domingo, 21 de março de 2010

1808) Natal 2008 (25.12.2008)



(A Máquina de Escrever as Horas, em http://bit.ly/9zDdxe)


...lá vem outro Natal, lá vem chegando,
trazendo em si verão, e sol caliente.
E nas ruas a azáfama da gente
superlota as calçadas da cidade.
Mais um ciclo venceu a humanidade,
outra volta no céu deu o planeta;
quem me dera uma Pedra de Roseta
pra poder decifrar esse mistério!
Mas a Voz do Destino, em som estéreo,
me desanda a falar em outro ritmo.

“Jamais entenderás o logaritmo
que leva o mundo a produzir seus fatos,
por complexos que são, por inexatos,
por sutis disfarçados de absurdos.
Se o Cosmos fosse um som, seríeis surdos;
se fosse só de Luz, cegos sem guia.”
Assim a Voz, pausada, proferia
os seus vagos, randômicos conselhos,
e eu cá, coçando em ócio os meus... cabelos,
matutava nos prós de dar-lhe ouvidos.

Pois, vede: se são cinco os meus sentidos,
e cinqüenta milhões meus sentimentos,
turbilhões de conceitos, pensamentos,
e as intrincadas variantes suas;
se meu corpo é um só e as mãos só duas,
que posso ambicionar de transcendência?
Tenho só o alfabeto da Ciência,
e as sílabas que armei até agora
esclarecem bem pouco do Lá Fora
deixando intacta a treva do Aqui Dentro...

Pois nenhum homem vislumbrou seu centro,
nenhum soube quem é, nem onde está.
Que voz, pergunto, me iluminará,
que resposta terei deste Universo,
a não ser a que eu mesmo esboço em verso?
Logo eu, imprudente escafandrista
que mais desce onde menos chega a vista,
e plunge vertical dentro de abismos
guiando-se com a lâmpada dos Ismos,
luz que transforma em si tudo que toca.

Minha voz não dá trégua, exige, invoca,
dialogando em vão com a Voz Alheia,
que mais que a minha é sonorosa e cheia
e em ser só voz só fala e não me escuta.
Como posso prevalecer na luta
com os circundantes ecos de mim mesmo?
Prossigo, a custo, à força, à balda, a esmo,
pelo bruto prazer do Ser-em-Si
que na cruz do Agora com o Aqui
arde, e produz um som que diz “Eu Sou”.

Quatro horas! A tarde já passou.
E o que fiz deste dia? Algumas linhas.
Poucas, vácuas, efêmeras... mas minhas.
São o que vim dizer, e estou dizendo.
E a esfera armilar, resplandecendo,
baila solta no espaço sideral.
Estrelas com prefixo sempre em “al”
e uma luz mais antiga do que a Terra
já brilhavam em vão quando na Serra
abri meus olhos, recolhi seus fótons.

E os cientistas aceleram prótons.
E o Mercado a comer trilhões de zeros.
E nos quintais do mundo os mesmos Neros,
queimando as Romas e tangendo as liras.
E o celofane a embrulhar mentiras,
e o Photoshop a igualar os rostos,
e o gosto-médio a nivelar os gostos,
neste imenso Brasil desperdiçado:
um refém do Partido e do Soldado,
vampiro às custas do seu próprio sangue.

São fogos de artifício ou bang-bang
este som que me vem daqui do morro?
E esses gritos, de gol ou de socorro?
Que sei eu deste Rio e seu futuro?
(E esta dor, que não passa, e que não curo?
E este amor, que me salva e não entendo?)
E o fim do ano volta, e vem trazendo
tudo quanto esquecemos que já trouxe.
Cumpriu-se a espiral, e adelgaçou-se
o tecido do Tempo. Mas é quando...

