domingo, 21 de março de 2010

1807) Os cinco presentes de Cristo (24.12.2008)



(Cristo Amarelo, de Paul Gauguin)

De vez em quando, no Natal, eu dou uma geral nos presentes que ganhei na infância por ter sido criado numa família cristã. Cresci como os jovens da minha geração, impérvios à fé dos seus antepassados, inoculados de modernidade e de ciência, e com o misticismo (o pouco que lhe restou) pulverizado em direções diversas: Budismo, Taoísmo, etc. Mesmo assim, o Cristianismo me deu presentes que de vez em quando examino. Não direi que os uso, ou que os mereço. Mas se ganhei de presente, são meus também.

O primeiro que me vem à mente é a fraternidade, o amor fraterno para com pessoas desconhecidas. É o que menos pratico e mais admiro. Lembra-me a história do cara que vem numa estrada, embaixo do sol quente, encontra um mendigo doente que nunca viu mais magro, coloca-o nas costas e o traz para a cidade. Alguém pergunta: “Não é pesado?” e ele diz: “Não. É meu irmão”. Eu não sou capaz de carregar nas costas um mendigo que não conheço; mas não sou um caso perdido, porque se vir alguém procedendo assim não vou mangar. Eu sei o que está acontecendo ali – e tem gente que nem sequer sabe.

Segunda coisa: a simplicidade, os pés no chão. Cristo fez uma revolução humanista sem erguer uma espada, sem empunhar um lápis. Tudo que fez, fez com a simples presença, as palavras, as ações – isso que os roqueiros de hoje chamam de atitude. Era um homem que tinha a coragem de proceder de modo diferente. Foi torturado e morto, mas mudou o mundo – sem dinheiro, sem exércitos, sem mídia. E não foi o único: São Francisco e Gandhi fizeram o mesmo.

Outro presente com o qual não sei o que fazer é o perdão, a arte de esvaziar conflitos. Tenho a meu favor o fato de que nunca brigo, mas isto é mais uma estratégia de sobrevivência do que bondade inata. Não sei como eu procederia se tivesse Poder e alguém me pisasse os calos. Mas Cristo tornou possível a escolha pelo perdão; transformou o perdão numa alternativa real. Forçou cada um de nós a, pelo menos, hesitar antes da vingança. E o mundo não foi mais o mesmo.

Outro legado cristão é o Mistério – e aqui, amigos, estou num terreno meu. Quem foi o Cristo histórico? Por onde andou entre os doze anos, quando embasbacava o Templo, e os trinta, quando arrebatou a Judéia? Quem era ele de fato? O que de fato lhe ocorreu? Cristo não apenas nos ensina a beleza vertiginosa do mistério, como também nos reconcilia com o fato de que este é necessário, é insolúvel, e não há nem precisa haver respostas finais.

E finalmente vem o meu presente cristão mais precioso: o exemplo de falar por imagens vívidas, fortes, inesquecíveis. Não apenas as parábolas de Jesus, mas as comparações, os aforismos, as palavras de ordem. Cristo foi um repentista, dotado de língua mais rápida que a de Antonio Marinho e de imagens mais incisivas que as de Pinto do Monteiro. O Sermão da Montanha é uma cantoria solo, repleta de versos espantosamente belos. Este presente, pelo menos, não desperdicei de todo.

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