quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

3384) Dicionário Aldebarã VI (1.1.2014)




O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Garbulons”: cantoneiras arredondadas, de espuma macia, que são aplicadas às quinas dos móveis, numa casa onde há crianças pequenas. “Amsendal”: um dia por mês que cada família reserva para prestar serviços gratuitos a desconhecidos em bairros distantes da cidade. “Kurshints”: músicos de rua que cantam versos repassando informações de interesse público. “Yoggones”: esculturas de pedra no alto dos morros, marcando os pontos extremos do nascer do sol no horizonte ao longo do ano. “Gashpan”: pequenos cofres onde cada pessoa (numa casa, escritório, etc.) deposita uma moeda cada vez que recebe uma boa notícia, para repartir entre todos no fim do mês.

“Loombs”: saquinhos com frutas servidos nas estações de trem para que as sementes, jogadas pelas janelas, encham de árvores as laterais da via férrea. “Hastrang”: incensos discretos que são acesos na casa para afugentar visitas indesejáveis. “Koplins”: criaturas misteriosas que no inverno são vistas dormindo no meio das estradas e que fazem os veículos diminuírem a marcha por medo de atropelá-las, para desaparecem logo em seguida. “Harnumbs”: abrigos onde as pessoas se isolam para meditar, sendo obrigadas a usar roupas e máscaras idênticas, para preservar o anonimato.

“Gink-tans”: pétalas aromáticas que em alguns restaurantes são oferecidas para ser mastigadas (e não engolidas), após a sobremesa, para perfumar o hálito. “Sleng”: palavra múltipla que designa um condimento picante, uma frase irônica, uma cor muito viva, o choro súbito de um bebê e a entrada de uma pessoa importante no recinto. “Annoni”, espécie de chá que se toma gelado ao acordar, para dar energia, e quente antes de se deitar, para dar sono. “Wemb-yun”: uma festa semelhante à do casamento que alguns casais oferecem à família e aos amigos quando decidem se separar.

“Sanpeps”: pequenas premonições que as pessoas anotam, põem num envelope, lacram, escrevem a data e hora, e entregam a alguém para serem abertas depois que o fato se confirma. “Wamp-wim”: a sensação de dificuldade que temos para explicar algo que nos parece óbvio mas que o interlocutor não tem condições de assimilar. ‘Staps”: pequenas paletas flexíveis de madeira presas por uma das pontas nas mesas do restaurantes, que servem para prender guardanapos, dinheiro, etc. e evitar que o vento os carregue.


terça-feira, 31 de dezembro de 2013

3383) Dois livros de 2013 (31.12.2013)





Um dos melhores lançamentos deste ano (pela Cia. Das Letras) foi Pulphead – o Outro Lado da América de John Jeremiah Sullivan, uma coletânea dos ensaios jornalísticos que fez uma bela dupla com Um Pouco Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo de David Foster Wallace (Cia. Das Letras), também um livro de ensaios intensamente pessoal, sem prejuízo da parte factual e informativa. Mas onde o estilo e a personalidade de Wallace são delirantes, barrocos, de frases caudalosamente intermináveis, Sullivan tem um tom mais reflexivo, contemplativo, uma linguagem mais translúcida, embora capaz de um sarcasmo delicioso e uma notável finura de descrição.

Alguns dos ensaios de Pulphead têm a música popular como ponto de partida: Axl Rose (“O último retorno de Axl Rose”), Michael Jackson (“Michael”), o reggae de Bunny Wailer (“O último Wailer”), músicos obscuros de country e blues (“Bardos desconhecidos”), rock evangélico (“Sobre este rock”). Ele escreve como um fã, mas um fã equilibrado e crítico. Pela primeira vez, aliás, consegui enxergar algo que valesse a pena em Axl Rose, que sempre me pareceu um desorientado. (E é – mas noutro nível.)