1807) Os cinco presentes de Cristo (24.12.2008)



(Cristo Amarelo, de Paul Gauguin)

De vez em quando, no Natal, eu dou uma geral nos presentes que ganhei na infância por ter sido criado numa família cristã. Cresci como os jovens da minha geração, impérvios à fé dos seus antepassados, inoculados de modernidade e de ciência, e com o misticismo (o pouco que lhe restou) pulverizado em direções diversas: Budismo, Taoísmo, etc. Mesmo assim, o Cristianismo me deu presentes que de vez em quando examino. Não direi que os uso, ou que os mereço. Mas se ganhei de presente, são meus também.

O primeiro que me vem à mente é a fraternidade, o amor fraterno para com pessoas desconhecidas. É o que menos pratico e mais admiro. Lembra-me a história do cara que vem numa estrada, embaixo do sol quente, encontra um mendigo doente que nunca viu mais magro, coloca-o nas costas e o traz para a cidade. Alguém pergunta: “Não é pesado?” e ele diz: “Não. É meu irmão”. Eu não sou capaz de carregar nas costas um mendigo que não conheço; mas não sou um caso perdido, porque se vir alguém procedendo assim não vou mangar. Eu sei o que está acontecendo ali – e tem gente que nem sequer sabe.

Segunda coisa: a simplicidade, os pés no chão. Cristo fez uma revolução humanista sem erguer uma espada, sem empunhar um lápis. Tudo que fez, fez com a simples presença, as palavras, as ações – isso que os roqueiros de hoje chamam de atitude. Era um homem que tinha a coragem de proceder de modo diferente. Foi torturado e morto, mas mudou o mundo – sem dinheiro, sem exércitos, sem mídia. E não foi o único: São Francisco e Gandhi fizeram o mesmo.

Outro presente com o qual não sei o que fazer é o perdão, a arte de esvaziar conflitos. Tenho a meu favor o fato de que nunca brigo, mas isto é mais uma estratégia de sobrevivência do que bondade inata. Não sei como eu procederia se tivesse Poder e alguém me pisasse os calos. Mas Cristo tornou possível a escolha pelo perdão; transformou o perdão numa alternativa real. Forçou cada um de nós a, pelo menos, hesitar antes da vingança. E o mundo não foi mais o mesmo.

Outro legado cristão é o Mistério – e aqui, amigos, estou num terreno meu. Quem foi o Cristo histórico? Por onde andou entre os doze anos, quando embasbacava o Templo, e os trinta, quando arrebatou a Judéia? Quem era ele de fato? O que de fato lhe ocorreu? Cristo não apenas nos ensina a beleza vertiginosa do mistério, como também nos reconcilia com o fato de que este é necessário, é insolúvel, e não há nem precisa haver respostas finais.

E finalmente vem o meu presente cristão mais precioso: o exemplo de falar por imagens vívidas, fortes, inesquecíveis. Não apenas as parábolas de Jesus, mas as comparações, os aforismos, as palavras de ordem. Cristo foi um repentista, dotado de língua mais rápida que a de Antonio Marinho e de imagens mais incisivas que as de Pinto do Monteiro. O Sermão da Montanha é uma cantoria solo, repleta de versos espantosamente belos. Este presente, pelo menos, não desperdicei de todo.

1806) A Rendição ao Concorrente (23.12.2008)



Suponhamos que numa rua há dois restaurantes vizinhos: uma churrascaria e um restaurante natural. O primeiro é adepto da picanha, da lingüiça, da costela. O outro exalta as virtudes do aipo, do gergelim, do queijo tofu. Um belo dia o gerente deste último, em dificuldades financeiras, resolve oferecer um bifezinho bovino, que começa a vender que é uma beleza. Quando o entrevistam na TV, ele dá sua receita de sucesso: “Meu sucesso prova que a comida natural caiu no gosto da população, basta ver a receptividade encontrada pelo nosso bife de panela”.

Acontece mais vezes do que se pode imaginar. Tenho visto, por exemplo, no cinema brasileiro. Os filmes brasileiros não dão público? Por que? Por causa da televisão? Muito bem: chamemos então as modelos-e-atrizes da televisão para trabalhar em nossos filmes. E tome “filmes cabeça”, sombrios, existenciais, “artísticos”, estrelados por aquelas menininhas feitas de porcelana e pétalas de rosa, que pronunciam seus diálogos com a indefinível expressão de quem fita uma “dália” pregada na parede oposta.

