terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

3431) Estação Botafogo (25.2.2014)




O Cineclube Estação Botafogo (sinto muito, só sei chamá-lo assim) está ameaçado de fechar, por dívidas e outros problemas.  Ele foi no Rio de Janeiro, nos anos 1980, o que a Cinemateca do MAM tinha sido quinze anos antes. Multidões superlotavam aquela calçada estreita para rever Blade Runner numa época em que ele não estava acessível na torneira de cada computador. Íamos todos atraídos pelos mesmos filmes, filmes imprevisíveis que imantavam pessoas afins. Foi saindo de uma sessão de Billy Liar de John Schlesinger que encontrei com Homero de Carvalho (hoje na Fiocruz) e o poeta/publicitário Ulisses Tavares, meu “primo”, e pude fazer esta apresentação histórica: “Homero, este é Ulisses. Ulisses, este é Homero”; e fomos tomar cerveja. 

Nos distantes anos 1980 não havia a atual proliferação de bares dali até a Praia de Botafogo, e os poucos balcões disponíveis eram tão disputados quanto as últimas poltronas nas sessões de despedida (quando uma cópia em celulóide cujo certificado de censura estava para vencer era exibida pela última vez antes de ser incinerada. O mundo já foi mais absurdo.)

O Estação, contudo, não é apenas a memória afetiva de todos nós. Era para mim, recém-chegado ao Rio, a revelação de uma realidade empresarial que jamais teria passado pela minha cabeça.  Coincidiu com outras iniciativas da rapaziada carioca que fizeram um sucesso estrondoso, tais como o Circo Voador e o Planeta Diário, todos decolando quase ao mesmo tempo. Era possível fazer sucesso e ganhar dinheiro fazendo o que cada um gostava, e atraindo um público capaz de gostar também e de entender tudo. 

O Estação precisa sobreviver.  O mercado precisa dele, precisa de grupos capazes de criar os sucessos do futuro, e não apenas de realimentar os blockbusters que já chegam pagos lá de fora. Foram as sessões no Estação que fizeram Down by Law de Jim Jarmusch ser batizado em português Daunbailò, porque os fãs não admitiam outro nome.  E senti ali a força que um movimento de fãs, intenso, diversificado, pode exercer num mercado onde se aposta somente no que é “tiro certo”.  Não penso apenas no passado distante; onde mais eu teria podido ver They Live e Holy Motors em 2013, senão ali? 

Festivais, mostras, coleções de livros, revistas de cinema, tudo se expandiu ao mesmo tempo pela existência comprovada e crescente daquele mercado. E as outras salas e outras redes de exibição acabaram sendo beneficiárias desse público. Não é o público do Homem Aranha ou X-Men, mas é um público que hoje permite filmes mais complexos e de apelo menos ruidoso se manterem em cartaz e darem dinheiro inclusive aos concorrentes do Estação.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

3430) Histórias de espiões (23.2.2014)



O romance de espionagem teve seu “boom” a partir dos anos 1960, auge da Guerra Fria, mas já vem de longe. Se brincar, remonta até a Baronesa de Orczy e suas aventuras do “Pimpinela Escarlate” ajudando nobres a fugirem da guilhotina durante a Revolução Francesa.  Muitos escritores ilustres não apenas escreveram romances de espionagem, como também trabalharam como espiões para a Inglaterra – foi o caso de Somerset Maugham na I Guerra Mundial e de Graham Greene na segunda.

É de Maugham o romance Ashenden – o Agente Secreto (1928), na verdade um “fix-up” – conjunto de narrativas unificadas mediante um personagem, tema ou ambientação.  (O livro serviu de base para o filme homônimo de Hitchcock.) O protagonista é um escritor convocado para ajudar o Serviço Secreto britânico na Europa durante a Guerra. Suas missões incluem vigiar pessoas, facilitar contatos, mas também ajudar na execução de um ou outro agente inimigo. Não é uma leitura para os fãs de Ian Fleming ou de John Le Carré, que turbinaram a dramaticidade do gênero em termos de suspense, intensa movimentação, enredos intrincados como armações de xadrez. Maugham se baseou em suas experiências, e o livro tem aquele teor meio vago e inconcluso dos acontecimentos da vida real.

