sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

1715) Machado: “O Espelho” (10.9.2008)



(Machado, por Batistão)

É um dos contos de Machado de Assis mais elogiados pelos críticos. Vou abordá-lo aqui de um ângulo que talvez seja novo para os leitores, o da psicologia existencialista do crime, desenvolvida por Colin Wilson. O enredo do conto é simples. Num Polígono Boêmio de indivíduos de meia idade, um tal de Jacobina refere um episódio de sua juventude. Ele tinha acabado de ser promovido a alferes da Guarda Nacional, e foi passar uns tempos na fazenda de uma tia. Lá, todos estavam orgulhosíssimos de sua patente, que em termos de “status” social da época era algo como trazer uma medalha de ouro dos Jogos Olímpicos. Os parentes, os escravos, todos o tratavam por “senhor alferes”.

Um belo dia, a tia tem que viajar, e o deixa só na fazenda. Sem a patroa por perto, os escravos debandam. De repente, o rapaz vê-se sozinho. E um fenômeno curioso sucede: ele não consegue se enxergar no espelho. Vê a própria imagem “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Ele percebe que o espelho o reflete de acordo com as leis físicas, mas é ele próprio que não se enxerga: move o braço, e “o gesto lá estava, mas disperso, esgarçado, mutilado...” É tomado pelo medo, mas ocorre-lhe uma solução, e veste a farda de alferes. Vai ao espelho, e bingo! Agora sim, consegue ver-se nítido, integral. Nasce daí a teoria do Jacobina, de que as pessoas têm duas almas, sendo que uma lhes é externa – a dele era a farda e a condição de alferes. Sem elas, não era ninguém.

Colin Wilson, em Order of Assassins: The Psychology of Murder (1972) cita o conto de Machado para avalizar sua própria teoria da auto-imagem. Para Wilson, nosso erro fundamental a respeito da consciência é considerar que ela é um processo automático, como a respiração. Não é. Ela depende de um esforço permanente, como a natação; quando a gente pára, afunda. O conto de Machado revela que “o mundo ao nosso redor é um espelho que nos reflete. Quando a nossa vitalidade está elevada, ele nos reflete de maneira nítida e clara; mas às vezes estamos tão difusos que mal conseguimos nos enxergar”.

Precisamos do aval e do reconhecimento do mundo à nossa volta. Sem isto, corremos o risco de ser (diz Wilson) como o padrasto de Jean-Paul Sartre, descrito pelo próprio: “Nos domingos, ele se recolhia dentro de si mesmo, encontrava ali um deserto, e se perdia”. Em muitos criminosos conjugam-se a agressividade, a baixa auto-estima, e a necessidade de afirmação. O crime, diz ele, é um instante em que um indivíduo passivo, abatido, humilhado, pratica um ato de intensidade arrebatadora e consegue enxergar de novo a própria imagem. É o mendigo que estupra e mata uma moça à beira da estrada, o assaltante que invade uma casa e chacina uns desconhecidos. É também, no caso dos serial killers, o momento em que um sujeito medíocre mata alguém, e vê toda a imprensa do país pensando nele, falando nele, doida para saber quem é ele. E a imagem no espelho do quarto fica nítida de novo.

1714) Desencanta, Dunga (9.9.2008)



O Brasil jogou na noite do domingo sua melhor partida nestas Eliminatórias. Sei que para muitos a melhor partida foi aquela de 5x0 no Equador, no Maracanã, mas aquilo ali era um mamão-com-açúcar. Difícil, amigos, é ganhar do Chile em Santiago, quando a equipe está com o moral baixo e o treinador com a corda no pescoço. O time de Dunga suportou a pressão inicial da atabalhoada seleção chilena, e fez os gols nos momentos certos. O primeiro na metade do primeiro tempo, quando o Chile já tinha ido com perigo duas vezes (numa delas, o chileno estava dentro da pequena área e mandou a bola para os Andes). Com 1x0 contra, o Chile avançou (e se atabalhoou) ainda mais, e poderíamos ter ampliado quando o zagueiro fez uma falta brutal em Diego. Ronaldinho Gaúcho não bateu mal o pênalte: chutou forte, do lado, mas o goleiro escolheu o canto certo e conseguiu desviar. E Robinho marcou no último minuto do primeiro tempo, que é um momento ótimo para se fazer um gol.