Ele aborda também temas científicos que não devem ser fascinantes pra todo mundo, mas são pra mim: Rafinesque, um cientista fora-de-esquadro dos sécs. 18 e 19 (“A carreira de um naturalista excêntrico”), os mistérios dos povos que habitaram os subterrâneos da América antes da colonização (“Cavernas inominadas”), as consequências de um choque elétrico na mente de um rapaz – o irmão de Sullivan, roqueiro eletrocutado por um microfone e que sobreviveu (“Pés na fumaça”), os inexplicáveis surtos de agressividade animal contra os humanos nas últimas décadas (“Violência dos inocentes”).

Há espaço também para interessantes análises do reacionarismo político de certas regiões dos EUA, que ele cobre como se estivesse pisando em terreno minado, e está (“Quero minha América de volta”, “Num abrigo - depois do Katrina)”. A TV norte-americana também não escapa de um relato divertido e devastador feito com olhos pretensamente inocentes: “A casa de Peyton”, “Concentrando-se no que é realmente real”. E há um relato divertido e comovente dos últimos anos de um escritor de 90: “Sr. Lytle: um ensaio”.

Sempre que a ficção começa a desperdiçar seus instrumentos de fazer contato com a realidade, cabe à não-ficção botá-los na roda novamente. Tanto Wallace quanto Sullivan são escritores armados dos pés à cabeça (Wallace foi também romancista de peso). Seus relatos são encharcados de sentimentos pessoais mas eles nunca cedem ao narcisismo blasé tão frequente no jornalismo investigativo.


domingo, 29 de dezembro de 2013

3382) 11 gafes (29.12.2013)




Amarílis Santiago, 53 anos, Londrina: estava num churrasco na fazenda de um primo do marido e apontou uma garota: “Olha que piriguete mais escandalosa”, e o irmão do dono da casa disse: “É minha filha”.  

Guilherme Batista, 28 anos, Salvador: em sua primeira reunião com o alto-comando da agência de publicidade onde trabalhava há dois meses, teve um acesso incontrolável de riso ao ouvir a voz fanhosa e gaguejante do sócio sênior da empresa, e lembrar a imitação perfeita que um dos motoboys fazia dele nos papos descontraídos no fumódromo. 

Celso Ribeiro Farias, 43 anos, Brasília: num banquete comemorativo ficou ao lado de um Embaixador, e de tão nervoso passou a noite tomando vinho em sua própria taça e depois na do vizinho (e foi o único que não percebeu).

Ademar Cordeiro de Sá, 39 anos, São Paulo: passou um mês trabalhando num artigo para uma revista científica, mandou por engano um rascunho cheio de erros, que foi publicado e está lá para sempre.  

Alice Rodrigues, 43 anos, Recife: no casamento do cunhado brindou elogiando os noivos, desejou mil felicidades, e nas três vezes em que citou a noiva chamou-a pelo nome da ex-esposa do cunhado. 

Mauro Benevides de Sá, locutor de rádio FM, Anápolis: no fim de um número musical, reprimindo um bocejo, anunciou: “Em Anápolis, são precisamente duas horas e 28 centímetros”. 

Maria da Penha Silva Guimarães, 38 anos, Caruaru: ao chegar numa festa com o vestido idêntico ao da dona da casa, esta se aproximou sorridente, tentando descontrair, dizendo: “parabéns pelo bom gosto!”, e ela, nervosíssima, saiu-se com: “que é isso, esse meu vestido é horroroso!”.

Jorge Moreira, Rio de Janeiro, 43 anos: músico, morou em Nova York, e uma madrugada estava gravando num estúdio e chegando na lanchonete interna viu um crioulo junto ao balcão, pediu uma Coca-Cola e descobriu que era Miles Davis. 

João Mauro Balião, 55 anos, Goiânia: chegando em casa de madrugada viu um homem pulando o muro da casa vizinha, chamou a polícia, e ficou sabendo que era o amante da viúva que morava ali sozinha, e para a qual ele também mandava uns olhares compridos. 

Carlos Feitosa Valença, 52 anos, São Luís: aceitou prefaciar o livro de memórias de um ex-colega da Faculdade de Direito, não leu os originais, e em seu texto recordou com jovialidade um episódio de juventude vivido com o autor, só que dando deste episódio uma versão discrepante e comprometedora. 