Quem foi grande fã do livro foi Raymond Chandler, para quem (em 1949) o romance de Maugham estava “muito à frente de qualquer outra história de espionagem já escrita”, e chegou a pedir ao seu editor inglês uma cópia autografada (e conseguiu). Disse ele: “É como se houvesse o tempo inteiro algo vago e sinistro por trás das cortinas. Na maioria dos outros livros, você apenas tem medo do cara com um revólver.”

Além do jogo político-ideológico, sempre tenso e interessante, o romance de espionagem, melhor do que qualquer outro, explora essa sensação imprecisa de perigos invisíveis, intenções duplas ou triplas por trás de cada ação, dúvida constante sobre cada personagem. Em Ashenden, a espionagem é o reino do mistério constante, onde o agente segue as instruções sem saber ao certo para que servem, ou o quê, precisamente, está em jogo.

A trilogia recente de William Gibson, da qual já foram traduzidos aqui Reconhecimento de Padrões e Território Fantasma, recupera essa sensação de aventuras individuais arrastadas em conspirações globais invisíveis, as tramas “vagas e sinistras” a que Chandler se refere.  A onipresença da Web como instrumento de manipulação resulta em histórias como “Maneki Neko” (1998) de Bruce Sterling, em que, como Ashenden, o protagonista cumpre ações que não entende, para dar seguimento a uma manobra internacional onde não passa de um simples peão.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

3429) O que não vou ver (22.2.2014)


Peguei um táxi em João Pessoa e fui conversando com o motorista. O celular tocou, ele cortou a ligação, e começamos a falar sobre a utilidade dos celulares. Daí a pouco estávamos imaginando como seriam os celulares do futuro. E nesse momento Zé Antonio, ou Zeca (como ele é mais conhecido) falou: “Quer saber de uma coisa?  Todo mundo tem saudade do tempo antigo, do que já passou.  Pois eu não.  Eu tenho saudade do que eu não vou ver.”  E eu entendi na hora, porque é exatamente isso que eu sinto às vezes: a nostalgia de saber que depois da minha morte o avanço da ciência vai continuar, novas descobertas e invenções vão surgir, coisas interessantes vão pipocar por todos os lados, diariamente, e eu não vou estar aqui para arregalar os olhos feito um menino e dizer: “Eita!”

A saudade é uma sensação de perda (como dizia Pinto do Monteiro – “saudade só é saudade quando morre a esperança”), e não é só o passado irrecuperável que a gente perde, é também o futuro inatingível. E ninguém pode nos proibir de chamar “saudade” a essa angústia pela perda de um futuro que, por definição, vai nos sobreviver. É uma saudade antecipada que brota em quem gosta da vida, quem acompanha as coisas do mundo – seja os campeonatos de futebol, os filmes que ganham o Oscar, as eleições, as conquistas espaciais, os novos livros, as novas músicas... Que infinidade de coisas boas eu não vou perder, somente porque não estarei mais aqui?

Numa coluna de anos atrás (aqui: http://bit.ly/1gAye5F) sobre o Tempo, propus uma definição pessoal: “O Passado é tudo aquilo que ocorreu antes do meu nascimento. O Presente é tudo que começou a ocorrer desde então. E o Futuro é tudo que irá ocorrer após o instante da minha morte.”  Nosso Tempo de vida é um presente contínuo (pois a única realidade que de fato experimentamos é o presente, o aqui-e-agora), inundado de referências do passado e de expectativas pelo futuro.  Quando temos saudade da infância temos saudade de um “passado presente”, pois somos capazes de lembrar dele agora. E quando pensamos no que vamos fazer no ano que vem, é um “futuro presente”, que já nos alegra com suas coisas boas ou já nos influencia com seus problemas.