O segundo tempo foi menos técnico e mais ríspido do que o primeiro. O Brasil se segurou, ainda mais depois que Kléber recebeu um injusto segundo cartão amarelo (o primeiro foi merecido) e foi expulso. Temi que Dunga visse nisto um pretexto para substituir os atacantes por mais dois volantes, mas o bom senso prevaleceu. Ele colocou Juan (ótimo armador de jogo) no lugar de Ronaldinho Gaúcho, que se limitava a trocar passes longe da área. Foi uma medida ousada, mas o Gaúcho não está mesmo numa boa fase. O Brasil se segurou, perdeu algumas chances, e fez o 3º gol num momento crucial, porque àquela altura se o Chile fizesse 2x1 os dez minutos finais seriam um pesadelo.

O Brasil jogou muito bem, mesmo sem dar o tal do espetáculo. Os milhões de galvões-buenos querem sempre espetáculo, querem goleada, querem humilhar o adversário, querem ver bola entre as pernas, lençol, olé, como fizemos com o indefeso Equador no Maracanã. Quando isso ocorre eu também me divirto, mas prefiro uma vitória como esta, em que o time entra desacreditado num território inimigo, sofre pressão, se segura, marca gols com talento e firmeza, defende-se com seriedade e sempre que recupera a bola parte com decisão para o ataque, em vez de ficar trocando passezinhos no círculo central – que é a característica da Seleção sob o comando de Dunga.

Vivo falando mal do treinador, chegou o momento de falar bem. Faço votos de que, quando ele vem com aquele papo imutável de “determinação, busca do objetivo” e blá-blá-blá, esteja se referindo ao que a Seleção fez no Chile, e não ao que vinha fazendo ultimamente. Tomara que ganhe bem da Bolívia, desencante, acerte o passo. O time todo jogou bem; destaco Julio César pela segurança, Robinho (se bem que só chute cafôfa), Josué (pelos desarmes limpos e precisos), Diego (pelo esforço). O nome da partida foi Luís Fabiano, que em dois jogos das Eliminatórias fez quatro gols, e acho que agora nem Dunga tem moral pra tirar o homem do time.

1713) Machado: contos de boemia (7.9.2008)



(Machado, por Cássio Loredano)

Alguns amigos me criticam por minimizar o talento de Machado de Assis, mas creio que laboram em erro. Considero Machado o maior escritor brasileiro. (“O maior” não existe, mas ele pertence a uma meia dúzia em quem essa carapuça caberia sem cobrir-lhe os olhos). O que há é que neste ano do centenário da sua morte as louvações banais são tantas que acaba baixando em mim um espírito machadiano, frio, analítico, britânico, irreverente... Dá vontade de fazer com os contos dele o que Fortunato fazia com o rato.

Falei aqui sobre o Polígono Boêmio, um dos artifícios narrativos mais comuns em Machado, e que em muitos casos lhe serve como pretexto para fazer um personagem contar uma história aos demais. Essa situação também lhe serve, em outras histórias, para narrar o cotidiano desses grupos. Nestes casos, Machado fica lado a lado com aqueles escritores que contam o Brasil dos jovens intelectuais, que discutem livros, poemas, política, mulheres e amores.

