quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

0848) Entre a dor e o nada (4.12.2005)




(William Faulkner)

Quando aos dezenove anos assisti pela primeira vez Acossado de Jean-Luc Godard, uma das lembranças mais fortes que me ficaram foi a citação (Godard é um fetichista de citações) de uma frase de William Faulkner (em The Wild Palms): “Between grief and nothing, I will take grief” (“Entre a dor e o nada, eu escolho a dor”). 

Isto me lembrou uma outra citação, desta vez de Dostoiévski (não boto a mão no fogo – li isto em segunda ou terceira mão), que dizia, mais ou menos: 

“Se um homem tiver que ficar de pé, nu, na escuridão, no frio e na treva, no topo de uma montanha altíssima, sem poder mover os pés para o lado para não cair no abismo, sem poder comer, nem dormir, nem descansar, tiritando de frio sob a chuva gelada, durante um milhão de anos – e alguém perguntar se ele quer morrer, ele dirá que não, que muito obrigado, que prefere continuar assim por mais um milhão de anos”.

Você é assim, caro leitor? Não sei se eu sou, mas sempre achei que este era um dos problemas mais úteis de toda a Filosofia (e vi isto confirmado quando li em Albert Camus que o único problema filosófico realmente sério é o suicídio). 

Acho que tanto o sofrimento contínuo quanto a aniquilação definitiva nos repelem, nos fazem recuar, por uma espécie de instinto. Fiz uma vez um poemazinho curto que dizia: 

Numa margem está o Nada. 
Na outra margem, a Dor. 
Que enrascada, 
nadador! 

Se tivermos que escolher entre as duas, qual delas nos parecerá a menos pior?

Vi há pouco tempo uma menção a esta frase num artigo sobre o desenho animado japonês Ghost in the Shell. O artigo é sobre um episódio cheio de citações literárias, que se perdem quando retraduzidas do japonês para o inglês. O roteiro fazia referência ao filme de Godard através da frase de Faulkner, mas na retradução ela virava: “Entre a dor e o vazio, eu escolho a dor”. O articulista comenta: 

“Talvez a gente deva ver isto com indulgência. Estamos falando da dublagem em inglês de uma série de TV japonesa que se refere a um filme francês que incorpora uma citação de um escritor americano”.

Não se trata propriamente de um erro de tradução; nada que se assemelhe ao famoso exemplo citado por Paulo Mendes Campos: “O cachorro parou de correr e ficou arfando, com o idioma de fora”. Mas um pequeno exemplo como este, se aplicado a níveis mais rarefeitos de linguagem (como a poesia ou a filosofia), mostra a dificuldade de transpor todas as conotações do texto em sua língua original. 

Se a gente der-uma-geral nas traduções de Faulkner mundo afora (sei lá – na Lituânia, na Tunísia, na Bósnia...) talvez encontre versões sutilmente distorcidas daquela frase inicial. 

Entre a tristeza e o vácuo, eu escolho a tristeza. Entre a mágoa e a ausência de alternativas, eu escolho a mágoa. Entre o remorso e nada mais, eu escolho o remorso. Entre a aflição e um zero, eu escolho a aflição. Entre o luto e a morte, eu escolho o luto. E assim por diante.




0847) O Estudante de Praga (3.12.2005)




A antologia João Martins de Athayde (Editora Hedra, São Paulo, 2000; Coleção “Biblioteca de Cordel”) traz um precioso material sobre o grande cordelista. Além do texto completo de oito folhetos, temos uma introdução escrita por Mário Souto Maior, a transcrição de um depoimento de Waldemar Valente, datado de 1976, e uma longa e esclarecedora entrevista com a viúva do poeta, D. Sofia Cavalcanti de Athayde, concedida em 1980.

Na introdução, Mário Souto Maior lembra que a principal distração do poeta era ir ao cinema, o que é confirmado pela viúva. Diz ela: 

“Ele gostava muito de cinema. Ele tinha uma mania de toda noite ir ao cinema, sozinho (...) Cinema Glória, Ideal, São José. Mas o que ele mais frequentava era o Ideal.” 

