terça-feira, 26 de outubro de 2010
2383) A Presidência segundo P K Dick (26.10.2010)
O livro de estreia de Philip K. Dick foi Loteria Solar (1955), onde ele misturou a “pulp fiction” de ação & aventura da sua época e as ideias inesperadas que passaria a introduzir no gênero até sua morte em 1982.
No ano de 2023, a escolha do Presidente (chamado de “Quizmaster”) é realizada através de um sorteio entre os ”power cards” dos cidadãos (uma mistura de cartão de crédito e CPF), de modo que qualquer um, em tese, pode ser levado à presidência de um momento para outro.
A criação desse sistema visa a diluir as tradicionais formas de pressão política (partidos, etc.), e reflete um mundo (numa data futura que para Dick era muito mais distante do que para nós) influenciado pela Teoria dos Jogos:
“Minimax, o método para sobreviver ao grande jogo da vida, tinha sido inventado por dois matemáticos do século 20, von Neumann e Morgenstern. Tinha sido empregado na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coréia, e na Guerra Final. Estrategistas militares, e depois financistas, tinham experimentado com essa teoria. Em meados daquele século, von Neumann tinha sido nomeado para a Comissão de Energia Atômica dos EUA, como um reconhecimento da importância crescente de sua teoria. E em dois séculos e meio ela tinha se tornado a base do Governo”.
Essa sociedade começa sorteando bens de consumo para os cidadãos:
“Mas, para cada homem que ganhava um carro, uma geladeira, uma TV, havia milhões que não ganhavam nada. Gradualmente, ao longo dos anos, os prêmios dos sorteios evoluíram de bens materiais para itens mais realistas: poder e prestígio. E, por fim, para o posto mais cobiçado: o de Quizmaster, o que distribuía o poder”.
A influência da Teoria dos Jogos de von Neumann é deixada explícita por Dick; o que não sei é se ele teria, em 1955, lido o conto de Borges “A Loteria de Babilônia”, que é exatamente isto, a história de uma sociedade que começa sorteando prêmios em dinheiro e evolui para o sorteio de “elementos não pecuniários”: benefícios e castigos.
(O conto é de 1941, e não sei se em 1955 já teria sido traduzido para o inglês; sua primeira tradução inglesa em livro é de 1962.)
A coexistência de prêmios e castigos também está presente no livro de Dick, pois o Quizmaster eleito está permanentemente sob a ameaça de robôs assassinos que fazem parte do jogo. Ou seja, ninguém obtém o Poder sem algum tipo de risco.
A ideia de que um governante pudesse ser escolhido por sorteio sugere um sistema de poder tão bem estruturado que é capaz de diluir qualquer idiossincrasia do eleito, e de compensar suas deficiências. O governante seria uma espécie de figura decorativa, “rainha da Inglaterra”, servindo acima de tudo para manter diante da população a ilusão de que “qualquer um pode chegar lá”. Uma Mega-Sena política em que todo cidadão em dia com o Estado está automaticamente inscrito. O Poder pouco influi na sociedade, vira mero objetivo de disputa entre o que o ocupa e os que querem abatê-lo.
domingo, 24 de outubro de 2010
2382) A arte de se defender (24.10.2010)

Nos anos 1990 fui um grande fã do time de basquete do Chicago Bulls. Vivia ligado na TV a cabo assistindo os jogos da NBA, na época em que Phil Jackson era o técnico e Michael Jordan era o craque do time, ladeado por Scottie Pippen e outros. Era um timaço capaz de deslumbrar até um leigo como eu, que não percebo as sutilezas do jogo. A questão é que Jordan fazia coisas que contrariavam as leis da gravidade e do movimento, coisas que fariam até um marciano coçar a cabeça, incrédulo, e rasgar seu livro-texto de Física. O Bulls era um time com a volúpia de atacar – e uma incapacidade genética de se defender. Ganhava jogos por 110x100, ou por 130x120, o que equivale a ganhar no futebol por 4x3 ou 5x4. E houve uma época em que, escaldada por derrotas surpreendentes e dolorosas, a torcida do Bulls (cuja euforia e orgulho vejo hoje reproduzidos na torcida do Barcelona), quando via o time perder a bola, começava um coro ensurdecedor: “Defence! Defence!”. Já imaginaram o Nou Camp inteiro gritando: “Defesa! Defesa!”?