São contos típicos de juventude, e ali se enquadram textos como “Vinte anos! Vinte anos!”, “Uma por outra”, “Um erradio”, etc.. São histórias de juventude boêmia carioca, dos cafés, dos restaurantes, dos teatros. Rapazes intelectuais, com moedas contadas no bolso, filando cigarros uns dos outros, ocasionalmente tendo dinheiro bastante para ir à ópera e depois a um restaurante chique. Flertando com moças da sociedade, filhas de fidalgos da corte, e passando as madrugadas nos cafés, em companhia de cocotes francesas. Recitando sonetos, escrevendo versos de propaganda para casas comerciais em troca de alguns mil-réis, declamando em francês e em latim, envolvendo-se em querelas políticas do Império. Desfechando trocadilhos mordazes e epigramas satíricos contra os adversários de ocasião.

O romance que para mim é o melhor retrato dessa época e desse meio intelectual é o magistral A Conquista, de Coelho Neto. Um pouco dessa “festa móvel” transbordou para livros de memorialismo e de biografia, como No tempo de Paula Nei de Ciro Vieira da Cunha, A vida exuberante de Olavo Bilac de Eloy Pontes, Emílio de Menezes, o último boêmio de Raimundo de Menezes, A vida literária do Brasil – 1900 de Brito Broca. Na segunda metade do século, essa literatura ressurgiu em obras como O Encontro Marcado de Fernando Sabino, Os Novos de Luiz Vilela, A morte de D. J. em Paris de Roberto Drummond.

No que tem de melhor, esses romances e contos nos trazem o espírito de juventude irreprimível que todos nós sentimos em certas fases da vida, que aliás não dependem da idade cronológica. São momentos em que nos sentimos perpassados por um entusiasmo de viver, de experimentar coisas, de criar, de desafiar os clássicos da arte e do pensamento. Momentos assim muitas vezes resultam em grande literatura, quando há grandes escritores envolvidos. Quando não há... resultam na felicidade modesta dos invisíveis, que não é menos felicidade por não resultar em livro.

1712) O vacilo (6.9.2008)



Certas histórias dão o que pensar, como a que aconteceu com esse rapaz; chamemo-lo Valdir. Conheci-o logo quando cheguei no Rio, porque freqüentava o Barbas, em Botafogo, um bar com shows ao vivo onde cantei algumas vezes. Valdir tinha vinte e poucos anos, era um cara sempre alegre, boa-praça, topava tudo. Se o bar fechava às três da manhã e alguém sugeria ir tomar a saideira em Vila Isabel, ele dizia no ato: “Cabe três no meu carro”.

A tragédia não foi em Vila Isabel nem em Botafogo, mas pros lados da Tijuca, a certa altura da Haddock Lobo. Eram meras onze horas da noite, mas Valdir estava no bar desde o fim da tarde, num daqueles almoços que começam quase na hora do jantar e terminam quase na hora do café da manhã. Ele me confessou depois: “O engraçado é que eu só saí porque achei que estava muito bêbado. Fiquei com medo de beber mais e fazer uma besteira. Aí, na primeira esquina...”

Ao que parece o carro fez uma curva, houve uma turbulência no asfalto e “faltou chão”, como ele descreveu depois. Espatifou-se num ponto de ônibus; se houvesse alguém no banco do carona não teria escapado. Valdir teve uma pancada forte que lhe abriu a testa, e conseguiu sair do carro, no meio da gritaria geral, tonto pela pancada, e com os olhos cheios de sangue. Alguém o levou para a calçada, policiais o cercaram, o que ajudou a evitar um linchamento. Porque embaixo do carro, já mortos, estavam um garçom que tinha acabado de largar o trabalho, e uma mãe com a filha adolescente.

No dia seguinte o pai de Valdir e os advogados o tiraram da delegacia onde dormiu; com a cabeça envolta em bandagens ele foi para casa e aí começou a via-crucis jurídica. Inquérito, julgamento, condenação, réu primário, recurso, espera, novo julgamento, nova condenação, novo recurso... Não sei a história completa, porque isso começou a acontecer em 1988, e eu passo às vezes quatro ou cinco anos sem encontrar Valdir.