Ela não lembra nenhum folheto do marido inspirado em filmes, e em sua introdução Mário Souto Maior comenta: “Interessante é o fato de o poeta, pelo que me consta, nunca haver escrito um folheto baseado em algum filme.”

Há pelo menos um folheto de Athayde diretamente inspirado no cinema. Trata-se do romance (32 páginas) O estudante que se vendeu ao diabo. A edição que consultei é de 1949, podendo haver outras mais antigas. 

O folheto é claramente inspirado no filme O Estudante de Praga, um clássico do Expressionismo Alemão, que teve pelo menos três versões: a de Stellan Rye em 1913, a de Henrik Galeen em 1926, e a de Arthur Robison em 1935. Em uma destas duas últimas Athayde provavelmente se baseou para criar seu folheto.

O herói do folheto chama-se Balduíno (como o herói das três versões cinematográficas). É um estudante e hábil espadachim que vende a alma ao diabo para enriquecer e poder casar-se com Olga, uma moça rica, noiva de um barão. Um homem misterioso vai a sua casa, dá-lhe uma bolsa cheia de ouro inesgotável, e leva consigo o reflexo do estudante no espelho. Ele fica rico, mas passa a evitar os ambientes onde haja espelhos, para que ninguém perceba que ele não tem imagem. 

Um dia, o barão, com ciúmes de Olga, o desafia para um duelo. Ele decide não ir, mas depois descobre que seu “reflexo” compareceu ao duelo e matou o barão. Ele arrepende-se, e no final desfere um tiro contra o próprio peito: a bala espatifa o espelho e ele ao voltar a si percebe que os cacos de vidro novamente o refletem.

O argumento do folheto coincide em muitos pontos com o dos filmes (que aliás se baseavam todos num conto de H. Heinz Ewers). 

A narrativa de Athayde, rica e fluente como sempre, reconstitui a narrativa cinematográfica com bastante senso da imagem, como na cena em que o Diabo entra no quarto do estudante: 

Balduíno entrou em casa 
sentou-se e pôs-se a cismar 
quando olhando para a porta 
viu o velho atravessar 
a porta mesmo fechada 
ficou de cara espantada 
vendo o homem assim passar. 

As trucagens do cinema mudo são descritas no cordel com o tom exato de ingenuidade, deslumbramento e tosca magia, como se os dois tivessem sido feitos um para o outro.



P.S.: o folheto que consultei pertence à coleção da Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), que já está em parte digitalizada, mas ao que parece este título ainda não o foi. (2017)




0846) Guimarães Rosa e o turbante (2.12.2005)




Guimarães Rosa foi metade cientista, metade místico. 

Por um lado, tinha uma mente racional, organizativa, meticulosa, capaz de enxergar idéias com espantosa nitidez e de extrair delas até as derradeiras gotas do seu sumo cognitivo. 

Por outro lado, era um vislumbrador de umbrais. Um intuitivo que captava mensagens urgentes num idioma esquecido. Um sensitivo a quem o Acaso fazia tropeçar em serialidades improváveis ou simetrias perturbadoras. Assim era o homem, e assim é toda a literatura que nos deixou.

Conta ele, num episódio de Ave, Palavra, que tinha um amigo, cuja identidade protege sob o cognome de “Marduque”. Sujeito ótimo, cem por cento, mas que lhe produziu certa vez uma impressão esquisita, indefinível. O escritor julgou perceber no amigo “um intimíssimo tumulto, muito incômodo”. Diz Rosa: 

“Dali saí com Marduque um tanto transversalmente. (...) Comecei a sentir a urgente e defensiva precisão de não pensar nele”. 

Pensar no amigo, visualizar sua imagem, o incomodava, e ele acabou encontrando para isto uma solução estapafúrdia: 

“E, solução intermédia, acudiu-me então: poder pensar Marduque, mas... Marduque com um turbante na cabeça...”

Doideira? Concordo, mas o remédio de um doido é outro na porta, como prescreve a farmacologia popular. Rosa diz que depois que esta idéia lhe ocorreu tudo se pacificou. Só pensava em Marduque com o tal turbante na cabeça, o qual variava de cores ou de modelo, mas era um santo remédio para a lembrança incômoda: 

“A cada vez que pressentia, em presença ou à distância, aquele seu oculto sacolejar sulfúrico, bastava-me impor-lhe o turbante. Ele de nada desconfiava, e desse modo pude sustentar ilesa a nossa amizade, por tantos anos”.