Gleidson Luna, 19 anos, Natal: na primeira vez em que foi pegar a namorada na casa dos pais para levar pro cinema disse à futura sogra: “Pode ficar tranquila porque eu vou levar ela para um motel seguro, um que eu vou lá toda semana. Rá rá rá! Brincadeirinha.”






sábado, 28 de dezembro de 2013

3381) Singularidade maligna (28.12.2013)



Quando Mary Shelley criou em 1818 o seu Frankenstein, estava criando um dos mais versáteis símbolos do mundo futuro. O monstro fabricado em laboratório já serviu de alegoria para tudo. Uma das primeiras que me chamaram a atenção foi a de um crítico que disse: “O monstro de Frankenstein é o adolescente de hoje. Feioso, desajeitado, mal vestido, com um cabelo horrível... Sem saber falar direito, e sem saber o que fazer com o próprio corpo... Querendo achar uma companheira, praticando atos involuntários de violência, porque é grande demais para si mesmo...”  E por aí vai.

Talvez o primeiro grande monstro da FC seja uma metáfora para o último: a Singularidade, o momento em que o homem produzirá uma Super-Inteligência Artificial capaz de suplantá-lo. Ninguém está tentando criar isso, na verdade. Mas existem hoje no mundo milhares de pesquisas independentes que convergem todas nessa direção. A S.I.A. vai surgir pelas mãos de pessoas que não tinham a intenção de criá-la.

Softwares capazes de se reprogramar, se auto-consertar, se aperfeiçoar e evoluir. Chips, fibras, hardwares cada vez mais leves, eficazes, rápidos e baratos. Conexões sem fio ubíquas, velozes, superpostas. Tudo isto são como os pedaços de uma criatura artificial que estão sendo criados por pesquisadores independentes, que muitas vezes nem prestam atenção às pesquisas dos outros, porque estão mergulhados demais na própria.

Se quiséssemos criar a S.I.A. como um projeto civilizatório coletivo, talvez ela nunca acontecesse, porque cada passo teria que ser examinado e aprovado por dezenas de comissões internacionais. Não é o que está acontecendo. Cada pesquisa independente das outras, mas o que acontecerá quando essas partes, administradas por softwares conscientes, começarem a se coordenar e a trabalhar em conjunto?

A criação da Singularidade não deve ser muito diversa da criação da vida no tal “oceano primitivo”, há milhões de anos. Uma série de processos químicos independentes que acabaram gerando algo de natureza essencialmente diversa. No caso presente, pode-se argumentar que as pessoas envolvidas (os cientistas, as corporações, os laboratórios, etc.) sabem o que estão fazendo, mas na verdade esse “saber” é parcial, localizado, e de modo algum tem aquele objetivo em mente. Interrogados, esses pesquisadores não admitiriam ter como objetivo a criação de uma entidade bioeletrônica incontrolável. Diriam todos que “sabem muito bem o que estão fazendo” e que “não há a menor possibilidade daquele processo escapar ao seu controle”. Diriam, em suma, o que todo cientista diz antes de ser surpreendido pelo tsunami cumulativo e aleatório da ciência.


sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

3380) Arte Formigueiro (27.12.2013)




Os críticos defendem há muito tempo o conceito de que, em grande medida, a beleza está no olho de quem vê.  Isso tem uma força tão grande que é possível alguém enxergar beleza até onde não foi feito nenhum esforço para criá-la. É aquela beleza involuntária, ou aleatória, que podemos encontrar em manchas de lodo, num muro antigo todo descascado, nas manchas no interior de um tronco de madeira, em formações naturais (rochas, corais, nuvens) ou na estrutura microscópica de minúsculos insetos ou plantas. Olhamos para aquilo e vemos belas combinações de cores e de formas, vemos harmonia, vemos simetria, vemos elementos visuais que nos dão aquela velhíssima sensação expressa no velhíssimo clichê: “Parece uma pintura!”.