Ele amadureceu. Casou, teve três filhas. Tem um cargo na empresa do pai, que trabalha com exportações. Certa vez que jantamos juntos ele me contou que um dia cruzou no Forum com o filho e irmão das vítimas, e este cuspiu na sua cara. Perguntei o que fizera, e ele respondeu: “Limpei o cuspe na manga e dei razão a ele”. Mais do que as condenações jurídicas, contra as quais sempre se pode interpor um habeas-corpus, o que acabou com Valdir foi a condenação da imprensa, das famílias das vítimas, e de sua própria família, ou seja, os pais e os irmãos. A família é honesta, trabalhadora, e este episódio é “a única mancha”, segundo ele.

A mulher e as filhas são loucas por ele e conseguem desculpá-lo. Valdir nunca mais bebeu depois daquilo. Semana passada, vi no jornal que saiu sua condenação final, agora sem apelo. Valdir vai cumprir agora, com mais de quarenta anos, oito anos de cadeia; como não tem curso universitário, vai para o porão comum. E eu lembrei aquele velho mote das cantorias – “os pecados de domingo / quem paga é segunda-feira”.

1711) Resnais: “A Guerra Acabou” (5.9.2008)



Num festival dedicado a Alain Resnais no CCBB do Rio, revi este filme discreto e magnífico de 1966. É a história do cansaço e do princípio de desilusão de um revolucionário de meia-idade. Diego (Yves Montand) é um comunista espanhol que trabalha na clandestinidade contra a ditadura do General Franco, indo e voltando entre Madri, onde atua, e Paris, onde tem uma namorada (a bergmaniana Ingrid Thulin), e onde fica sediado o grupo subversivo a que pertence. Vindo depois de Hiroshima, meu amor e de O ano passado em Marienbad, que fizeram a fama de Resnais, é um filme surpreendentemente linear e narrativo, chegando em vários momentos a ser um thriller de suspense, pois acompanhamos um indivíduo que vive no fio da navalha, prestes a ser desmascarado e preso pelas autoridades.

O roteiro é do espanhol Jorge Semprun, o mesmo que escreveu Z de Costa-Gavras e vários outros filmes políticos. Acompanhamos as viagens com passaporte falso, os encontros clandestinos, as senhas e mensagens em código, toda a encenação permanente em que vivem os membros do “underground” político que Semprun conhece tão bem. Vemos o cansaço de Diego, um homem movido mais pelo hábito, pela falta de alternativas e pelo dever ético do que pela paixão revolucionária; e podemos contrastar seu comportamento com o dos jovens esquerdistas parisienses que contrabandeiam explosivos para um atentado, dispostos a sabotar o turismo que sustenta o governo de Franco. Nesses jovens enraivecidos, vociferantes, cheios-de-razão, citando Lênin a propósito de tudo, vemos os irmãos espirituais dos jovens maoístas que Godard no ano seguinte imortalizaria em A Chinesa.

Em sua ausência de retórica esquerdista, contudo, esse filme se aparenta muito mais a O pequeno soldado de Godard. Resnais se dedica a construir uma narrativa meticulosa, às vezes inesperada. Neste filme ele aperfeiçoou o uso do “flash-forward” os vislumbres de imaginação do personagem, que, como num romance de Robbe-Grillet, imagina (e projeta na tela) diferentes desfechos de algo programado para acontecer horas depois: chegará na hora, chegará atrasado, encontrará Fulano na estação, encontrará no trem, não o encontrará... Tudo isso se sucede rapidamente na tela, fazendo-nos compartilhar das indecisões e incertezas do personagem. Quando ele imagina como será Nadine, a moça a quem deve devolver o passaporte falso, vemos várias moças caminhando, todas de costas, sem mostrar o rosto: loura, morena, cabelo longo, cabelo curto, cabelo preso... É um processo mental por que todos nós passamos (fantasiar previamente como será alguém que estamos prestes a conhecer), mas que o cinema raramente mostrou, e jamais mostrou com tanta simplicidade. As duas cenas de cama (Montand com Geneviève Bujold, depois com Thulin) são também uma prova da maestria de Resnais para filmar olhos, cabelos, mãos, peles, rostos, e nos transmitir a sensação de plenitude e paz produzida pelo amor físico.