Futuro mesmo é o que virá depois. Luís Buñuel, em seu livro de memórias Meu Último Suspiro, dizia que gostaria de, depois da morte, poder se levantar do túmulo de 10 em 10 anos, ir à banca, comprar o jornal, e voltar para o cemitério lendo e dando risadas das novas formas da estupidez humana.  O autor de O Fantasma da Liberdade também sentia essa saudade do que nunca chegaremos a ver, dos séculos infinitos cuja porta está para sempre trancada diante da nossa cara.



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

3428) A Vida e os Tempos de Mauricinho Caô (21.2.2014)



Cap. 1 – De como Mauricinho Caô nasceu de 7 meses em berço de ouro, e foi criado como príncipe-de-gales até os 7 anos, na mansão de seu pai, dono de uma indústria de semáforos, em Vila Mariana.  

Cap. 2 – De como as incompetências governamentais e a condição de capitalismo periférico em um país subdesenvolvido (segundo o pai dele) conduziram a família à ruína, ao desespero, e a uma casa de um só andar e apenas quatro quartos em Vila Madalena.  

Cap. 3 – De como a “nova vida, mais realista” (segundo a mãe dele) teve influência direta no cardápio, no mobiliário e no figurino de todos da família, menos no de Mauricinho, que, sendo o caçula, continuou sendo tratado a pão-de-ló pelos pais e pelas três irmãs mais velhas e eternamente solteiras. 

Cap. 4 – De como o destino dele foi determinado quando conheceu seu primeiro motel aos 22 anos, ao lado da filha de um deputado, que tinha 38 e era mais fatal do que um Smith & Wesson. 

Cap. 5 – De como Mauricinho esteve à altura desse combate e nos anos seguintes não fez outra coisa senão voltar a travá-lo, com socialites de variada estirpe, até virar assessor em Brasília com belo salário, verba de representação e ajuda-de-custo/moradia.  

Cap. 6 – De como alguém teve a infeliz idéia de conseguir para Mauricinho uma vaga de assessor diplomático de embaixada, logo onde, no Afeganistão. 

Cap. 7 – Dos primeiros doze meses que Mauricinho passou naquele inferno de sol, poeira e novas experiências olfativas.  

Cap. 8 – De como Mauricinho foi raptado sem querer por extremistas talibãs , que nada queriam com ele, queriam apenas a van em cujo portamalas ele se escondeu  ao começar o tiroteio durante a travessia do deserto de Kalamashiri.  

Cap. 9 – De como, descoberto, Mauricinho pediu pelo amor de Alá que não o matassem, e jurou fé no Alcorão com tamanho fervor que os hirsutos e maltrapilhos guerrilheiros se entreolharam, se comoveram, e o cobriram de beijos de solidariedade islâmica.

Cap. 10 – De como a chegada de Mauricinho coincidiu com uma complicada conjunção lunar e sideral que prometia algo como um messias (segundo algumas versões) ou farta colheita de papoulas (segundo outras).  

Cap. 11 – De como Mauricinho deixou a barba crescer, visitou Meca, aprendeu a usar armamento pesado, impressionou os talibãs com seu conhecimento de Geografia, reuniu um exército de dez mil homens e invadiu o Paquistão, onde foi fragorosamente derrotado, conduzido a Guantánamo, interrogado, e, sabe Deus como, perdoado no ato, condecorado pelo presidente Obama, e retornou ao Brasil como representante de uma firma de escuta eletrônica sediada, logo onde, em Vila Mariana.


3427) Autores meticulosos (20.2.2014)




(manuscrito de Kafka)

Li na adolescência uma frase de Kafka que volta e meia recordo. Era mais ou menos assim: “Escrever é trabalhoso.  Quando consigo colocar uma palavra no papel, não tenho senão esta, e tudo recomeça.”  

Para autores assim, como o próprio Kafka, Raymond Chandler, Georges Perec, escrever é como levantar um muro. Tem que fabricar um tijolo. Colocá-lo no lugar. Depois fabricar o tijolo seguinte. E por aí vai.  

