil e duzentos caiapós armados e pintados para a guerra. 

14) Uma ventania súbita e um vozerio na rua o levaram à janela, de onde avistou a praia, seca, numa extensão de centenas de metros. Procurou o mar com os olhos e o viu no horizonte, erguendo-se até a metade do céu, como uma naja armando o bote.


sexta-feira, 9 de maio de 2014

3494) Reescrever os clássicos (9.5.2014)



Rola na internet uma polêmica sobre a edição de obras de Machado de Assis, reescritas para alcançar um público mais amplo, substituindo palavras consideradas difíceis, como “sagacidade”, por palavras como “esperteza”.  A intenção é tornar Machado mais conhecido pelas gerações mais jovens, as quais, por motivos que nem adianta começar a discutir num espaço tão curto, têm um vocabulário pequeno. (Por alguma razão, autoridades sempre acham que a melhor maneira de curar o vocabulário reduzido dos leitores é obrigar os escritores a diminuírem o seu.)

Gosto de ver adaptações de obras literárias para o cinema, o teatro, a ópera, as histórias em quadrinhos, os videogames e assim por diante. Geralmente acho que o resultado das adaptações é ruim, mas isso não cancela a importância da tentativa. Temos inclusive livros com adaptações destinadas aos jovens, feitas por Paulo Mendes Campos, Orígenes Lessa, Monteiro Lobato, muita gente boa. Mas nessas edições sempre se fez uma ressalva, enfatizando termos com “adaptar”, “recontar”, “nas palavras de”, etc.  Sempre que peguei um desses livros, sabia que não era o original. O perigo, creio, está em começar a publicar as obras de Machado de Assis sem a prosa de Machado de Assis, e atribuir o resultado a ele.

Machado é as-palavras-de-Machado, assim como Van Gogh é as-pinceladas-de-Van-Gogh. A arte de um escritor é feita de suas escolhas verbais, sua opção por palavras comuns ou extraordinárias, seu modo de organizar as frases, os termos específicos e bem pensados que ele emprega, sempre com intenção estética. Todas as pessoas que leem e entendem Machado de Assis viram algum dia essas palavras pela primeira vez, não entenderam, tentaram deduzir pelo contexto, e foram em frente. Ninguém entende uma palavra nova na primeira vez que a encontra. É preciso a repetição, em outros contextos.  Se tirarem isso do leitor, que chance de aprender lhe restará?

Mexer nisso pode ter intenções didáticas, mas deve-se deixar claro ao leitor que aquilo é a adaptação de uma obra de Machado, não é o livro que Machado escreveu. Vai dar certo? Sei lá.  Talvez estejam, com a melhor das intenções, formando uma geração de pessoas incapazes de ler Machado de Assis.  Ler Machado é acessar o vocabulário de Machado, as figuras de linguagem de Machado, o tornear das frases que ele fazia como ninguém. E que é preciso tempo para assimilar, entender, ser capaz de saborear. Eu não gostaria de ver Capitu, a “cigana oblíqua e dissimulada”, ser transformada por um redator qualquer em “cigana indireta e fingida”. Porque quando uma coisa começa desse jeito, é desse jeito que acaba.