Acontece que certo dia o escritor está na companhia de outro amigo a quem chama “Magnomuscário”, sujeito de tendências místicas “espécie de iogue swedenborguiano, gente que tudo muito vê”. Eis que Marduque também está presente, e cabe a Guimarães Rosa apresentar os dois amigos um ao outro. E logo em seguida Magnomuscário lhe revela ter sentido algo de estranho em Marduque, algo que por discrição não deseja especificar. Como Rosa insiste, ele faz apenas um comentário, complementado por um gesto: 

“Como Caifaz... podia usar um turbante...”

Guimarães Rosa confessa-se estarrecido com essa revelação, que nem sequer tenta explicar. Telepatia? Clarividência? Não sei, e o próprio escritor encerra o episódio confessando sua ignorância. 

Que um indivíduo sinta uma necessidade inexplicável de imaginar um conhecido usando turbante, já é algo um tanto fora-dos-eixos; que a mesma idéia ocorra a uma terceira pessoa, é coincidência demais. 

Podemos racionalizar imaginando uma possível semelhança de Marduque com um hindu iconograficamente famoso, requerendo o turbante para “fechar” a memória visual. Racionalizações assim, no entanto, são como tentar tapar uma torneira com uma pedra de gelo.







0845) Soy Loco por Ti, América (1.12.2005)


("Latinoamerica", de Anton Olea)

Acabou a novela América da Globo, e de repente percebi estar sentindo falta daquela musiquinha de todas as noites: “Soy loco por ti, América... Soy loco por ti de amores...” E pensei que certas palavras funcionam como uma incógnita algébrica, ou seja, podemos atribuir-lhes o valor que bem entendemos, sabendo que com isto estamos alterando o valor da fórmula inteira a que pertencem.

A novela da Globo celebra a América dos norte-americanos, estes reluzentes e faiscantes Estados Unidos que cintilam no horizonte de todos os países do mundo, mesmo os que ficam do lado oposto do planeta. Para onde quer que um terrestre se vire, em sua própria pátria, acaba enxergando as torres douradas, as torres de cristal, as torres de diamantes e de dólares da pátria do capitalismo, a qual, como aqueles palácios misteriosos dos contos de fadas, nos atrai quando estamos distantes e passa a nos repelir à medida que chegamos perto.

Elia Kazan fez um belo filme sobre o sonho da migração (no caso, dos gregos e armênios) para os EUA. O título original do filme é America America, e o título brasileiro foi um desses raros casos em que melhoramos o original: Terra do Sonho Distante. Não pode haver título mais preciso para essas histórias de gente humilde e corajosa que vê no horizonte um clarão que nunca se apaga, o clarão das luzes de um país onde há oportunidade para todos, desde que sejam honestos, trabalhadores, e acreditem nos ideais democráticos. Como resistir a um clarão assim?

Acontece que a canção “Soy loco por ti, América” não se refere a essa América mítica, e sim à nossa América Latina. Que eu me lembre, foi a primeira canção brasileira em que ouvi elogios ao nosso pobre subcontinente, repleto de lhamas, índios vestindo ponchos e ditadores bigodudos. A canção (de Gilberto Gil e Capinam) apareceu no primeiro disco de Caetano Veloso (1968). Diz-se que era uma homenagem velada a Che Guevara (“el nombre del hombre muerto ya no se puede decirlo, quien sabe...”). Mas seu ritmo latino, cheio de maracas e pistons, nos remetia de imediato ao mundo da salsa, do mambo, do merengue. Um mundo com o qual não nos identificávamos.

Uma vez, o editor da revista Veja deu uma entrevista no programa de Jô Soares, que lhe perguntou qual o tipo de notícia que menos interessava ao leitor brasileiro. E ele disse: “Qualquer coisa sobre a América Latina. A gente só publica por obrigação jornalística, mas ninguém sentiria falta se não publicássemos”. A América que queremos ver, ou que a classe média leitora de Veja quer ver no horizonte, é a América do dólar, de Miami, do “vou levar as crianças à Disney”. Não é a América que escritores como Eduardo Galeano tentam manter viva em nossa memória na trilogia Memória do Fogo. Eu digo que o Brasil mudou no dia em que a Globo fizer uma novela das 8 ambientada na América de Vargas Llosa, de Astúrias, de Garcia Márquez, de Ernesto Sábato, de Juan Rulfo.