É o contrário da impressão que eu tenho de certos autores (Nelson Rodrigues, Henry Miller, Jack Kerouac, Chesterton, Walter Gibson que escrevia a série The Shadow) para os quais escrever é sinônimo de abrir uma torneira: já está tudo pronto para ser escrito, o único trabalho é controlar o fluxo.

De um lado da rua, moram os autores meticulosos cuja escrita é um avanço penoso mas seguro, onde a cada dia de trabalho são produzidas algumas linhas, mas pelo menos se supõe que serão definitivas. 

Na calçada oposta moram os autores fluentes, caudalosos, que redigem dezenas de páginas num dia de atividade veloz e ininterrupta. Estes – descontando-se, sempre, os que visam apenas a quantidade sem qualidade – parecem ter um mecanismo automático de escolha que faz sua prosa fluir sem maiores considerações caso-a-caso. Quase como se, tendo descoberto uma maneira original, espontânea e variada de dizer o que pretendem, eles já a tivessem automatizado a ponto de produzi-la sempre que necessário, sem muita reflexão.

Robert Silverberg (autor de Uma pequena morte, Crônicas de Majipoor) conta que teve duas fases distintas em sua carreira. Na primeira foi de uma produtividade recorde: 

“Eu escrevia com espantosa rapidez, vendendo quinze histórias em junho de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (incluindo uma serialização em três partes) no outro mês.”  

Tempos depois, ele dizia: “Tornei-me como os outros mortais, e tenho que redigir duas, ou três, ou às vezes dez versões de cada página antes de poder fazer a datilografia final.”

Silverberg foi promovido da energia perdulária da pulp fiction para a contractividade criadora da arte. Tornou-se um artista mais denso e mais complexo,  para os que acham que quanto mais cerebral mais artístico – questão ainda em aberto. 

A autoconsciência do autor que recebe o upgrade de uma pulp fiction para uma New Wave paga o preço de uma teorização filosófica para cada frase. Por que este plano e não outro?, perguntava Jean-Luc Godard, brechtianamente, estancando o fluxo do delírio e mandando os diretores pensarem. Por que esta palavra? pergunta Kafka. 

E depois de longas assembléias com seus heterônimos ele concorda que a palavra é mesmo aquela. Escreve-a no papel. E tudo recomeça.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

3426) Lima Barreto: ser doutor (19.2.2014)




Tempos atrás houve um bafafá num edifício residencial do Rio porque um morador, que era juiz ou advogado, discutiu com um empregado do prédio por algum motivo, e se irritou quando o rapaz o chamou de “Seu Fulano” em vez de “Doutor Fulano”. 

O caso foi parar na polícia, na imprensa e nos tribunais, onde finalmente surgiu uma sentença afirmando que ninguém era obrigado a chamá-lo de doutor somente porque ele tinha curso superior. (Há um certo consenso de que “doutor” não é quem é advogado ou médico: é quem tem doutorado, e fim de papo.)

Nesse titulozinho se esconde, por um lado, a empáfia dos bem-nascidos a quem sempre se destinou o ensino superior no país, e, por outro, a ânsia de ascensão social dos humilhados e ofendidos que acham que um anel no dedo e um diploma na parede irão branquear sua pele e europeizar seu sobrenome. 

Ninguém exprimiu com mais ironia essa sofrida ilusão do que Lima Barreto (ele também mulato e pobre) em Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), quando o personagem prepara sua ida para o Rio de Janeiro, onde pensa ter garantido um emprego e a possibilidade de custear seus estudos. 

Diz Isaías, no capítulo 1:

“Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro. (...)  Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos... (...) De posse dele, as gotas de chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor?”

Não há como não perceber, no episódio do prédio carioca, a razão da ansiedade com que esse bacharel arrogante exigia dos demais o tratamento mágico. Como tantos brasileiros, como o alferes de Machado em “O espelho” (que sem o uniforme tornava-se invisível) ele próprio achava que não era nada, e que só o título poderia resgatá-lo do nada.