1710) Artista não pode errar (4.9.2008)



(Diego Hipólito)

Certas formas de arte buscam a perfeição. Ao ver certas esculturas gregas ou ler certos contos de Maupassant a gente vê ali um cristal, uma forma definitiva e irretocável. A palavra “perfeição” é questionável do ponto de vista filosófico, mas pode ser aceita para situar nossa reação emocional diante de coisas assim. Elas não podem ser perfeitas, por definição. Mas bem que parecem.

Mais difícil é você alcançar a perfeição em algo móvel, algo fluido, algo que precisa ser recriado a cada vez que acontece: um pianista tocando Chopin, uma bailarina executando uma coreografia, um ator fazendo ao vivo o monólogo de Hamlet ou (mais difícil ainda) o monólogo de Lucky em Esperando Godot. Não importa quantas vezes o artista já tenha feito aquilo certo. Quando começa a fazer de novo, ele está em pleno mergulho no Aqui-e-Agora, não pode errar, e o fato de ter feito certo antes não é nenhuma garantia de que vai acertar agora (a não ser a convicção de que “posso acertar, sim, já acertei”). Como dizia o poeta Gil, “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”.

Lembram-se de Diego Hypólito nas Olimpíadas? Pois é, o fato de você ter atingido a perfeição mil vezes nos treinos não é garantia suficiente (está provado) de que vai atingi-la de novo na hora do vamos-ver. Quem esculpe a Vênus de Milo uma vez, quem escreve “Ouvir estrelas” ou “A máquina do mundo” uma vez, não precisa fazer isso de novo no mês que vem. A perfeição do gesto resultou na perfeição do objeto, e este não pode ser cancelado por qualquer erro futuro. No caso das artes da performance (e aqui, curiosamente, o esporte e a arte se fundem numa coisa só), é preciso, sim, ser perfeito de novo, e de novo, e de novo...

Um repentista estava numa cantoria de pé-de-parede (Ivanildo Vila Nova me contou esta) e o colega lhe fez uma crítica. Ele respondeu com esta sextilha antológica: “Meu amigo e camarada / não faça isto com mim... / Colega de profissão / com outro não faz assim! / Pelo cálice de amargura / que Jesus Cristo bimbim!” Parou de rir, amigo? Vou explicar. Ele planejou mentalmente a sextilha para terminar dizendo: “... que Jesus Cristo bebeu”. Quando começou a cantá-la, viu que não podia dizer: “... não faça isto com eu...”, talvez tenha até pensado em dizer “...comigo...”, mas viu que também não dava, e a boca resolveu a hesitação dizendo “com mim”. Tudo isso, colegas, se decide na fração de segundo em que a boca escolhe a palavra a dizer. Depois de ter dito este fatídico “mim”, ele fez dois versos intermediários em que conseguiu encaixar uma rima correta (“assim”), mas aí, quando chegou no verso pronto para o final... não encaixou. Deu-se a catástrofe.

Foi assim com Diego Hypólito. Fez tudo certo, a corrida, a cambalhota, a rolada no chão, o duplo-mortal-carpado... Mas no meio do processo houve algum vacilo, hesitação, esquecimento. Em vez de finalizar o verso com os dois pés no tablado e os dois braços erguidos... Bimbim.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

1709) Machado: “A Segunda Vida” (3.9.2008)



O leitor deve conhecer o poema intitulado “Instantes”, que circula na Internet atribuído ao indefeso Jorge Luís Borges, e que os Titãs acabaram glosando numa canção de sucesso (“Epitáfio”, de Sérgio Brito). O poema diz coisas tipo “ah, se eu nascesse de novo aproveitaria melhor a vida, contemplaria mais crepúsculos, andaria descalço na grama, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários...” O tema é interessante, as idéias são louváveis, mas literariamente o poema é só glicose e violinos.

