Tempos atrás houve um bafafá num edifício residencial do Rio porque um morador, que era juiz ou advogado, discutiu com um empregado do prédio por algum motivo, e se irritou quando o rapaz o chamou de “Seu Fulano” em vez de “Doutor Fulano”.
O caso foi parar na polícia, na imprensa e nos tribunais, onde finalmente surgiu uma sentença afirmando que ninguém era obrigado a chamá-lo de doutor somente porque ele tinha curso superior. (Há um certo consenso de que “doutor” não é quem é advogado ou médico: é quem tem doutorado, e fim de papo.)
Nesse
titulozinho se esconde, por um lado, a empáfia dos bem-nascidos a quem sempre
se destinou o ensino superior no país, e, por outro, a ânsia de ascensão social
dos humilhados e ofendidos que acham que um anel no dedo e um diploma na parede
irão branquear sua pele e europeizar seu sobrenome.
Ninguém exprimiu com mais ironia essa sofrida ilusão do que Lima Barreto (ele também mulato e pobre) em Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), quando o personagem prepara sua ida para o Rio de Janeiro, onde pensa ter garantido um emprego e a possibilidade de custear seus estudos.
Diz Isaías, no capítulo 1:
Ninguém exprimiu com mais ironia essa sofrida ilusão do que Lima Barreto (ele também mulato e pobre) em Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), quando o personagem prepara sua ida para o Rio de Janeiro, onde pensa ter garantido um emprego e a possibilidade de custear seus estudos.
Diz Isaías, no capítulo 1:
“Ah!
Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria
o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas dobras do
pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do
respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em
fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto
os pensamentos que se estorciam no meu cérebro. (...) Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título,
tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos... (...) De posse
dele, as gotas de chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam
a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios
solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os
inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel
no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo antes de ferir a
martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas
estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está,
doutor?”
Um comentário:
Eita que tem muita gente mendigando falsos títulos por aí que eu conheço. As verdadeiras honras não se adquirem com diploma na parede ou palavras aduladoras de gente ignorante.
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