Quando a Jovem Guarda tomou conta do Brasil, as igrejas, alarmadas com a fuga em massa dos joves, decidiu concorrer com a Jovem Guarda de maneira salomônica: contratando conjuntos de Jovem Guarda para tocar na Missa! Não é muito diferente da história que se conta sobre o forrozeiro Dominguinhos. Ele recebeu o telefonema de um contratante: “Dominguinhos, queremos um show seu. Todo mundo só contrata aquelas bandas de forró eletrônico com dançarinas de minissaia. Nós queremos o forró pé-de-serra, autêntico”. Dominguinhos: “Que bom, fico agradecido. Farei o show com todo prazer”. E o cara: “Muito bem. Só um detalhe... Dá pra botar no teu show umas dançarinas?...”

Existe uma força no sucesso que nos puxa em sua direção. É uma espécie de fototropismo, o fenômeno que faz as plantas se expandirem na direção da luz do sol, cuja presença elas sentem mesmo de forma indireta. Quanto mais afundado no fracasso e no saldo negativo, mais o sujeito sente, intuitivamente, que o dinheiro e as capas de revistas estão situados a tantos graus de latitude e tantos de longitude; e começa a migrar, devagar e sempre, naquela direção. Vejam os festivais de literatura: estão cada vez mais cheios de palestras de cantores de MPB. Basta o músico publicar um diário de viagem ou um livro infantil, os convites chovem. Por que? Porque o pessoal “do livro” sabe que o sucesso está na música, e não nos livros que, em tese, eles estão se propondo a divulgar.

Parece que quando o concorrente é muito forte, o melhor é render-se a ele, grudar-se a ele. Como no famoso comercial de rádio da TAP: “Nós somos a TAP, Transportes Aéreos Portugueses, uma das melhores companhias aéreas da Europa, agora atuando no Brasil. Temos as melhores aeronaves, as melhores rotas, o melhor atendimento. Faça-nos uma visita! TAP, avenida Rio Branco, 315, bem ao lado da... Va-ri-g, Va-ri-g, Va-ri-g!...”

1805) Nem patrimônio nem matrimônio (21.12.2008)



(resultado da busca no Google por "toxic wife")

A crise financeira mundial não está apenas evaporando o patrimônio de muitos milionários mundo afora: está fazendo o mesmo com seus matrimônios. Fico compadecido ao ver esses altos executivos, gente que embolsa centenas de milhões de dólares por ano em salários e mordomias, sendo abandonados pelas esculturais esposas que exibiam nas festas. Uma matéria sardônica de Tara Winter Wilson, no The Telegraph, faz um raio-X impiedoso de alguns divórcios que têm pipocado às centenas nos altos escalões do empresariado.

Ela fala do caso de Sasha, cujo marido perdeu o emprego no centro financeiro de Londres e cancelou a compra de um chalé de 3,4 milhões de libras, cuja decoração ela já estava encomendando. O que fez Sasha? Separou-se do marido e o processou por “crueldade mental”. Outro casal, Jack e Katie, que vivem numa mansão de um milhão de libras, foi às vias de fato quanto ele lhe comunicou a necessidade de um corte nos gastos. Não apenas as 53 mil libras anuais pelo colégio dos dois filhos, mas a redução das despesas com salão de beleza, um corte no cartão de crédito, e a redução do “staff” de empregados do Leste Europeu que a seguia por toda parte. A polícia (chamada pela filha pequena) veio em socorro de Jack, com o rosto partido por um vaso caríssimo.

Tara Wilson criou a expressão “Toxic Wife” (Esposa Veneno) para designar essas beldades que casam com tubarões-da-grana de olho no seu dinheiro, e batem em retirada quando o dinheiro desaparece, para fisgar em seguida outro milionário desatento. Ela a define como “a mulher que larga o trabalho assim que se casa, em princípio para criar um lar estável para os filhos que virão, mas que logo em seguida aluga um exército de criados para cuidar das tarefas domésticas, ficando com todo o tempo livre para fazer compras, ir aos restaurantes e desfrutar do luxo”.