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

3425) O entretenimento (18.2.2014)



O entretenimento é aquela parte da cultura (“cultura” entendida aqui como “qualquer sinal da presença humana no planeta”) que nada questiona, nada exige: só quer dar prazer.  É uma atividade legítima, mas pode se tornar tão viciante quanto esses tiragostos químicos tipo Cheetos, Pringle, Ruffles, etc.: coquetéis de estimulantes do paladar, concebidos para gerar um consumo compulsivo.

Qualquer entretenimento é cultura, e qualquer atividade cultural pode servir de entretenimento. A música, p. ex., vem servindo como entretenimento “gratuito” através de shows em praça pública, mediante cachês astronômicos.  Se uma prefeitura paga 300 mil reais por um show não vai ter verba para apoiar folguedos populares, realizar festivais de curta-metragem (o “cinema que não dá lucro”), patrocinar mostras de teatro, realizar concursos literários, etc. O tal entretenimento vira um câncer da cultura, crescendo descontroladamente e ameaçando o resto. Ele se expande porque essa é a natureza de qualquer indústria de grande retorno financeiro. No caso dos governos, o retorno é eleitoral: divirta o povo e ganhe o seu voto; faça o povo pensar e você tem um problema em mãos. Sempre foi assim.

Não sou contra o entretenimento. Ele é a beirinha de cultura que resta aos exaustos, aos esgotados, aos embrutecidos por um dia inteiro de trabalho estafante e sem sentido, sem falar nas horas intermináveis de ida e volta nos trens desconfortáveis e nos ônibus repletos. Se eu passasse o dia assim, quando chegasse em casa de noite não ia querer ler um romance difícil. Ia desabar na frente da TV, que ainda é a forma mais simples de coma induzido.

O entretenimento, porém, se esgota em si mesmo, não deixa nada além do alívio momentâneo que produz. Passado o alívio, retornam os problemas de sempre, e continuamos sem saber como encará-los. Existe, porém, uma cultura que encara esses problemas. Para ser apreciada, ela requer a mobilização plena do nosso espírito, da nossa inteligência, da nossa empatia, da nossa emoção, da nossa capacidade de levar a vida a sério e questionar as coisas. 

Não sou contra a festa, mas a vida não é só festa. (A não ser que você seja filho de um milionário mão-aberta.) A festa ajuda a viver, para quem tem uma vida sofrida: perguntem a quem faz maracatu ou coco na Zona da Mata. Mas esse entretenimento pode se adensar em um tipo de cultura que nos envolve de todas as formas, nos estimula e nos desperta aquela inquietação boa de quando a gente começa a intuir respostas para as perguntas importantes da vida. O entretenimento ajuda o tempo a passar mais depressa; a cultura garante que ele não passe em vão.


domingo, 16 de fevereiro de 2014

3424) Os começos de Lovecraft (16.2.2014)




(Ilustração: Abigail Larson)


A gente fala de vez em quando sobre “como começar um conto” (ou um romance), sempre de acordo com aquela idéia de que é preciso fisgar o leitor desde o início, impedir que ele pule adiante e vá ler outra coisa.  

É um conselho que se encontra em muitos manuais respeitáveis de escrita, com exemplos ilustres que volta e meia estou citando aqui; mas para mim é um típico recurso da pulp fiction, da ficção popular voltada para fatos insólitos e adrenalina turbinada. 

H. P. Lovecraft, o criador dos Mitos de Cthulhu, tem alguns exemplos bem típicos, recordados neste pequeno apanhado de D. T. Wynne (http://bit.ly/LIH3yY) sobre algumas aberturas famosas dos seus contos.

Lovecraft começa “O Horror de Dunwich” (1929) dizendo: 

“Quando um viajante que cruza a parte central de Massachusetts toma o caminho errado na encruzilhada da estrada de Aylesbury, pouco depois de Dean’s Corners, ele penetra numa região deserta e intrigante.”  