Temos a tendência de considerar que no esporte o belo é atacar, e que é feio defender-se. Por que? Talvez porque o torcedor não-apaixonado está mais interessado em ver um grande jogo, e não na vitória de A ou B. Para ver um grande jogo, é preciso que os dois times ataquem muito. E afinal de contas a palavra “goal” significa “objetivo” em inglês. O jogo existe para que gols aconteçam. Evitar os gols do adversário deve ser encarado sempre como uma segunda prioridade, não como a principal.
E, de um modo geral, para atacar é preciso um mínimo de talento e de tática, e para defender-se, aparentemente, não. Conduzir a bola até a área e acertar o gol requer habilidade individual e coletiva, inclusive para evitar que os defensores interrompam a jogada. Quanto a estes, basta-lhes interromper a jogada e sua função já foi cumprida. Devem existir umas 100 maneiras de fazer um gol, e umas 100 mil de evitá-lo. Prensar a bola, dar um bico pro lado, empurrar para a lateral, jogar para escanteio, chutar pro alto... Qualquer coisa que o zagueiro-zagueiro faça chama-se missão cumprida. Não precisa técnica nem muito talento. Aparentemente.
Há, contudo, quem faça da defesa uma arte. O futebol italiano é quase todo assim. Vi numa revista inglesa uma bela descrição de como as seleções italianas costumam se comportar numa Copa: “Atacadas, elas se retraem como uma mola de metal, e, ao retomar a bola, atiram-se para diante como o bote de uma serpente”. É mais ou menos como jogava o Inter de Milão do técnico José Mourinho, recente campeão europeu, eliminando inclusive o melhor time do mundo, o Barcelona. Em vez do chutão pra cima, uma ocupação sistemática do campo por um semicírculo de jogadores cercando a bola onde ela vá, prontos para tomá-la e desfechar o contra-ataque. Para muitos um futebol feio. Para os gurmês, um raro exemplo de defesa elevada à categoria de grande arte e de refinada estratégia.
sábado, 23 de outubro de 2010
2381) A estética do Por Essa Eu Não Esperava (23.10.2010)

(www.killmydaynow.com)
O folhetim é o reino da surpresa. Um autor hábil sabe manipular os dois tipos: a surpresa para o leitor, e a surpresa para o personagem. Na primeira, o leitor está acompanhando a história, tranquilo, cheio de confiança, quando de repente algo acontece, um fato extraordinário, uma revelação inesperada, e é como se o chão se abrisse por baixo dos seus pés. O leitor fica boquiaberto. A revelação que foi feita altera tudo que ele vinha pensando sobre um aspecto qualquer da história. Muitos leitores são forçados a pousar o livro enquanto reorganizam os pensamentos. Quando é na novela da TV, muita gente espera o intervalo comercial para pegar o celular e ligar para uma amiga: “Você viu o que eu acabei de ver?!”.
As revistas de TV acabaram com esse carrossel de emoções. Hoje, grande parte das pessoas já sabe o que vai acontecer no capítulo daquela noite, e liga a televisão apenas para curtir os detalhes e saborear o já sabido. Isto está sabotando um dos prazeres principais do folhetim, o prazer de ser surpreendido. Mas por outro lado as redes estão cultivando um outro prazer, aquilo que poderíamos chamar a “prelibação”da surpresa. É o segundo tipo de surpresa: quando ela ocorre para o personagem, não para o público. O exemplo clássico disto é o da comédia. Se mostramos um personagem correndo na rua e de repente ele escorrega numa casca de banana e cai, temos uma explosão repentina de riso. Mas, ao invés dessa explosão repentina, temos um riso mais contínuo e mais cumulativo se mostramos o personagem correndo, a casca no chão, o personagem avançando, a casca mais próxima, até o escorregão e a queda. O fato de saber o que vai acontecer leva o espectador a rir por antecipação, sem que isto o impeça de rir de novo quando a queda de fato acontece.
Isto vem ao encontro da famosa teoria do suspense de Hitchcock. Ele dizia que o suspense nasce da onisciência do espectador: ele sabe algo que o personagem não sabe. Se dois homens conversam num restaurante e vimos alguém, antes da chegada deles, colocar embaixo da mesa uma bomba relógio, isto provoca o suspense: a bomba vai explodir? Os homens, sem saber de nada, conseguirão ir embora a tempo? Suspeitarão da bomba e tentarão desarmá-la? A onisciência do espectador o faz considerar várias soluções, ficar hesitando entre diversos desfechos possíveis para a cena. Ou seja, é uma cena com resultado emocional muito mais rico e prolongado do que a mera surpresa repentina.