0844) Os estilistas excêntricos (30.11.2005)


(Tom Zé)

Dentro da literatura de ficção científica há um grupo de autores a quem a crítica se refere com um termo que acho muito útil: “the oddball stylists”, “os estilistas excêntricos”. São autores que todo mundo admira mas não sabe onde enquadrar. Usam os temas e as imagens da FC, conhecem as regras do gênero, mas suas obras sabotam sistematicamente estas regras. Esta descrição destaca dois aspectos essenciais: 1) são estilistas (ou seja, têm um informação e um domínio da técnica literária muito acima da média), e 2) são excêntricos, estão sempre fazendo algo imprevisível, fora-de-esquadro. Este último aspecto é importante, porque um autor como Ray Bradbury (autor das Crônicas Marcianas e de Fahrenheit 451) é um estilista, mas não é excêntrico. Após o choque inicial de quando o conhecemos, sua obra vira uma planície calma, sem catabís e sem surpresas.

Estilistas excêntricos na FC são autores como Avram Davidson, R. A. Lafferty, Gene Wolfe, Cordwainer Smith e outros. Mas não é deles que quero falar aqui. Eu gostaria de pedir emprestado este conceito e aplicá-lo à Música Popular Brasileira, onde encontramos mestres de inquestionável talento que em princípio são grandes estilistas, mas não são excêntricos, pelo contrário: na sua obra, a única surpresa é a alta qualidade do que produzem, com uma admirável constância. Mas são autores que não nos pregam sustos. Eu não acho, por exemplo, que a obra de talentos como Edu Lobo, Chico Buarque, Milton Nascimento, Tom Jobim, Gilberto Gil, João Bosco e vários outros seja uma obra excêntrica. Pelo contrário. Se a MPB tem algum tipo de centro, são eles.

Mas o que dizer de um artista como Tom Zé? Um artista como Hermeto Paschoal? Um artista como Jorge Mautner, ou Jards Macalé? Para mim são estilistas excêntricos, porque mesmo que a gente não goste do que eles fazem (e muita gente que gosta de uns não gosta dos outros), ninguém pode negar duas coisas: todos são tecnicamente competentes, e nunca se pode afirmar com certeza como será o perfil de seu próximo trabalho. São fontes permanentes de surpresa, de susto, de imprevisto. Sua excentricidade pessoal não reside em seu comportamento meio “clown”, em sua mistura proposital do sublime e do grotesco, do erudito e do brega, do refinado e do descartável (embora todos eles tenham tais misturas, em doses variadas). São excêntricos porque temos a impressão de que o centro de seu mundo mental não coincide com o “centro” da música popular. Cada um deles parece ter um projeto próprio que só ocasionalmente coincide com “a linha evolutiva da música popular brasileira” que, ao que parece, era o projeto próprio de artistas como Tom Jobim ou João Gilberto. Os estilistas excêntricos da MPB têm o poder de subir ao palco e na primeira música puxar o tapete onde milhares de pessoas pensavam estar pisando minutos atrás, fazê-las dar uma cambalhota, e cair de volta sobre o tapete – que levanta vôo com todos juntos.

0843) A tragédia do Náutico (29.11.2005)



O vício do futebol me coloca às vezes em situações constrangedoras. Sábado passado, interrompi por mais de duas horas um trabalho urgente e importante, e fui assistir (em dois canais simultâneos) os dois jogos que decidiam, em Recife, a Série B do Brasileiro: Santa Cruz x Portuguesa, e Náutico x Grêmio. Estava torcendo pelos dois times pernambucanos, que, se vencessem ambos, subiriam de volta para a Primeira Divisão. Sentiram o drama? Eu sou Sport (lá em casa todo mundo é Sport, por causa de meu pai, que era recifense e torcedor do Leão da Ilha), e fico agora, a esta altura do meu campeonato particular, atrasando meu trabalho pra torcer pelo diabo duma cobra e dum timbu, só porque são nordestinos!