Disse que o tema é interessante, e reitero. Penso no filme Feitiço do Tempo (“Groundhog Day”), de Harold Ramis, em que um apresentador de TV vivido por Bill Murray tem a chance de repetir indefinidamente um único dia de sua vida, até aprender a deixar de ser um mau caráter, e ganhar como prêmio os olhos, lábios e cabelos de Andie MacDowell. Penso no livro Replay de Ken Grimwood (1987), onde o protagonista, ao morrer, vê-se catapultado de volta aos seus 18 anos e percebe que irá reviver toda sua vida dali em diante, só que lembrando-se de tudo que lhe sucedeu, e podendo (ou não) valer-se dessas memórias para viver de maneira melhor a própria vida.

Munido dessas informações, minha reação seria diferente da reação do Monsenhor Caldas, no conto “A Segunda Vida” (Histórias sem Data, 1884), que, ao ver seu visitante dizer-lhe que morreu e está vivendo de novo a própria vida, chama de lado o escravo e pede-lhe à socapa que traga a polícia, pois está com um doido em casa. O doido, se de fato o for, é José Maria. Explica ao clérigo que cada milésima alma que chega ao céu ganha como prêmio a reencarnação, no papel que escolher. Ele pediu apenas que lhe fosse dado manter a memória e a experiência.

José Maria renasce e tem uma infância medrosa, sem quedas, sem doenças, sem cabeças quebradas, sem brigas e sem graça. Adulto, não namora porque tem medo de ser traído; casado, não tem filhos por temer que adoeçam e morram. E por aí vai. O conto se encerra da mesma maneira brusca como começou. Exaltado, ele investe contra o monsenhor, no mesmo instante em que “pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés”.

Como em praticamente todas as narrativas fantásticas de Machado, o fantástico é emoldurado pela mente de um personagem: ora é um narrador que adormece e sonha, ora é um doido que se ergue e fala. José Maria parece doido, e sua doidice, como diria Chesterton, era a do excesso de razão: “a experiência dera-lhe o terror de ser empulhado”. A segunda vida sai-lhe necessariamente mais pobre do que a primeira, porque ele tem como regra maior não correr riscos. Dada a atual popularidade do poema “de Borges” e do “Epitáfio” dos Titãs, o conto de Machado é de uma ironia devastadora. É a história do cara que tem justamente a vida boa, cheia de riscos e de aventuras, mas, ao ser-lhe dada a chance de viver tudo de novo, opta pela vida medrosa, contida, “cautelosa pouco a pouco”. Matéria a meditar.

1708) Alphonsus de Guimaraens Filho (2.9.2008)



A notícia da morte do poeta me chegou em emails sucessivos de Alexei Bueno, Glauco Mattoso e Dinah Guimaraens. Durante os anos da juventude, tive dificuldade em distinguir os poemas do Alphonsus pai daqueles do Alphonsus filho, até porque era o inusitado do nome que primeiro me atraía o olhar e a curiosidade. Deixo para os críticos de verdade a classificação sistemática dos poetas e dos poemas entre os rótulos de Simbolismo, Romantismo, Modernismo... No Alphonsus Filho o que mais marcava o ouvido era a perfeição métrica e musical dos sonetos, sempre fluidos, irretocáveis; e o insistente poder de evocação visual, numa poesia fortemente imagética, que falava tanto ao tímpano quanto à retina.

Poesia que está reunida em Só a noite é que amanhece (Record, 2003). Como no soneto em que, por sob um verniz romântico ou simbolista, não importa, e numa linguagem austera e límpida, encontramos o tema moderno da vida “on the road”: “Cidades vi que agora me aparecem / como nunca jamais nem terão sido. / E as grandes vozes que conturbam, crescem / mas de tão longe que eu direi somente / que não me fui, que, se eu tivesse ido, / não estaria chegando eternamente”. É Jack Kerouac sem o que há de datado, localizado e circunstancial em Kerouac. É simplesmente o mesmo espírito: o da viagem mais da alma do que das pernas, e que não tem lugar nem tempo.