O folhetim tanto pode nos dar a surpresa brusca quanto a surpresa solidamente construída diante de nós, visando o personagem. Somos capazes de acompanhar as maquinações tenebrosas do vilão, a vidinha sossegada e desprevenida da futura vítima, a atividade febril do herói que tenta evitar o pior... Sabemos de tudo, antevemos tudo. Mas quando o personagem se surpreende, quando cai sobre ele o terrível raio da fatalidade, a surpresa é também um pouco nossa.
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
2380) Os direitos dos autistas (22.10.2010)

(Ari Ne'eman)
Amigos meus postaram um texto no Facebook dizendo: “As pessoas precisam entender que as crianças com necessidades especiais não estão doentes. Elas não procuram uma cura, apenas aceitação”. Eu estava justamente começando a preparar uma coluna sobre este assunto, abordando a questão dos autistas. Autistas são aquelas crianças que por alguma razão têm dificuldade de se relacionar com outras pessoas, demoram a aprender a falar, a andar; são ensimesmadas, têm baixa afetividade, comportam-se de maneira mecânica, têm hábitos extravagantes (embora inofensivos). A variedade de sintomas é enorme.
Muitos autistas crescem e tornam-se funcionais. Este é o termo pragmático, utilitário, egoísta, com que nossa sociedade premia os que se integram nela. Funcionam – como uma máquina obediente. Há pouco, o presidente Obama nomeou um autista para o National Council of Disability (NCD), um painel que assessora medidas na área da saúde pública, escolas, e reformas em geral para favorecer os portadores de deficiência (ver: http://tinyurl.com/2cptc8p). Ari Ne’eman afirmou à imprensa que os autistas precisam de respeito, direitos civis e acesso aos serviços da comunidade; o que não precisam é de piedade e de cura. Os autistas, diz ele, não querem se tornar iguais às outras pessoas, querem ser como são (pois se sentem bem sendo assim) e ter os mesmos direitos. “A comunidade dos autistas”, diz ele, “não tem se focado nessas questões de qualidade de vida e de direitos civis, porque tem sido distraída por questões como a causa da doença e as possíveis curas”.
O autismo consiste, em grande parte, na incapacidade de ter empatia, de criar um modelo mental dos pensamentos das outras pessoas e reproduzi-lo, identificando-se com elas. Mesmo os autistas funcionais têm dificuldade em perceber duplos sentidos, ironias, gozações, etc. Um autista tende a interpretar ao pé da letra tudo que vê. Um autista tem dificuldade em perceber quando alguém está blefando; e é praticamente incapaz de blefar. Autistas não sentem necessidade de falar com outras pessoas com os olhos nos olhos (isto não tem uma função especial para eles, como tem para nós); não têm disposição para o que se chama de “small talk”, conversar bobagem na companhia de outras pessoas, apenas para criar um momento de camaradagem, de comunicação sem compromisso. E os autistas (diz Ne’eman) querem continuar sendo assim.
O autista está integrado num movimento de “neurodiversidade”, em torno da ASAN (Autism Network International - http://www.autisticadvocacy.org/) . É o movimento dos que têm uma mente diferente da nossa. E que se sentem no direito de tê-la. Diz Ne’eman: “A vida diária num mundo organizado para as outras pessoas é, para nós, como atravessar um campo minado. Há um grande número de regras sociais que não compreendemos. E as consequências para quem viola essas leis são terríveis”.
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
2379) A Presidência segundo William Tenn (21.10.2010)

(o livro onde o conto aparece)
Comentei aqui o conto de Isaac Asimov, “Democracia Eletrônica” (1955) em que o processo eleitoral no futuro consistirá em encontrar um eleitor perfeitamente mediano para escolher, sozinho, o melhor presidente para os EUA. É possível que Asimov tenha se inspirado no conto “Null-P”, de William Tenn, publicado em 1950 na revista Worlds Beyond. Tenn foi um dos melhores satiristas da FC dessa época, principalmente através das revistas Galaxy e The Magazine of Fantasy and Science Fiction, que trouxeram uma abordagem mais literária e menos tecnológica aos temas da FC.