Pode ser beleza, mas, segundo os teóricos, não é arte, porque a arte pressupõe a intenção de criar a beleza, ou pelo menos de criar algo que impressione nossos sentidos e nossas emoções (expor um mictório numa galeria, como fez Duchamp). Existe sempre alguém por trás da obra de arte, por mais aleatória que ela pareça, como naqueles quadros que não passam de uma porção de tintas derramadas ao acaso sobre uma tela. Alguém posicionou a tela, alguém escolheu as cores das tintas, alguém iniciou e depois interrompeu o processo que se supõe aleatório. Pode não ser uma grande obra de arte, mas é obra de arte, sim, senhor. Alguém acaba gostando e até pagando cem mil dólares pelo resultado.

Este vídeo (http://bit.ly/1jjQ5RX) mostra uma maneira interessante de produzir arte. O sujeito encontra um formigueiro abandonado, vazio, e derrama dentro dele um galão de alumínio derretido, fumegante. O alumínio vai se esgueirando pelos corredores do formigueiro, e, depois de alguns minutos, se solidifica lá dentro. Resta ao artista cavar em volta, arrancar do chão aquele objeto com mais de meio metro de diâmetro, e depois aplicar sobre ele uma mangueira com jato dágua sob pressão, desprendendo e lavando toda a terra, deixando apenas o metal solidificado e frio que há no interior.

É arte? Eu acho que sim, porque requer um esforço imaginativo, uma antevisão do resultado, um mínimo de habilidade manual e o domínio de pelo menos dois tipos de tecnologia. O resultado é um emaranhado de hastes metálicas reproduzindo o labirinto interior do formigueiro; e é irônico que a forma final tenha sido criada pelos insetos e apenas revelada pelo Homem. Seria mais interessante ainda se o formigueiro estivesse ocupado e as formigas fossem mortas durante o processo. A obra de arte serviria como o resultado alegórico da relação entre o Homem e as demais espécies do planeta. O título final poderia ser: “Tua Morte é Minha Arte, Parceiro”.


quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

3379) FC e política (26.12.2013)



(a Trilogia de Washington)

Num artigo no número atual de The New Yorker, Tim Kreider observa o quanto a literatura dos EUA se distanciou dos grandes temas políticos, e propõe a tese de que a grande literatura política de hoje em dia é a ficção científica. (Isso pode parecer estranho a quem só entende a política através do circo partidário, das disputas eleitorais.) Diz Kreider: “Se os historiadores de daqui a 50 anos lerem a ficção literária de hoje, podem inferir que nossos maiores problemas sociais eram conflitos com os pais, relacionamentos insatisfatórios, e a morte. Se procurarem qualquer indicação de que tínhamos pelo menos um vago pressentimento sobre o crescente conflito global entre Capitalismo e Democracia, ou sobre a catástrofe abissal que nossa civilização estava neste período começando a produzir, talvez tenham que se voltar para (...) a ficção científica”.

O jornalista cita Kim Stanley Robinson (http://nyr.kr/IIiPDF) como um bom exemplo de autor de FC voltado para a política. Ele concentra sua análise na “Trilogia de Marte” (1993-94-96) onde o planeta é colonizado por gerações de terrestres – a quem cabe, evidentemente, administrar a complexa política do futuro mundo. Mas poderia ter citado também outras séries de Robinson como a “Trilogia da Califórnia”, três romances (1984-88-90) em que ele imagina três futuros possíveis e mutuamente excludentes para a região de Orange County, três hipóteses possíveis de futuro político e social para uma única comunidade.