Outro tema é o passar irrevocável do tempo, e talvez nem chegue a ser outro tema, mas sejam os dois, a viagem e o passar da vida, visualizações de um só sentimento. Como ele diz, em “Seqüência”: “As traças devoram a vida, / papirófagos sem pressa. / (os homens se dão aos livros / e a vida, como lhes pesa!) / Os ratos pelos armários / deixam apenas fragmentos. / (Os homens se dilaceram, / as próprias cinzas temendo.) / E a vida só se asserena, / se atenua, se aquieta, / quando num rosto cansado / sombra, apenas, se dispersa.”

A intensidade de sua evocação visual, sensorial, marca sonetos como “Deitas teu corpo em flor”, espécie de retrato a óleo de uma mulher deitada na relva, onde ele diz: “...instante de fantástica beleza / e de beijo e de afago e de um supremo / arfar de chama em límpida penugem. / Deitas teu corpo em flor, e a natureza / funde-se em ti no alto silêncio extremo / de volúpia desfeita em brisa e nuvem”. Um entrelaçar de imagens e de sensações que reúnem um máximo de sensualidade corporal e de êxtase do espírito.

E o “Soneto da Morte” (que eu não conhecia, e que me foi enviado por Glauco), cujas imagens soturnas e impessoais sugerem um curta-metragem de Antonioni ou Resnais: “Entre pilares podres e pilastras / fendidas, te revi subitamente; / eras a mesma sombra em que te alastras, / feita carícias de uma face ausente. (...) vi-te a sofrer no fundo da cidade / como um grande soluço percutindo / sobre os olhos, as mãos e a boca fria. / E de repente um grito de saudade. / Depois a chuva, sem cessar, caindo.” Como na vida real.

1707) Machado e o Polígono Boêmio (31.8.2008)



(Machado, por Nássara)

Já afirmei alhures que o tema principal de Machado de Assis é o Triângulo Amoroso. Amplio agora esta definição para dizer: seu segundo tema é o Polígono Boêmio. Por Polígono Boêmio entendam-se todos aqueles contos em que um grupo de homens estão reunidos, e dessa reunião brotam eventos como passeios, farras, etc. ou brotam histórias.

Neste segundo caso, o Polígono Boêmio tem um centro: é um personagem que narra uma história enquanto os outros o escutam, interferindo de vez em quando com perguntas e comentários. E aqui vemos mais uma das tão propaladas influências inglesas na obra de Machado (numa época em que a influência unânime em nossa literatura vinha de Paris). O esquema usado por Machado é uma recriação brasileira do gênero chamado de “Club Stories”, ou histórias de clubes. John Clute, na Encyclopedia of Science Fiction, define o gênero como “uma história contada por um homem a outros homens num recinto privado, freqüentado apenas por pessoas do mesmo estrato social, as quais concordam em acreditar na história para seu mútuo bem-estar”.

O clube inglês é uma instituição que não existe, ao que eu saiba, em nenhuma outra parte do mundo. É uma espécie de café com biblioteca, reservado apenas aos sócios. Ali eles se reúnem, fumando charutos, jogando bilhar ou cartas, tomando uísque ou café, lendo jornais, conversando diante da lareira. E é nessa milenar roda de ouvintes em volta à fogueira que acontecem as histórias. Muitas dessas narrativas são também o que em inglês se chama de “tall tales”, histórias inverossímeis ou improváveis, quando não escancaradamente mentirosas. John Clute sugere que as primeiras formas maduras do gênero surgem com Robert Louis Stevenson (New Arabian Nights, 1882), o que faz de Machado, mais que um mero seguidor, um praticante contemporâneo. Outros nomes ilustres nessa linha são Jerome K. Jerome, G. K. Chesterton, P. G. Wodehouse, H. G. Wells, H. H. Munro (“Saki”) e Lord Dunsany. A estes, eu acrescentaria Conan Doyle.