O conto narra como, após a II Guerra Atômica, o mundo está feito em pedaços e os EUA tentam se reorganizar politicamente. Tanto a Costa Leste quanto a Costa Oeste desapareceram, e “uma vez que tudo que restava do país era o Meio Oeste, o Partido Democrata não existia mais”. A insegurança é total; e então um hospital descobre, durante exames de rotina, um indivíduo estatisticamente normal, chamado George Abnego: “Por uma combinação de circunstâncias não mais notável do que a que produz um ‘royal straight flush’ no pôquer, o físico de Abnego, sua psique e outros atributos variados haviam produzido essa criatura lendária: alguém estatisticamente mediano. (...) Ele tinha casado na idade exata, no ano, mês e dia, em que segundo os estatísticos um americano médio casava; escolhera uma mulher com uma diferença de idade exatamente igual à média estatística; sua renda declarada era a exata renda média de um americano naquele ano”. E assim por diante.
Abnego é eleito presidente dos EUA. A explicação filosófica é que “o homem do século 20 escapara das estreitas fórmulas filosóficas gregas, o bastante para ser capaz de imaginar uma lógica não-aristotélica e uma geometria não-euclidiana; mas até então não tivera a temeridade intelectual de criar uma política não-platônica”. Platão definira a política como o governo dos melhores, e durante milênios a única divergência era sobre quais seriam os critérios para definir essa “melhoridade” e quais os métodos de escolha. Ninguém questionara o princípio básico, até o partido lançador de Abnego propor o conceito do “não-melhor”, da “não-elite”, do governo do médio. Tenn sugere que indícios atuais deste processo são as campanhas que insistem o tempo inteiro para que os candidatos afirmem ser iguais a todo mundo, tomem cafezinho, beijem bebês, etc.
Abnego reelege-se sem parar. Segue-se um período de imensa calma política, em virtude da sua incapacidade de tomar decisões. Ele escolhe ministérios igualmente medianos e inexpressivos. A corrida armamentista desaparece junto com as inovações tecnológicas. Quando uma fonte de energia se esgota, eles regridem à solução anterior. “Os americanos”, diz Tenn, “sempre conhecidos por sua loucura, tinham finalmente se especializado em cretinismo”. Por fim ele se torna Presidente da Terra. Milênios depois, são os cães que estão governando o planeta.
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
2378) “Modesty Blaise” (20.10.2010)

Conversando estes dias a respeito de adaptações de quadrinhos para o cinema, me veio à lembrança este filme de Joseph Losey que vi por volta dos 16 anos, e que é baseado numa HQ britânica. Na época, o filme me pareceu a encarnação da Modernidade. Cenas extravagantes e meio surrealistas, narrativa rápida, entrecortada, descontínua (o que para mim, na época, era sinônimo de genialidade). Eu tenho uma, hmmm, cópia para colecionadores; botei no DVD e assisti. David Thomson comenta que o filme é “divertido, mas desnecessário”, e que significava “uma ruptura de Losey com a seriedade, mas sem demonstrar senso de humor”. É isso mesmo.
Modesty é uma espécie de espiã informal que o governo britânico usa como despiste para evitar o roubo de uma valiosa coleção de diamantes. Como é de se esperar, a ação pula de Londres para Amsterdam, daí para a África árabe, de lá para ilhas tropicais... Peripécias se sucedem, sem a necessidade de explicações ou de encadeamento lógico. Como numa HQ despretensiosa (e como em qualquer filme em que o sensorial se sobreponha ao intelecto), as paisagens e as situações surgem pelo seu potencial de ação ou de imagem, e pouco importa se a narrativa as pede; mas são dirigidas por um cineasta mais propenso à reflexão do que à ação. Há cenas divertidas: um agente apertando a campainha de uma casa com a ponta do guarda-chuva, e a casa explodindo; o gangster-dândi (Dirk Bogarde) tendo que escolher entre duas lagostas para o almoço e queixando-se: “Decisões! Decisões! Quero as duas”; Modesty trocando de roupa, exibindo um escorpião tatuado na coxa, e dizendo: “Tenho um ferrão na cauda”; o gangster bebendo um drinque enorme onde nada um peixinho dourado; no final, amarrado ao chão do deserto, ele implora: “Champanhe... champanhe...” São algumas das cenas marcantes, e as únicas que eu lembrava.
