Ao indicar o Ulisses espanhol, surge uma situação curiosa: o livro escolhido por Cohen é Larva, de Julián Rios, de 1983. Ora, isto é mais de meio século após o livro de Joyce. O Modernismo é considerado um momento típico das primeiras décadas do século; será que somente nos anos 1980 a Espanha tomou conhecimento disto?
Em parte, é possível. Desde a Guerra Civil nos anos 1930 a Espanha mergulhou na ditadura franquista que manteve o país num clima cultural fortemente hostil a manifestações de modernidade. Talvez um concorrente espanhol possível para o livro de Rios fosse o romance de Felipe Alfau Locos: a Comedy of Gestures, de 1928 (um romance de contos interligados, muito elogiado pela crítica), mas este foi escrito em inglês, e publicado nos EUA em 1936.
Em todo caso, Cohen escolheu o livro de Rios, e justifica assim esta escolha:
“Talvez seja mais adequado considerá-lo o Finnegans Wake espanhol. A reescritura do mito de Don Juan feita por Julián Rios é acima de tudo um romance com a linguagem. Milalias, vestido de Don Juan, vai em busca de Babelle, vestida de Bela Adormecida, pelo meio de um baile à fantasia, numa mansão decadente em Londres. Os comentários sobre as identidades dos convivas mascarados acabam dando lugar à crítica sobre o poder de mascaramento das palavras – o modo como elas eclipsam significados mais antigos por trás de seu uso cotidiano. A façanha verbal de Rios é igualada apenas pela dos seus tradutores, Suzanne Levine e Richard Francis, o que prova mais uma vez que a verdadeira natureza de um romance antecede o ato de sua escrita, sendo uma espécie de forma ideal buscando concretizar-se em todas as línguas do mundo”.
Sendo uma obra modernista tardia, temporã, Larva se beneficia de toda uma cultura acumulada de décadas, não apenas em obras literárias seguidoras de Joyce, mas também da fortuna crítica que analisou seus processos, e da sua recepção por parte dos leitores, algo que acaba pavimentando o caminho para que obras futuras sejam aceitas com mais naturalidade. Ainda assim, inquietou por causa de seus trocadilhos multilinguísticos, seus neologismos, suas mutações verbais, sua narrativa sem foco fixo.
Juan Goyttisolo, ele próprio um grande experimentalista, comentou que Larva era “um terremoto literário e linguístico” que inquietou a literatura espanhola oficial, porque “revelava, através de ilações e de jogos que magnetizam o leitor, conhecimentos e leituras de cuja seiva criadora o nosso Parnaso está carente”.
Rios, que em geral ajudou nas traduções de seus livros, costumava dizer que “a tradução é uma nova oportunidade de melhorar o original; nenhum livro é perfeito”.
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