Já comentei aqui outra série de KSR, a “Trilogia de Washington” (2004-05-07), que tem como foco a crise ambiental em curso, vista através de um ambientalista, assessor de um senador dos EUA que acaba se elegendo presidente no meio da catástrofe global. Em seu artigo, Tim Kreider diz que a FC é “um gênero inerentemente liberal (mesmo tendo muitos praticantes que são politicamente conservadores), no sentido de que veem o ‘status quo’ como algo contingente, um acidente histórico, enquanto os conservadores o veem como inevitável, natural, e portanto justo”.  Ele considera que Robinson “tenta aplicar o pensamento científico à política, abordando-a menos como se fosse Física Pura, onde uma equação/ideologia infalível basta para explicar tudo, do que como a Engenharia, um processo que Roosevelt chamou de ‘experimentação ousada e persistente’, descobrindo o que funciona e combinando elementos eficazes para sintetizar uma coisa nova”. A obra inteira de Robinson é um impressionante trabalho de engenharia futurologista, numa época em que grande parte da literatura de seu país passa ao lado da política pisando na ponta dos pés para não despertá-la.


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

3378) Natal 2013 (25.12.2013)




(Catrin Arno)

... e a esfera armilar do firmamento
como guarda noturna em sua ronda
girou pela interface da redonda
película do céu que nos protege.
Mesmo um sujeito como eu, herege,
olha o céu e se sente agasalhado.
É “O Vazio”?  Não.  É o meu Sagrado.
Uma infinita bolha de matéria
onde brotam a glória e a miséria
no minúsculo grão da vida humana.

Falar nisso... Já faz uma semana
que a editora prometeu meu cheque
e eu desenrosco a tampa à long-neck
comemorando o ovo inda não posto.
É dezembro! O espelho mostra um rosto
macilento por noites sedentárias
mas de rugas, somente as necessárias;
no futuro talvez virá a hora
que eu lembrarei da minha vida agora
e é capaz de eu achar que fui feliz.

Besteira! Tô melhor que o meu país.
Tocando a bola no meio de campo
e não me falta a gig, o bico, o trampo
com que pagar as contas fim de mês.
Acha pouco? Eu também, mas quem não fez
contabilismos pela madrugada,  
o “vai tanto” e o “noves fora nada”,
como o refém que orça o seu resgate
com usura e malícia de mascate
maquilando o Haver no fim do dia?

Dezembro se perfuma em alegria
como incenso de pira funerária
e cada um vai misturando a vária
paleta de emoções de que é capaz.
Eu só peço um minuto, um só, de paz;
e me sossega a bulição da mente.
Abro o caderno, anoto algum repente,
abro uma cerva, “aquéto” o coração,
abro a memória, a imaginação...
e as duas me aconchegam no que eu sou.

E o meu PC, que nunca mais travou?
E dor daqui, que nunca mais doeu?
Quem sabe o mundo enfim desaprendeu
a dar defeito? Pense num progresso!
Quando o placar é bom, tudo que eu peço
é que o jogo consinta em ser jogado.
Ah, meu corpo, resíduo “escangalhado
mas glorioso, como um Garibaldi”,
e que ainda não quer chutar o balde
(é de Lobato a citação). É cedo.

Pois venha a neve. As renas, o arvoredo
onde os clichês bimbalham, o espumante,
os presentes, a multidão cantante
dos sem-teto ao redor da manjedoura,
a pílula-placebo que se doura,
ilusão que é real, posto que existe;
como o mundo de Skyrim ou de Myst
este é feito de enredo, som, imagem,
é tudo que nos basta, na viagem
entre um silêncio e outro em queda lenta.

A vida canta. A vida luta e tenta
ser razão de si mesma e seus cuidados.
Basta abraçar alguém de olhos fechados
e de repente o mundo é mais real.
Certo dia... surpresa! Olha o Natal,
este rito plangente de emboscada,
a vida, a força mais temida e amada,
a única que temos... Então vinde,
companheiros, e a todos ergo um brinde
sob este céu parado em movimento...


3377) Começos de livros (24.12.2013)





Começar bem um livro é meio caminho andado, e alguns começam tão bem que seu trecho mais famoso acaba sendo a frase inicial (o que, aliás, me deixa sempre em dúvida quanto à qualidade de todo o resto do romance). Não posso deixar de indicar os modelos de sempre: Cem Anos de Solidão, Um Conto de Duas Cidades, O Processo, Lolita, Grande Sertão: Veredas, Gravity’s Rainbow, Neuromancer...