Desde o colapso financeiro de setembro passado, os pedidos de divórcio na Inglaterra aumentaram 50%. Diz Wilson: “Essas caçadoras de riquezas são materialistas a um ponto tal que não têm a menor consideração por outras pessoas. Falta-lhes empatia com outros seres humanos.” Um marido abandonado descreve assim a ex-esposa: “Ela tem a personalidade de uma criança mimada, que começa a gritar no momento em que lhe tiram da mão um brinquedo”. Susie Ambrose, uma conselheira matrimonial de alto nível, diz que tais mulheres são exatamente como os homens de negócios com quem se casam: frias e implacáveis, quando se trata de dinheiro. “Não importa se o marido é gordo, velho, careca, pouco atraente: é no dinheiro que elas estão interessadas”. Susie ministra cursos (cujo preço vai de 10 mil a 60 mil libras) ensinando os homens a distinguir entre essas “esposas veneno” e as mulheres sinceras. Há alguma lógica na cobrança de uma taxa tão alta – quem não pode pagar pelo curso também não corre o risco de ser vítima delas. A natureza é sábia, amigos. Um brinde à nossa pindaíba!

sábado, 20 de março de 2010

1804) Nonada de novo (20.12.2008)





Teorizar sobre a palavra “nonada” é um esporte nacional brasileiro. Encontrei por acaso o blog de Geraldo Teixeira (http://bit.ly/bpr9Ea), onde ele examina a genealogia desta palavra que abre o Grande Sertão: Veredas. Discutir seu significado não rende muito. Os analistas concordam ser uma forma de dizer “não + nada”.

A tradução em inglês, de Harriet de Onís, diz: “It’s nothing”, quando por mim não custava nada dizer “Nonothing”, ou “No-nothing” com hífen, para atenuar a estranheza. Estranheza que lá é bem maior, porque aqui são muitos os exemplos dessa palavra, que Rosa terá visto em mais de um lugar.

O blog de GT cita Gregório de Matos ("Vendo o pouco que duraste, / da vida foste um nonada, / nem foste rosa, nem nada, / se tão depressa acabaste"), cita Santa Teresa de Ávila (“Tenía que decir muy poco o nonada”), e cita Cervantes no Dom Quixote, quando o fidalgo compara as linhagens de pessoas que há no mundo: “Otros, que, aunque tuvieron princípios grandes, acabaron en punta, como pirámide, habiendo diminuído y aniquilado su principio hasta parar en nonada, como lo es la punta de la pirámide, que respeto de su basa o asiento no es nada.”

GT cita também um ensaio de Charles Feitosa (“No-nada. Formas brasileiras do niilismo”), em que este elogia a tradução alemã para o termo rosiano, que Curt Meyer-Clason desdobra numa frase: “Hat nichts auf sich”, que seria literalmente: “nada tem em si”.

Uma idéia que o próprio Rosa vem a glosar, quando Riobaldo pisa e repisa, num confronto verbal com Zé Bebelo: “Pois é, Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada. De nada... De nada...”

“Nonada” é de uso corrente. Numa tradução da década de 1950 das Histórias de Sherlock Holmes (sem data – não dá para saber se é posterior ao “GSV”), Agenor Soares de Moura a emprega, numa fala de Holmes a Watson: “Eu chego quase a ver você sussurrando nonadas à jovem dama da Âncora Azul, e recebendo em troca muito mais que nada” (a expressão no original é “soft nothings”).

E devo a Vladimir Carvalho a indicação de outra ocorrência, desta vez em Os Sertões de Euclides da Cunha (“O Homem”, capítulo 5):

“Diz uma testemunha: Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antonio Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem-se expostos à venda nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro”.