O Santa Cruz fez sua parte, no Arruda: virou de 0x1 para 2x1 ainda no primeiro tempo, e conseguiu a classificação. Vitória justa, se considerarmos que a Portuguesa tem um bom time, mas que finaliza pessimamente. O jogo de acabar com os cardíacos, contudo, foi o do estádio dos Aflitos.

O Náutico perdeu um pênalte ainda no primeiro tempo. No segundo, o juiz expulsou um jogador do Grêmio e logo em seguida marcou um pênalte contra o time gaúcho, o que fez explodir a maior confusão. Um chute na direção do gol que foi providencialmente desviado pelo cotovelo do jogador gremista, que, ainda assim, tem o braço próximo ao corpo e também parece fazer um movimento tentando se esquivar da bola. No mínimo, uma marcação duvidosa. Os jogadores do Grêmio perderam a cabeça, agrediram o juiz, e mais três foram expulsos. Começou aquela cena clássica do futebol brasileiro, com dirigentes gordos e apopléticos invadindo o campo, policiais de armadura dando encontrões em quem estivesse na frente, técnico querendo arrastar o time pro vestiário, vinte e tantos minutos de truculência patética.

Faltavam 10 minutos para terminar: o Náutico tinha 11 jogadores e o Grêmio 7. Bastava converter o pênalte, e talvez até fazer mais um gol, para sacramentar a vitória. Mas aí pisaram na grama as três bruxas de Macbeth. Não se deve brincar com os deuses do futebol, amigos. São deuses célticos e sangrentos, bretões e cruéis. Os deuses do futebol gostam de trovões e relâmpagos. Quando o juiz apitou, o jogador do Náutico bateu pessimamente o pênalte, e o goleiro defendeu. Segundos depois, um jogador do Náutico foi expulso por uma falta desnecessária. A falta foi batida, e Anderson, um desses negrinhos-do-pastoreio que o futebol gaúcho revela de vez em quando, serpenteou de área adentro, arisco, e mandou para as redes. Um a zero, Grêmio campeão.

Em cerca de um minuto o Náutico foi da euforia ao estado de choque, e o Grêmio foi do vilipêndio ao pódio. É por estas e outras que os coleguinhas da página esportiva não cansam de se referir à “magia do futebol”. Futebol é zig-zag, reviravolta, salto quântico, cambalhota do destino, lance de dados que jamais abolirá o Acaso. Ou, como dizem os colegas: é uma caixinha de surpresas.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

0842) A flor do coco (27.11.2005)




Minha mãe vivia fazendo bolos, tapiocas, cocadas, um monte de quitutes caseiros que requeriam coco. E toda vez que ela pegava um coco para partir perguntava aos filhos que estivessem por perto: “Vai querer a água ou a flor?” 

Eram duas opções irresistíveis, profundo dilema filosófico, daqueles de travar a placa-mãe de qualquer filho. Partido o coco, a água era recolhida num caneco e entregue a um, enquanto outro recebia a “flor”, ou seja, a primeira raspagem da carne branca e úmida que o coco guarda em seu interior. 

Coco ralado já é uma coisa gostosa; avaliem a primeira raspa, a raspa daquela superfície molhada, macia, ainda guardando a leve carnosidade que tem a polpa do coco verde. Depois de raspada a flor, o resto do coco, conquanto saboroso, não tinha o mesmo frescor, não trazia a mesma brisa ao paladar.

Chamem-me pseudo-intelectual, se quiserem, mas acho que com os livros se dá algo parecido. Quando descobrimos no balcão ou na prateleira um livro que nos atrai e o compramos, tudo nele ainda tem o sabor de novo. 

E nada se compara àquele primeiro contato quando, na tranquilidade do gabinete de leitura, abrimos o pacote e podemos por fim examiná-lo devagar, folheá-lo, conhecê-lo aos poucos. Examinamos a capa, lemos o texto de contracapa, as orelhas; vamos ao índice, vamos ao índice remissivo quando o há, corremos o polegar pelas folhas, admiramos as ilustrações, lemos um pedacinho aqui, outro ali, saboreamos o prefácio...