O saite Infoplease (http://bit.ly/19jCNAR) publicou uma lista dos “100 Melhores Começos”, que relaciona todos estes e mais alguns. O que é uma boa chance para conhecer novidades. Toni Morrison começa seu Paradise dizendo: “Eles atiraram primeiro na garota branca”. É o tipo da abertura que me faz anotar mentalmente o livro e pegá-lo na primeira oportunidade para ler pelo menos a primeira página. Sempre é bom começar uma história “in media res”, no meio dos acontecimentos. A coisa arranca tão rápido que o leitor fica com medo de pular fora e torcer o tornozelo.

Simpatizei com o espanhol Filipe Alfau, que começa seu Chromos com: “No momento em que alguém aprende inglês, começam as complicações”. E com a desconhecida Anita Brookner que, de certo modo, o ecoou em The Debut: “Aos 40 anos, a Dra. Weiss sabia que sua vida tinha sido arruinada pela literatura”. Num outro diapasão não há como não dar um pulo na poltrona ao ler a abertura de The Crow Road de Iain M. Banks: “Foi no dia em que minha avó explodiu”.

A abertura nos joga de corpo inteiro na história, seja com o flash de uma época ou de uma paisagem, seja com o retrato instantâneo do protagonista ou de um personagem qualquer, cuja vividez nos serve de isca para continuar lendo o resto.

Por outro lado, nos joga também na mão do narrador, que, se for hábil, impõe desde logo o tom e a cadência da sua cantiga. Todo romance bom tem uma cantiga, tem um jeito de contar e de dizer, tem uma escolha de sonoridades e de ritmos. Não é só o que se diz, é o jeito único e inimitável de dizer. Como o de Flannery O’Connor em The Violent Bear it Away: “O tio de Francis Marion Tarwater estava morto somente há metade de um dia quando o rapaz ficou bêbado demais para terminar de cavar sua cova, e um negro chamado Buford Munson, que tinha vindo encher um garrafão, teve que terminar de cavá-la e depois arrastar o corpo da mesa onde ele ainda estava sentado e sepultá-lo de modo decente e cristão, com o sinal do Salvador na cabeça do túmulo e terra bastante por cima para não deixar que os cachorros o puxassem para fora”. Ambiente, meio social, pessoas, crueza de linguagem, vem tudo na primeira pincelada, e cabe ao autor continuar à altura dela.


domingo, 22 de dezembro de 2013

3376) Eu detesto o Brasil (22.12.2013)





Falo aqui, de vez em quando, desses blogs de estrangeiros que moram no Brasil e comentam, com seu ponto de vista peculiar, nossos hábitos, nossa cultura, nossos valores. 

Em geral são comentários positivos, afinal quem vem de fora para morar aqui geralmente é porque gosta. Aconselho uma olhada nesta página (http://bit.ly/18ZkuAM) onde o autor anuncia suas “20 Razões Por Que Detesto Morar no Brasil”, que depois os leitores aumentaram até 66. 

Umas são tolices, outras são preconceituosas, outras são cobertas de razão. 

(O maior erro, comum nestes casos, é a generalização, dizer “os brasileiros” dando a entender, ao lado de fora, que TODOS os brasileiros são assim.)

Concordo, p. ex., com: 

“Os brasileiros não respeitam o meio ambiente. Derramam toneladas de lixo em qualquer lugar, a sujeira é inacreditável, as ruas são sujas mesmo. Os recursos naturais são abundantes mas estão sendo desperdiçados numa velocidade assombrosa.” 

“Os brasileiros têm um sistema de classes muito marcado. Os ricos têm uma noção dos próprios direitos que beira a caricatura. Acham que as regras não se aplicam a eles, que estão acima das leis.” 

“Serviços práticos são de baixa qualidade: janelas, portas, dobradiças, encanamento, eletricidade, calçadas, tudo é construído com o menor esforço possível”. 

“Carros passam à noite tocando música tão alto que meu prédio estremece.” 

“As pessoas compram a prazo equipamentos caríssimos que irão quebrar antes de serem pagos por completo”. 