A “club story” pressupõe uma atmosfera confortável para escutar uma história inverossímil. Não precisa ser um clube; basta ser uma casa onde se reúnem, como em “Um Esqueleto”, dez ou doze rapazes que falam de artes, letras e política: “Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann. Alberto começou a narração”. Em “O Imortal”, estamos na varanda da casa do Dr. Leão, com a presença de um coronel e um tabelião: “Um lampião de luz frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa”.

Variantes deste formato aparecem em “Adão e Eva”, “Um Incêndio”, “Cantiga Velha”, “Mariana”, “Uma Noite”... Histórias que vemos contadas, não vemos acontecidas.

1706) A descarga do humor (30.8.2008)




Numa entrevista à revista Wired de julho, o escritor Jim Holt discute as teorias sobre a origem do humor, em função do seu recente livro Stop me if you’ve heard this: a history and philosophy of jokes. Não vi o livro, mas duas ou três coisas colocadas na entrevista me chamaram a atenção. Primeiro, o título do livro, que seria algo como “Me avise se já lhe contaram esta”. É uma advertência muito comum em sessões de piadas, e ela envolve dois aspectos contraditórios do humor-de-anedota. Em primeiro lugar, o humor é baseado numa surpresa, que é proporcionado pelo desfecho da piada. Se o sujeito já sabe o final, a piada perde a graça. Jim Holt define esse aspecto de maneira sintética: a anedota consiste em uma preparação, ou “set up” (narrativa incongruente) e desfecho, ou “punch line” (frase final que resolve a incongruência).

Mas todos nós já tivemos a experiência de ouvir uma piada várias vezes e só achá-la engraçada quando alguém a conta de um jeito especial. Performance também influi. Não porque o contador faz trejeitos, ou tem a voz engraçada. Mas porque piada é basicamente uma narrativa comprimida ao máximo (como os comerciais de 30 segundos na TV), e o menor deslize na hora de contá-la pode comprometer o resultado. Já me ocorreu inúmeras vezes ver uma piada sendo mal contada, “entender” qual é a graça, mas só rir de verdade quando um dia alguém a conta bem, com a ênfase nos detalhes corretos, as elipses bem feitas, o “timing” adequado, as escolhas verbais precisas.



Ziraldo organizou para a Editora Codecri uma série de antologias de anedotas sob o título Tem aquela do.... É outro intróito tradicional nas sessões de piadas. Por que? Porque o ritual de contar piadas se desenrola através de associações de idéias, e, mal o amigo à nossa esquerda termina de contar uma, a gente já lembrou de outra parecida, pelo tema, pelos personagens, pelo desfecho, seja lá por que for. Cada piada abre um leque de conexões para ser seguida por outra que lhe é muito próxima mas que por sua vez vai abrir um leque também amplo, em outras direções. Encaixam-se como peças de dominó.


Contar anedotas é uma atividade essencialmente intelectual: destina-se ao intelecto, à nossa capacidade de analisar situações incongruentes e de apreciar um desfecho engenhoso. Sobre a origem do riso, Holt traz essa teoria, baseada no comportamento dos primatas, que é nova para mim: “V. S. Ramachandran tem uma teoria sobre a origem do riso. Quando há um grupo na selva e ocorre uma ameaça aparente, o primeiro membro do grupo a perceber que não é uma ameaça real emite uma vocalização estereotipada. E ela é contagiosa, todos a repetem. Isto está na base da teoria do humor como alívio de tensão. É a descarga de uma tensão mental que você produziu em si mesmo para tentar entender uma situação incongruente. Kant dizia que a essência do humor é uma expectativa tensa que se dissolve em nada”.