Modesty Blaise é uma tentativa de fazer um cinema pop britânico, algo que a série James Bond estava conseguindo com sucesso. Mônica Vitti, a estrela de Antonioni, é um dos charmes do filme, com aquela sua boquinha “vem cá”. O ano de 1966 foi a era da “Swinging London”, quando a capital inglesa, com Beatles e Rolling Stones à frente, era a Meca do pop. Modesty compartilha o espírito descontraído, ilógico e “banda vuô” de filmes como Help de Richard Lester. Também tem algo de Blow Up, que Antonioni estava rodando em Londres, ao mesmo tempo. É curioso que os filmes de Losey e Antonioni compartilhem dois detalhes que chamam a atenção: um plano de detalhe de uma mão fazendo prestidigitação (em Modesty com uma bolinha, em Blow Up com uma moeda), e um mímico com rosto pintado de branco, que aparece com destaque em Modesty e, em grupo, em algumas cenas cruciais do filme de Antonioni. Prestidigitação e teatro são duas palavras chave para o entendimento da angustiada fábula existencialista de Antonioni, e da divertida e inconsequente HQ animada de Losey.
terça-feira, 19 de outubro de 2010
2377) O Ulisses espanhol (19.10.2010)
Ao indicar o Ulisses espanhol, surge uma situação curiosa: o livro escolhido por Cohen é Larva, de Julián Rios, de 1983. Ora, isto é mais de meio século após o livro de Joyce. O Modernismo é considerado um momento típico das primeiras décadas do século; será que somente nos anos 1980 a Espanha tomou conhecimento disto?
Em parte, é possível. Desde a Guerra Civil nos anos 1930 a Espanha mergulhou na ditadura franquista que manteve o país num clima cultural fortemente hostil a manifestações de modernidade. Talvez um concorrente espanhol possível para o livro de Rios fosse o romance de Felipe Alfau Locos: a Comedy of Gestures, de 1928 (um romance de contos interligados, muito elogiado pela crítica), mas este foi escrito em inglês, e publicado nos EUA em 1936.
Em todo caso, Cohen escolheu o livro de Rios, e justifica assim esta escolha:
“Talvez seja mais adequado considerá-lo o Finnegans Wake espanhol. A reescritura do mito de Don Juan feita por Julián Rios é acima de tudo um romance com a linguagem. Milalias, vestido de Don Juan, vai em busca de Babelle, vestida de Bela Adormecida, pelo meio de um baile à fantasia, numa mansão decadente em Londres. Os comentários sobre as identidades dos convivas mascarados acabam dando lugar à crítica sobre o poder de mascaramento das palavras – o modo como elas eclipsam significados mais antigos por trás de seu uso cotidiano. A façanha verbal de Rios é igualada apenas pela dos seus tradutores, Suzanne Levine e Richard Francis, o que prova mais uma vez que a verdadeira natureza de um romance antecede o ato de sua escrita, sendo uma espécie de forma ideal buscando concretizar-se em todas as línguas do mundo”.
Sendo uma obra modernista tardia, temporã, Larva se beneficia de toda uma cultura acumulada de décadas, não apenas em obras literárias seguidoras de Joyce, mas também da fortuna crítica que analisou seus processos, e da sua recepção por parte dos leitores, algo que acaba pavimentando o caminho para que obras futuras sejam aceitas com mais naturalidade. Ainda assim, inquietou por causa de seus trocadilhos multilinguísticos, seus neologismos, suas mutações verbais, sua narrativa sem foco fixo.
Juan Goyttisolo, ele próprio um grande experimentalista, comentou que Larva era “um terremoto literário e linguístico” que inquietou a literatura espanhola oficial, porque “revelava, através de ilações e de jogos que magnetizam o leitor, conhecimentos e leituras de cuja seiva criadora o nosso Parnaso está carente”.
Rios, que em geral ajudou nas traduções de seus livros, costumava dizer que “a tradução é uma nova oportunidade de melhorar o original; nenhum livro é perfeito”.
domingo, 17 de outubro de 2010
2376) Drummond: mais “Lanterna Mágica” (17.10.2010)

(Itabira, MG)
Nos oito poemas curtos de “Lanterna Mágica” (em Alguma Poesia, seu livro de estreia de 1930), Carlos Drummond, como um turista dos anos 1920 que chega de viagem, usa essa engenhoca-de-época para projetar na parede imagens coloridas dos lugares por onde andou. O terceiro poema, “Caetés”, é uma minúscula vinheta de cinco linhas, meio irrelevante, na qual ele inclusive repete praticamente a mesma imagem que usara no poema anterior, sobre Sabará, ao dizer: “A igreja de costas para o trem”. (Em Sabará, é a cidade que está “atrás daquele morro, com vergonha do trem”, e “só as torres pontudas das igrejas não brincam de esconder”).