“As janelas não têm telas anti-mosquitos. Ao que parece é uma tecnologia incompatível com a infraestrutura atual. Pontes suspensas tudo bem, mas pedir telas é pedir demais.”

Por outro lado, certas queixas mostram o quanto é difícil viver no meio de outra cultura, seja ela qual for. O cara diz: 

“Os brasileiros permanecem muito próximos, tanto emocional quanto geograficamente, das suas famílias de origem. Isto não é necessariamente um defeito, mas é algo que não suporto, porque me deixa desconfortável e afeta meu casamento. Brasileiros adultos nunca cortam o cordão umbilical com sua família de origem (especialmente com as mães) que continuam a se envolver em sua vida, seus problemas, decisões, atividades, etc. Como dá para imaginar, isso é ainda mais difícil para um cônjuge de outra cultura, onde vivemos em famílias nucleares e temos uma dinâmica diferente com nossas famílias de origem.” 

Mais uma vez, é algo que não vale para todo mundo, mas de fato o conceito de proximidade familiar que cultivamos é próximo do conceito dos portugueses ou italianos. Indivíduos criados em outros sistemas de relações familiares devem ficar malucos casando no Brasil.








sábado, 21 de dezembro de 2013

3375) O plot Rube Goldberg (21.12.2013)



Já falei aqui na coluna sobre um dos meus ídolos, o norte-americano Rube Goldberg (1883-1970), cartunista que ficou célebre pelos seus desenhos de máquinas complicadíssimas, cheias de elementos interligados surrealistamente para produzir efeitos bem bobos. Para acender uma lâmpada, Goldberg fazia um sujeito ligar um ventilador, cujo vento empurrava um barquinho num tanque, e o barquinho avançava até seu mastro desequilibrar uma calha, por onde rolava uma bola de ferro que caía sobre o prato de uma balança, e com isso fazia elevar-se o outro prato onde havia uma vela acesa, e a vela se elevava até a chama entrar em contato com um cordão esticado, e o cordão se rompia, e com isso liberava um peso, que puxava e largava a borracha de um estilingue, o qual desferia uma pedrada direto no botão do interruptor, acendendo a luz.

Isso lembra um pouco o Paradoxo de Zenão, que tem diversas formas de enunciação, mas em sua essência sugere que é sempre possível dificultar uma tarefa simples dizendo que para executá-la é preciso executar primeiro outra, e antes dessa uma terceira, e antes dessa terceira uma quarta, até o infinito.

Os roteiros do cinema, principalmente dos filmes de ação, assimilaram essa vertigem. Há uma coisa simples a ser feita (prender um bandido, resgatar uma pessoa, encontrar um tesouro, concluir uma viagem), mas é sempre possível ficar inventando peripécias e transtornos que cada vez deixam mais longe o objetivo final e aumentam o suspense: “Conseguirão os nossos heróis, etc etc.?”. Não devemos botar a culpa em Hollywood: que o primeiro culpado seja o Homero da Odisséia, porque bem que Ulisses poderia ter voltado para Ítaca em uma semana, mas o poeta danou-se a inventar ciclopes e Circes e comedores de lótus… Enfim: quando o herói chegou em casa só quem se lembrava dele era o cachorro.

Na pulp fiction e nas aventuras popularescas (de Fu-Manchu a Indiana Jones, de James Bond a Batman), nada exprime tão bem essa mentalidade barroco-masoquista do que as artimanhas dos vilões para matar o mocinho depois que o prende. Bastava um tiro na testa, não é mesmo? É um método muito popular na vida real, e infalível em 100% dos casos. Mas o vilão escolhe matar o herói depois de uma longa cena onde monologa didaticamente, explicando para o leitor/espectador um roteiro que até então nem mesmo o roteirista enxergava com clareza. E se retira do galpão abandonado deixando o mocinho vivo e atado a um poste, enquanto um relógio tiquetaqueia até a hora em que irá acender uma fagulha que irá acender um rastilho de uma bombinha que irá abrir um tonel de onde sairão abelhas assassinas, e bibibi, e bobobó.