1803) Bienal vazia e pichação (19.12.2008)



Há cinqüenta dias uma moça está presa porque pichou com spray as paredes do prédio da Bienal de Artes de São Paulo. Quem lê esta coluna sabe que eu não vejo com simpatia os pichadores. Sou capaz de desculpá-los, como desculpo os escritores de livros ruins: coitados, só são capazes de fazer aquilo mesmo. Paciência; há coisas mais graves merecendo nossa atenção e nosso combate. Muitos pichadores deixaram de rabiscar aqueles monogramas ininteligíveis e se transformaram em grafiteiros, artistas que usam os mesmos sprays nos mesmos muros para produzir obras de arte. (Sim, eu considero que um grafito pode ser uma obra de arte.) Infelizmente, quem sujou a parede na Bienal não foi uma grafiteira, foi uma pichadora mesmo, que rabiscou ali os logotipos de seu grupo e foi agarrada pela polícia antes mesmo de acabar.

O curioso é que a Bienal mandou prender a moça, e presa ela está há 50 dias. Por mim, bastava dar-lhe um puxão de orelhas, uma lata de tinta branca e uma brocha, e dizer: “Só sai dali quando deixar a parede como estava”. Algo assim. Ela provavelmente espernearia, dormiria uma noite no chão, mas acabaria entregando os pontos. Pintava na parede um belo dum Malevich e saía de lá lépida e fagueira, para pichar no Anhangabaú.

Por falar em Malevich, a Bienal abriu este ano com uma idéia originalíssima: um andar inteiro em branco! Um pavilhão vazio, sem obras de arte, sem nada. Para quê? O saite da Bienal diz: “O segundo andar está completamente aberto, revelando sua estrutura e oferecendo ao visitante uma experiência física da arquitetura do edifício”. Conversa pra boy dormir. É falta-do-que-expor mesmo, porque até mesmo retratos da Virgem Maria besuntados de fezes (como apareceu numa exposição em Nova York há poucos anos) devem estar em falta. Existe uma crise do que dizer, do que fazer, do que mostrar, depois de décadas e mais décadas de qualquer pilantra bem-relacionado fazendo, dizendo e mostrando bobagens e pagando gente para dizer que aquilo é arte.

A natureza tem horror ao vácuo, diz a ciência popular. Qualquer vazio artificial é preenchido no mesmo instante, e com violência. A Bienal 2008 criou esse vácuo no seu segundo piso pela imensa, intransponível distância entre dois mundos mutuamente inacessíveis: uma Torre de Marfim de gente que não tem o que dizer, embora detenha todos os meios de produção, exibição e divulgação necessários; e uma Torre de Babel de gente que precisa dizer alguma coisa mas nunca teve acesso a nada, e consegue se exprimir apenas através de grunhidos gráficos, incompreensíveis, inarticulados, sujando a cidade que finge ignorar sua existência. Caroline Piveta, de 23 anos, está presa há mais de cinqüenta dias (cinqüenta dias!) porque tentou preencher o Vazio da Arte Contemporânea. Quando daqui a dez anos artistas-terroristas explodirem o Pavilhão da Bienal dizendo que é uma “intervenção”, os “curadores” e “críticos” continuarão sem entender nada.

1802) Terror em Mumbai (18.12.2008)



Existe no mundo uma Nova Guerra em curso, um novo conceito de guerra que nada tem a ver com imensas tropas, armamento pesado, invasão maciça de cidades, etc. A Nova Guerra é um prolongamento do terrorismo de 1914 (anarquistas jogando uma granada no carro do ministro, etc.) e consiste em enviar tropas minuciosamente treinadas para massacrar civis anônimos num local que tenha peso simbólico. Os atentados recentes em Mumbai voltam a demonstrar que essa estratégia é a que produz mais impacto.

Em Mumbai, um relato arrepiante saiu na “Forbes”, feito pelo americano Michael Pollack, cuja esposa é indiana. Os dois jantavam no Hotel Taj Mahal quando o tiroteio começou, e passaram a noite fugindo de prédio em prédio, de sala em sala, no escuro, caçados implacavelmente pelos terroristas, junto com dezenas de outras pessoas. (Leia a história toda em: http://bit.ly/bBkbRX).