O poema IV, Itabira, promete pelo título autobiográfico algum tipo de epifania pessoal, mas é seco como uma foto em preto-e-branco: “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê. / Na cidade toda de ferro / as ferraduras batem como sinos. / Os meninos seguem para a escola. / Os homens olham para o chão. / Os ingleses compram a mina. / Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”. Este poema é uma espécie de anotação para o que é talvez o primeiro grande poema de CDA sobre sua terra natal, “Confidência do Itabirano” (em “Sentimento do Mundo”).
O poema V, “São João Del-Rei”, volta a evocar o onipresente trem, ao se abrir com a pergunta: “Quem foi que apitou? / Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho”. Mais uma vez Drummond fotografa a imobilidade das cidadezinhas mineiras: enquanto Sabará era “entrevada”, São João Del-Rei é “paralítica”. Lá, “o Rio das Velhas lambe as casas velhas”; aqui, as ruas estão “cheias de mulas-sem-cabeça / correndo para o Rio das Mortes”. Embora a intenção do poeta pareça ser (como a de qualquer turista que fotografa) registrar o que mais lhe chama a atenção em qualquer paisagem, captar o que lhe parece mais único e mais característico, vê-se que acaba registrando sempre as mesmas coisas. As cidades de Minas lhe parecem todas parecidas.
Meu fragmento preferido neste poema-conjunto é o de número VI, “Nova Friburgo”. Consta de apenas uma frase: “Esqueci um ramo de flores no sobretudo”. Isto é tudo que o poeta anota sobre a cidadezinha fluminense. Esta frase me marca de um modo especial porque o Padre Massote, diretor da Escola Superior de Cinema da UCMG, onde estudei, certa vez a citou erradamente numa aula sobre roteirização. Disse ele: “Às vezes uma única imagem é o bastante para captar o espírito de um ambiente. Drummond tem um poema sobre Nova Friburgo que tem apenas uma frase: ‘Um cravo na lapela’”. O fato de Massote confundir as frases é menos importante do que o fato de as duas frases terem uma certa equivalência simbólica ou poética. Tanto o ramo de flores no sobretudo quanto o cravo na lapela parecem evocar um ambiente de uma certa formalidade no trajar, de um certo cavalheirismo meio fora de moda, de uma certa afetividade reprimida. E a lição dele, via Drummond, estava coberta de razão.
sábado, 16 de outubro de 2010
2375) Um Nobel para Vargas Llosa (16.10.2010)

O peruano Mario Vargas Llosa acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Quando essas coisas acontecem, minha primeira reação é lamentar as inúmeras vezes em que me sentei com um livro do autor laureado, li 50 páginas e larguei para ler um livro de outro cara. No “boom” da literatura latino-americana, nos anos 1970, comecei a comprar tudo quanto era livro traduzido dos autores latinos. Pelas minhas mãos passaram livros de Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Manuel Scorza, Carlos Fuentes, Lezama Lima, Manuel Puig, Miguel Ángel Astúrias, Juan José Arreola, e provavelmente outros que não lembro agora. Todos ótimos escritores, claro, mas, por alguma razão misteriosa, os únicos que me ficaram na preferência até hoje foram Garcia Márquez, Borges, Cortázar e Bioy Casares.
Vargas Llosa é um caso especial, porque tentei sem sucesso ler La ciudad y los perros (em português, “Batismo de Fogo”), suas memórias de estudante num colégio militar peruano, mas o livro que acabou caindo nas minhas graças foi Pantaleão e as visitadoras (que dizem ser uma obra menor), uma sátira muito divertida sobre um oficial do exército, muito conservador e emproado, a quem cabe a (in)grata tarefa de fornecer prostitutas para os soldados acampados num posto avançado na selva. As situações são hilárias, o personagem é impagável, e Llosa ainda consegue um “tour de force” com seu modo de narrar a maior parte do livro num esquema aparentemente impossível de manter por muito tempo, invertendo diálogo e descrição.