E aí ocorre algo curioso. No dia seguinte, quando pegamos o livro de novo, é como se um pequeno encanto já tivesse se desvanecido. O livro não tem mais aquele frescor, aquele gosto de coisa nova. 

Para todos os efeitos, não o lemos ainda, mas por outro lado é como se ele já tivesse perdido a novidade. Porque o que ele nos deu, naquela primeira noite de contato, foi a sua flor-do-coco, foi a superfície intacta e virgem de coisa nova, desconhecida, repleta de infinitas possibilidades. 

Depois daquela manuseada inicial, depois daquelas primeiras folheadas, o livro perdeu o seu verniz de Desconhecido e de Mistério. Fazia parte do mundo e seus mistérios; agora faz parte de nós mesmos e de nosso bocejante repertório de coisas já conhecidas.

Chamem-me moralista, mas palpita-me que é isto que ocorre também com o Cavalheiro Casanova, com Don Juan e com os demais grandes conquistadores da História. O que eles buscam não é uma mulher, é o verniz de Desconhecido, de Novidade e de Mistério que qualquer mulher traz num primeiro contato; é aquela sensação de frescor de um sabor jamais provado antes, de um sabor que tivesse estado se guardando a vida inteira para ser desfrutado pelo paladar do conquistador. Experimentada a flor, os 99% restantes do coco tornam-se (para eles) redundantes e supérfluos. 

O conquistador é um vampiro que não se alimenta de sangue, mas de ineditismo. Sua vida é uma busca incessante de novos amores, não por serem amores, mas por serem novos.






0841) “Dossiê H” e a poesia homérica (26.11.2005)





Para os que se interessam pela Literatura Oral e pela cultura popular, recomendo o saboroso livro de Ismail Kadaré, Dossiê H (Companhia das Letras, 2001, traduzido do albanês por Bernardo Joffily). 

Kadaré escreveu, entre outras obras, o romance em que se baseou o filme Abril Despedaçado, de Walter Salles. 

Em Dossiê H, ele mostra dois folcloristas irlandeses que partem para a Albânia para registrar os longos poemas épicos que os rapsodos de regiões montanhosas passam de geração em geração, por transmissão oral. Os dois folcloristas estão interessados em reconstituir como a poesia oral da Grécia dos tempos homéricos acabou se aglutinando na forma da Ilíada e da Odisséia, e descobrem que a Albânia é o único país onde existe um fenômeno cultural semelhante.

É um romance curto (166 páginas), com algumas subtramas engraçadas que lhe dão sabor; o que mais me ficou na memória foi a descrição das regiões montanhosas da Albânia, que décadas de comunismo e burocracia estatal conseguiram manter cuidadosamente preservadas de qualquer tipo de progresso ou influência cultural externa. 

(Está aí um bom argumento, talvez o único, em favor das ditaduras e das oligarquias: elas imobilizam o Tempo em seu próprio país, o qual logo se transforma num museu de coisas que já desapareceram no resto do mundo.)

Max Roth e Willy Norton, os folcloristas, começam a encontrar rapsodos ambulantes nas estalagens das montanhas e a gravar seus enormes poemas. Eles se perguntam: “Quantos versos um rapsodo consegue saber de cor? Alguns falam em seis mil, outros em oito mil e até doze mil versos”. 

Existe um componente étnico muito forte nessa tradição; os sérvios (que são de raça eslava) competem ferozmente com os albaneses. 

“Durante mais de mil anos, albaneses e eslavos haviam se entrematado interminavelmente naquelas terras. Batiam-se por qualquer coisa: terras, fronteiras, pastagens, água; não seria de espantar se combatessem pelas estrelas do céu. E como se isso não bastasse, disputavam também a antiga epopéia, que, para completar a tragédia, florescia nas duas línguas, albanês e servo-croata. Cada povo teimava em se proclamar o criador da epopéia, reduzindo o outro à condição de ladrão, ou, na melhor das hipóteses, imitador”.

Parece o Nordeste, hem? Parece mais ainda na cena em que eles gravam sua primeira cantoria e o tocador de “lahute” (espécie de alaúde) bota o dedo no ouvido ao começar a cantar: “a necessidade de tapar um ouvido durante a apresentação se liga à transformação da voz do rapsodo, de ‘voz do peito’ em ‘voz da cabeça’, e à necessidade de manter o equilíbrio em face da vertigem que a cantiga provoca”. 