Perseguidos pelos terroristas, Pollack e a esposa resolveram fugir separados, para aumentar as chances de que pelo menos um dos dois sobrevivesse para cuidar dos filhos. Os funcionários dos restaurantes, em muitos casos, trancaram os clientes em salões e deram a vida para protegê-los. Estamos falando de restaurantes de luxo, frequentados pela super-elite indiana e mundial. Ao que parece, quem trabalha com essas pessoas as considera dignas do sacrifício da própria vida, o que por um lado indica uma coragem admirável, por outra dá um retrato melancólico do poder moral das elites milionárias. Como dizia Orwell, “uns são sempre mais iguais do que os outros”.

Encurralados em salões de luzes apagadas, amontoados às dezenas no chão, os clientes usavam seus celulares e Blackberrys para se comunicar com parentes, com a imprensa, com as forças de segurança. Cochichavam, mandavam torpedos, davam e recebiam instruções. Em muitos momentos foram salvos porque alguém da polícia informava: “O terceiro andar acaba de ser tomado pelos terroristas, fujam daí”. Pollack, trancado numa latrina na escuridão total, ouviu a sala ao lado ser invadida e as pessoas serem fuziladas uma a uma: “Ninguém deu um grito sequer. Ouvíamos apenas os passos dos terroristas e os tiros sendo disparados”.

Há detalhes que parecem inventados por um bom escritor de thrillers como John Farris ou Stephen King: “Eu tinha perdido meu sapato direito na fuga, e precisei pegar no chão uma toalha de mesa e enrolá-la no pé, para poder caminhar sobre os cacos de vidro”. Ao amanhecer, Pollack consegue escapar, e do lado de fora do Taj reencontra a esposa, Anjali. Ele não sabia se ela sobrevivera, porque há três horas estavam sem contato. Os dois se abraçam. Pollack diz que quer tirar uma foto com o celular, com os dois diante do hotel em chamas, mas Anjali queria apenas sair dali o mais depressa possível. Tirar uma foto com o celular numa hora dessas! A Guerra pode ser nova, mas a Paz continua a mesma.

1801) Um crime de nossa época (17.12.2008)



(Bernard Madoff)

Comentei aqui (em 7.9.2005) o livro O Adversário de Emmanuel Carrere (Ed. Record). É a história de Jean-Claude Romand, um francês que fingia trabalhar na Organização Mundial da Saúde, e durante dezoito anos viveu das economias da mulher, dos pais, dos sogros. Pegava o dinheiro e dizia aplicar num banco suíço. Quando alguém queria fazer um saque, ele arranjava mais um empréstimo e aumentava a bola de neve. Quando foi descoberto, matou a mulher, os filhos, os pais, e tentou se suicidar. Está na cadeia até hoje. Sobre sua história foi feito um ótimo filme, L’Adversaire, dirigido por Nicole Garcia, com Daniel Auteuil.

O espantoso é que ninguém desconfiou. Mais espantoso ainda, contudo, é a quantidade de histórias parecidas que estão pipocando nos EUA após o estouro da bolha financeira dos bancos. É o caso de Marc Dreier, advogado de alto escalão em Nova York, que durante anos controlou um escritório que transacionava fortunas em fundos. Descobriu-se agora que o dinheiro desaparecido (em prejuízos, papéis fictícios, etc.) está na casa dos 380 milhões de dólares. Quase todos os 250 advogados que trabalhavam para ele estão à procura de emprego.

Mais grave ainda foi o caso de Bernard L. Madoff, que saiu até no “Jornal da Globo” (ver em: http://www.nytimes.com/2008/12/13/business/13investors.html). Denunciado por dois dos seus próprios filhos que se sentiram lesados em seus investimentos, Madoff foi preso e descobriu-se que o buraco gerado por suas atividades está em torno de 50 bilhões de dólares. Madoff pagava altos dividendos e cobrava taxas pequenas. Agora, é acusado de ter montado um “Esquema Ponzi”, golpe em que o investidor fica com o dinheiro para si próprio e quando um cliente pede sua aplicação de volta ele capta mais investimentos, rolando o problema para o futuro.