O conceito essencial da história é que o viajante mergulha no desconhecido sem o perceber, meramente por ter escolhido o lado errado numa bifurcação.  A obscuridade do destino é ressaltada pela precisão geográfica das coordenadas. Tudo é conhecido mapeado, tudo está sob controle, mas... se o cara pegar o desvio errado...

O começo de “The Descendant” (1938) é um dos mais impactantes que conheço: 

“Em Londres existe um homem que grita todas as vezes em que tocam os sinos das catedrais”.  

Mais uma vez o horror e o estranho vêm grudados como sanguessugas a um conceito relativo à ordem (os sinos das igrejas funcionam como relógio, como veículo de mensagens, etc.), trazendo ainda por cima a conotação religiosa.

Um dos seus contos mais famosos, “O Chamado de Cthulhu” (1928) começa com uma de suas frases clássicas de desdém pela Razão: 

“A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é o fato de a mente humana ser incapaz de correlacionar tudo quanto ela contém.”  

Para Lovecraft, vivemos num mundo absurdo e maligno, mas felizmente não o percebemos – porque só temos olhos para os fatozinhos banais da nossa vida diária.

Um dos meus favoritos é o começo de “O Inominável” (1939), onde o narrador diz: 

“Estávamos sentados sobre um arruinado túmulo do século 17, ao fim da tarde de um dia de outono no velho cemitério da cidade de Arkham, e estávamos especulando sobre o Inominável”.  

Aqui está, mais do que o terror, o espírito antiquado e seiscentista do autor, e a revelação de seu temperamento. Ele era alguém que, num fim de tarde dourado e tranquilo, sentava-se ao lado de um amigo para remexer nas entranhas do Universo, e descobrir a fonte primordial do Estranho, do Bizarro, do Inesperado.




sábado, 15 de fevereiro de 2014

3423) A testemunha (15.2.2014)



Tive um pesadelo terrível. Eu vinha por uma rua tranquila, e dois carros bateram num cruzamento. Um deles arrancou um samboque do paralamas do outro, mas o motorista manobrou, aprumou o carro e fugiu. A motorista do outro desceu, nervosa.  Pegou a bolsa e tirou o celular para ligar. Nisso um rapaz arrebatou-lhe a bolsa e saiu correndo.  Algumas pessoas o perseguiram, mas ele subiu numa árvore, pulou um muro, acabou fugindo.  Eu me vi minutos depois numa delegacia, como testemunha.

Policial: “O senhor viu o acidente e o furto?”. Eu: “Sim, senhor.”  Ele: “Como foi?” Eu: “Ela ia na preferencial, mas o outro carro avançou, bateu no dela e fugiu.”  Ele: “Que carro era?”.  Eu: “Um carro cinzento, esse cinza-prateado.”  Ele: “Qual era a marca?”.  Eu: “Não sei.”  Ele: “Era de duas ou de 4 portas?”  Eu: “Não sei.”  Ele: “Nacional ou importado?”  Eu: “Não sei.”  Ele: “Tá bom, como era a aparência do carro, o formato dele?”  Eu: “Era um desses carros novos, desenho elegante, carro de passeio mesmo.”  Ele: “E as rodas, como eram?”.  Eu: “Tipo redondas, com pneus.”  Ele: “Quem vinha dirigindo, homem ou mulher?”  Eu: “Não olhei.”  Ele: “Reparou na placa?”. Eu: “Não.”  Ele: “Tá bom. Viu o assaltante roubar a bolsa?”  Eu: “Sim.”  Ele: “Que tipo de bolsa era?”  Eu: “Bolsa de mulher”.  Ele: “Sim, mas que estilo? Era uma dessas Louis Vuitton, ou bolsa comum?”  Eu: “Não sei bem. Pode ter sido uma Louis Vuitton comum.”  Ele: “Por onde o assaltante fugiu?”  Eu: “Subiu numa árvore e pulou para dentro de um muro.”  Ele: “Naquela calçada tem uma mangueira e um flamboiã.  Cada uma dá para um quintal diferente. Em qual das duas ele subiu?”  Eu: “Não sei, são iguais.”  Ele: “O senhor não sabe a diferença entre uma mangueira e um flamboiã?”  Eu: “Não senhor.”  Ele: “Então dane-se, pode acordar.”  Acordei.

