sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
1715) Machado: “O Espelho” (10.9.2008)
(Machado, por Batistão)
É um dos contos de Machado de Assis mais elogiados pelos críticos. Vou abordá-lo aqui de um ângulo que talvez seja novo para os leitores, o da psicologia existencialista do crime, desenvolvida por Colin Wilson. O enredo do conto é simples. Num Polígono Boêmio de indivíduos de meia idade, um tal de Jacobina refere um episódio de sua juventude. Ele tinha acabado de ser promovido a alferes da Guarda Nacional, e foi passar uns tempos na fazenda de uma tia. Lá, todos estavam orgulhosíssimos de sua patente, que em termos de “status” social da época era algo como trazer uma medalha de ouro dos Jogos Olímpicos. Os parentes, os escravos, todos o tratavam por “senhor alferes”.
Um belo dia, a tia tem que viajar, e o deixa só na fazenda. Sem a patroa por perto, os escravos debandam. De repente, o rapaz vê-se sozinho. E um fenômeno curioso sucede: ele não consegue se enxergar no espelho. Vê a própria imagem “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Ele percebe que o espelho o reflete de acordo com as leis físicas, mas é ele próprio que não se enxerga: move o braço, e “o gesto lá estava, mas disperso, esgarçado, mutilado...” É tomado pelo medo, mas ocorre-lhe uma solução, e veste a farda de alferes. Vai ao espelho, e bingo! Agora sim, consegue ver-se nítido, integral. Nasce daí a teoria do Jacobina, de que as pessoas têm duas almas, sendo que uma lhes é externa – a dele era a farda e a condição de alferes. Sem elas, não era ninguém.
Colin Wilson, em Order of Assassins: The Psychology of Murder (1972) cita o conto de Machado para avalizar sua própria teoria da auto-imagem. Para Wilson, nosso erro fundamental a respeito da consciência é considerar que ela é um processo automático, como a respiração. Não é. Ela depende de um esforço permanente, como a natação; quando a gente pára, afunda. O conto de Machado revela que “o mundo ao nosso redor é um espelho que nos reflete. Quando a nossa vitalidade está elevada, ele nos reflete de maneira nítida e clara; mas às vezes estamos tão difusos que mal conseguimos nos enxergar”.
Precisamos do aval e do reconhecimento do mundo à nossa volta. Sem isto, corremos o risco de ser (diz Wilson) como o padrasto de Jean-Paul Sartre, descrito pelo próprio: “Nos domingos, ele se recolhia dentro de si mesmo, encontrava ali um deserto, e se perdia”. Em muitos criminosos conjugam-se a agressividade, a baixa auto-estima, e a necessidade de afirmação. O crime, diz ele, é um instante em que um indivíduo passivo, abatido, humilhado, pratica um ato de intensidade arrebatadora e consegue enxergar de novo a própria imagem. É o mendigo que estupra e mata uma moça à beira da estrada, o assaltante que invade uma casa e chacina uns desconhecidos. É também, no caso dos serial killers, o momento em que um sujeito medíocre mata alguém, e vê toda a imprensa do país pensando nele, falando nele, doida para saber quem é ele. E a imagem no espelho do quarto fica nítida de novo.
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