Nunca li o famoso A Guerra do Fim do Mundo, que Llosa escreveu sobre a Guerra de Canudos, porque sempre achava que primeiro precisava reler Os Sertões (o que só fiz recentemente), e depois porque muitos amigos meus detestam o livro, consideram-no uma interferência indevida em assuntos íntimos e privados de nossa História e da nossa Literatura. Dividido, fui ler outras coisas. Como por exemplo o divertidíssimo Tia Júlia e o Escrevinhador, que é para mim o grande livro dele. É uma história meio autobiográfica, sobre a paixão de um rapaz pela própria tia (que ele insiste em dizer: “Você não é minha tia, é apenas a viúva do meu tio”), alguns anos mais velha. Ele se apaixona por ela e insiste até convencê-la a casar; mas isto é apenas o começo das dificuldades. O caso de amor é intercalado com os capítulos dos melodramas radiofônicos escritos por um radialista que reencarna os folhetinistas do século 19 e os autores de pulp fiction dos EUA. O livro dá um retrato veraz do que era o Peru nessa época. (Houve uma desconchavada adaptação para o cinema, com Keanu Reeves e Barbara Hershey, transpondo a ação para Nova Orleans, já que o público dos EUA não se interessa por histórias passadas em países que ele não sabe onde ficam.) Não sei se o Nobel foi justo, sei que os dois livros que li de Vargas Llosa podem ser relidos até o fim da vida.
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
2374) Os mineiros e os anões (15.10.2010)

O resgate dos 33 mineiros chilenos nos lembra as individualidades ocultas por trás dos números. Quando ouvimos falar que 33 mineiros estão soterrados não é muito diferente de sabermos que 2.900 pessoas morreram no ataque ao World Trade Center. É um número. Quando ouvimos notícia sobre uma guerra, ficamos sabendo que 20 mil soldados morreram. No outro dia, vem uma correção: não foram 20 mil, foram 21 mil. Que diferença faz, para nós, essa mudança da algarismos? Nenhuma. O Globo de hoje (quarta, dia 13) traz uma página inteira sobre os mineiros, fazendo algo que a imprensa aconselha a si mesma há décadas: “personalize a notícia”. Ao invés de estatísticas, conte histórias individuais. No fim da história, quando você fornecer um número, pode ser que algum leitor mais inteligente pegue aquela história e multiplique pelo número: “são 33 casos como este, são 20 mil casos como este”. Mas se começar a discussão pelo aspecto quantitativo, o leitor não vai ter o que multiplicar. Morreram 20 mil ou 200 mil, tanto faz.
Dizem que na história tradicional de Branca de Neve os sete anões (que, aliás, também trabalhavam com mineração) eram um grupo indiferenciado. Uma porção de anões sem nome e sem rosto. Foi o talento de Walt Disney e seus redatores que decidiu dar a cada um deles um nome e uma característica: daí que temos Mestre, Zangado, Soneca, Dunga, Feliz, Atchim e Dengoso. Disney sabia que a riqueza de possibilidades e de situações (dramáticas ou cômicas) se multiplica quando temos um grande número de individualidades bem marcadas. Uma situação qualquer envolvendo Zangado e Soneca vai ser desenvolvida, necessariamente, de um modo diferente do que se fosse a mesma cena envolvendo o Mestre e Atchim. Roteiristas de cinema fazem isso há milênios.
À medida que os mineiros emergem do túnel vertical, já se tornaram tão individualizados quanto os anões de Branca de Neve. Este aqui é o mais velho, com mais de 60 anos; aquele ali é o mais novo, com 19. A mera percepção desses números faz com que cada um deixe de ser um “número” e ganhe um traçozinho de individualidade. Tem um que tem duas namoradas. Outro que já sobreviveu a três desmoronamentos. Tem um que é o escritor do grupo. Outro que estava em seu primeiro dia de trabalho quando ocorreu o acidente. Tem um que é boliviano; e outro cujo filho estuda Medicina. À medida que surgem, vão se transformando num nome, num pequeno parágrafo de biografia, num rosto sisudo ou sorridente. Nunca saberemos quem são, como pessoas, mas tornam-se personagens visíveis, cada um com suas peculiaridades. É para personalizar números que a imprensa existe, para contar dramas coletivos através de retratos individuais. É mais fácil com sete anões do que com 33 mineiros, e mais fácil com estes do que com 20 mil mortos de uma guerra, mas mesmo com meia dúzia pode-se dar uma pequena amostra do drama individual a ser multiplicado pela frieza das cifras.
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