O pesadelo consiste no fato de que eu só distingo três tipos de veículo: carro, ônibus e caminhão. Se a elucidação do assassinato de Kennedy dependesse de eu dizer em que marca de carro o assassino fugiu, estaria sem solução até hoje (como aliás está mesmo).  Alguém poderá pensar que não sou muito afeito ao mundo automobilístico por ser um sujeito simples, do interior, próximo à natureza. Mas em termos de natureza eu não distingo nada.  O meu mundo florestal se divide em três espécies: árvore, coqueiro e palmeira, e se insisto no detalhe é pelo orgulho de por volta dos 35 anos ter começado a perceber a diferença entre as duas últimas.  Daí minha admiração pelas pessoas que sabem a diferença entre um Palio e um Vectra, ou entre um juazeiro e uma acácia. Eu lhes perdoo não saberem a diferença entre André Breton e Zé Limeira.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

3422) Jardins imaginários (14.2.2014)



(Ilustração: Roberto Kusterle)

Discutindo um projeto do autor Norman Spinrad, o editor Lou Aronica (Bantam Books) observou que em histórias fantásticas bem sucedidas “a história emocional é realista, não importa se os acontecimentos que produziram as emoções o sejam ou não.”  O que Aronica diz (e que Norman Spinrad aproveita para comparar com o Realismo Mágico latino-americano) é que a semântica da história pode ser fantástica, mas a sintaxe deve ser realista, deve reproduzir a sintaxe das emoções humanas. As pessoas temem o poder de um mago, de um cientista, de um artista genial, porque temem o poder. A pessoa está lá para dar um recheio semântico a essa estrutura. Tensão e descarga. Perplexidade, alumbramento, raciocínio e decifração do mistério. Suspense e resolução. Imagens arquetípicas capazes de despertar o riso, o temor, a compaixão, a simpatia, o entusiasmo. Essa é a sintaxe emocional do romance que, sendo verdadeira, sendo semelhante à da vida, nos torna capazes de entender e aceitar as histórias. Não importa se elas estão povoadas de alienígenas fulvos, magos ectoplásmicos, chapeleiros doidos ou insetos pensantes.

Talvez fosse algo assim que Marianne Moore tinha em mente quando num poema famoso se referiu a “imaginary gardens with real toads in them”, jardins imaginários cheios de sapos verdadeiros. (Mario Quintana referiu-se certa vez a “falsas confidências e sentimentos verdadeiros”, o que é uma fórmula parecida.) Basta a existência vulgar, cotidiana e plebéia desses sapos para pingar um realismo indelével no jardim mais metido a fantasioso.  Eles entram na receita como uma garantia de verdade, um contrapeso de matéria real, irrecusável, do tipo é-pegar-ou-largar. 

Um jardim com sapos é um jardim com surpresas, com armadilhas, com perigos. Não é um jardim para “wish fulfillment”, para a gratificação plena de desejos sem que nenhum preço seja pago.  O que deve ter encantado muitos leitores do fantástico latino-americano é o modo espontâneo como nossos melhores autores conseguem subordinar o jardim aos sapos; dobrar a verossimilhança superficial dos fatos da fábula até deformá-los pela presença dos campos gravitacionais poderosos que são as emoções, as crenças e os impulsos de-dentro-para-fora dos seus personagens.

Existe uma lógica subjacente aos textos de Garcia Márquez, Cortázar, Astúrias, etc., a lógica de uma verdade subjetiva que o leitor aceita, e aceita inclusive quando essa lógica abusa das leis da probabilidade ou rompe as convenções de espaço e tempo. Se o sentimento é verdadeiro, pouco importa o que o provoca.  Se o sentimento é verdadeiro, o que o provoca nem precisa ser possível.