Madoff tinha mansões, iates e carros de luxo em Nova York e na Califórnia, e dava festas onde se bebia e se comia à tripa forra. Sobre os seus clientes, que estão apavorados, diz um advogado de Manhattan: “São pessoas que tinham um imenso patrimônio dias atrás, e que agora se descobrem sem um tostão. Nada restou do que possuíam, a não ser os apartamentos ou casas em que moram, e que em breve terão de vender para poder tocar a vida adiante”. Um investidor arruinado disse: “Trinta e seis anos de fidelidade, durante duas gerações, e é isso que ganhamos”.

O caso de Jean-Claude Romand é um crime comum, mas é o que podemos chamar de “um crime de época”. Um caso patológico no qual se cristaliza o espírito de um tempo, de uma geração, do modo de viver que um mundo aceita como ideal e necessário. O capitalismo internacional está fazendo aos poucos com o mundo ocidental o que Jean-Claude Romand fez com a própria família. Embolsou o dinheiro alheio com promessas de ganhos mirabolantes e o gastou numa farra permanente. Na hora da verdade, só lhe restará matar os credores e suicidar-se.

quarta-feira, 17 de março de 2010

1800) As Ligações Perigosas (16.12.2008)



O Marquês de Flammand era um dos homens mais cobiçados da corte parisiense, notório conquistador, famoso pelas beldades que fizera sucumbir aos seus encantos e ao poder de sua fama. Era o homem por quem suspiravam as moças em flor, as balzaqueanas em pleno viço da experiência, e também (por que não?) as damas casadas a quem apenas o vínculo sagrado impedia de se arrojarem aos pés do Marquês, ou, melhor ainda, de lhe abrirem às escondidas a porta de seus aposentos, na calada da noite.

O Marquês colhia a seu bel-prazer as flores púberes que se entreabriam para sua cobiça, mas não tinha pensamentos senão para a mais distante delas. Ironicamente, Mlle. Nazarin era uma “cria” de seus próprios domínios, no Vale do Loire, onde crescera ouvindo elogios rasgados à sua beleza. Alimentava o sonho (incentivado pelas damas maduras de sua família) de que nascera para o Marquês, estava destinada a ser A Última, “aquela”, dizia-lhe sua mãe, “que o fará esquecer todas as outras, e lamentar o tempo que desperdiçou beijando outros lábios que não os teus”.

Por uma guinada do destino, Mlle. Nazarin, aos dezoito anos, partiu para a corte holandesa, servindo de dama de companhia a uma prima. E foi nos salões dos Países Baixos que sua beleza floresceu e sua fama se espalhou, com uma série de romances tórridos, em rápida sucessão, com os fidalgos mais poderosos daquele tempo. Na corte de França crescia o orgulho de que fosse francesa “a mulher mais bela da Europa”, como afirmavam as calejadas damas da corte, diante de cujos olhos já tinham desfilado gerações e mais gerações de rostos e de silhuetas.

Eis que, após sua rumorosa separação de um nobre italiano, Mlle. Nazarin retorna a Paris, sendo recebida com todas as honras. Ainda desperta o alvoroço dos cortesãos de Versalhes: qual dos seus conterrâneos será o felizardo a desfrutar dos seus atributos? O Marquês de Flammand, ainda rico e vigoroso, apesar de grisalho, faz-se anunciar, freqüenta-lhe as recepções, comparece aos bailes em sua mansão, galga de degrau em degrau a sinuosa escada da conquista.

De repente, escândalo! Corre a notícia de que o Marquês surpreendera Mlle. Nazarin em pleno colóquio amoroso com o Duque de St. George, aventureiro de origem britânica, notório pelos seus gastos insensatos e suas alianças escusas. Ofendido, o Marquês de Flammand recua. Nos salões da corte, declara que mesmo traído abdicará da paixão de toda uma vida, e que não criará obstáculos à felicidade do casal. St. George desposa Mlle. Nazarin e a conduz em festa para seus domínios. Mas... em confidência aos amigos, o Marquês confessa ter constatado “in loco” que o estado físico da beldade já não era o mesmo, e que o rival caiu-lhe do céu, para livrá-lo de uma tremenda duma sinuca. (ERRATA: Onde se lê “Marquês de Flammand” leia-se “Flamengo”, onde se lê “Mlle. Nazarin” leia-se “Ronaldo”, onde se lê “Duque de St. George” leia-se “Corinthians”. Obrigado.)

1799) De homem ou de mulher (14.12.2008)



(www.caoazul.com)

Li, numa coluna de amenidades, sobre a gafe de um moça que, num restaurante, entrou por engano no banheiro dos homens. Justificou-se ela: “Tinha um M na porta, e eu pensei que fosse: Mulher”. Não era: era “Masculino”. Bastava que a distraída tivesse visto o F de “Feminino” na outra porta para não perder a viagem. (Aliás, a nota do jornal não diz quanto tempo se passou – minutos, horas? – até que ela percebesse o equívoco, ou fosse resgatada.)

Letreiros de banheiros são um desses casos semióticos aparentemente simples que se tornam um matagal de ruídos de informação. Em tese, bastaria ser curto e grosso e colocar nas respectivas portas, com todas as letras: “Homem” e “Mulher”. Em ambientes mais formais, “Masculino” e “Feminino”. Mas essa simplicidade não basta. Gostamos de ser barrocos, alusivos, metafóricos. Quando uma mensagem é simples demais, como esta, julgamo-nos no direito, e até na obrigação, de inventar uma voluta rococó para dar o recado.

Vai daí que num bistrô afrancesado encontramos uma foto de Brigitte Bardot ao lado de uma de Jean-Paul Belmondo. Em boates da moda, uma foto de Angelina Jolie e uma de Brad Pitt. Em boates mais alternativas, talvez encontremos fotos de k. d. lang e de Michael Jackson. Restaurantes regionais colocam xilogravuras de Lampião e Maria Bonita; estabelecimentos afro exibem Pixinguinha e Clementina de Jesus. E assim por diante.

Já achei que a solução mais radical seria exibir, nessas portas, uma foto ou desenho dos respectivos órgãos sexuais. Esta minha brilhante idéia foi posta em prática pelo bar Vou Vivendo, de São Paulo; mas eram fotos solarizadas, em alto contraste, de tão custosa identificação que foi mais prudente ficar por ali, lavando as mãos, e anotando à sorrelfa quem entrava e quem saía.

Há outro fator de risco. Nos EUA, são muito usados os letreiros M e W, ou seja, “Men” e “Women”. Quem se acostuma em sua terra natal com o M de “Men” pode muito bem se confundir num banheiro brasileiro dividido entre “M” e “H”. (Dizem que em Portugal as portas ostentam a letra “S”, de “Senhores” e “Senhoras”.)

Numa das dezenas de viagens de ônibus que fiz pela Rio-Bahia cheguei certo amanhecer a um ponto de apoio da Itapemirim. Desci para ir ao banheiro, entrei no corredor onde havia a placa “Sanitários”, e me deparei com uma cena digna de uma foto de Cartier-Bresson ou de um cartum de Ziraldo. Um casal de matutos, com um casal de filhos pequenos, parado diante de duas portas. Na primeira, havia o desenho estilizado de uma cartola e de uma bengala com castão de prata; na outra, um colar de pérolas enrolado em volta de um par de luvas. Nos rostos apergaminhados dos sertanejos não havia aperreio, nem perplexidade, nem impaciência, nada, nada. Apenas uma atenção profunda e calma, como se o próprio Deus lhes tivesse mandado uma mensagem em hebraico e eles pensassem consigo: “Calma, vamos olhar mais, a gente acaba entendendo o que é”.