Parece com nossos velhos aboiadores nas vaquejadas, tapando o ouvido e largando o vozeirão mundo afora. Vozes que ressoam aqui e na Albânia, e em tantos lugares que ainda mantêm uma ligação telepática com a Grécia de Homero.





0840) Canções de alegria de viver (25.11.2005)





(Matisse: "A Alegria de Viver")

Falei dias atrás que as canções de depressão constituem um gênero da música popular; é óbvio que deve existir, e existe, o seu oposto simétrico, as “Canções de Alegria de Viver”. Canções em que letra e música se apóiam mutuamente para nos transmitir esta adrenalina indispensável à vida humana. 

Como não se sentir reconciliado com o mundo quando escutamos “Alegria Alegria” de Caetano Veloso, mesmo tendo ela sido utilizada como abertura de minissérie da Globo, e tocado até fazer um calo em nossa memória? Não importa: ela registra aqueles momentos mágicos em que um indivíduo sai de rua afora, “nada no bolso ou nas mãos”, embebido da pura e simples alegria de Ser e de Estar.

"Alegria, Alegria" ao vivo, no Festival da Record (1967):
https://www.youtube.com/watch?v=wWhnq5YcBfk


Parte do encanto da música pop se faz de canções aparentemente bobas e superficiais, mas que pela alquimia dos verbos e dos sons conseguem encapsular os momentos ensolarados da vida: “Feelin’ Groovy” de Paul Simon, “Brown-Eyed Girl” de Van Morrison, “Daydream” do Lovin’ Spoonful, “Good Day Sunshine” dos Beatles... 

Simon & Garfunkel, "Feelin'  Groovy":
https://www.youtube.com/watch?v=NvlW4bEjB5A

Van Morrison, "Brown Eyed Girl":
https://www.youtube.com/watch?v=UfmkgQRmmeE

Lovin Spoonful, "Daydream":
https://www.youtube.com/watch?v=M7u5SdjDSQQ

Paul McCartney, "Good day, sunshine":
https://www.youtube.com/watch?v=rFxXoHkIwMk


O que faz o encanto destas músicas? Talvez o timbre claro das guitarras, uma cadência meio lânguida aqui, meio saltitante acolá, comunicando um prazer de quem anda rápido sem pressa; as vozes traçando melodias que espontaneamente temos vontade de cantar junto... 

São meras musiquinhas, nenhuma Obra de Arte do Cânone Ocidental, mas trazem aquele abençoado poder de nos fazer emergir, numa manhã depressiva, das nuvens soturnas do mau-humor e dentro de meio minuto estar assobiando, tamborilando na mesa, achando bom estar vivo.

Há diferentes formas de alegria; há alegrias mais sérias e reflexivas, como a que nos traz a grande canção de Violeta Parra, “Gracias a La Vida”, que me evoca a imagem de alguém num terraço, ao entardecer, vendo o sol se pôr, e dando um balanço nas coisas boas que há para lembrar. 

Ou a beleza da “Manhã de Carnaval” de Luís Bonfá e Antonio Maria, melodia e letra entrelaçadas na criação de um clima de quem acorda e já abre os olhos feliz da vida, inundado de paz e de expectativa pelo dia que começa: “Manhã, tão bonita manhã... Na vida uma nova canção...” 

E, num clima muito semelhante, a irretocável “Estrada do Sol” de Tom Jobim e Dolores Duran: “É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar, ainda estão a dançar, ao vento alegre que me traz esta canção...”

Mercedes Sosa, "Gracias a la vida":
https://www.youtube.com/watch?v=WyOJ-A5iv5I

João Gilberto, "Manhã de Carnaval":
https://www.youtube.com/watch?v=JKX2VSMj-zs

Elis Regina & Gal Costa, "Estrada do Sol":
https://www.youtube.com/watch?v=Clxr8rH1FAs



Será este um gênero legítimo da música popular? 

Para os poetas, sim, porque certos momentos que pedem expressão estética se afirmam primeiro como um sentimento-de-vida geral, total, e é irrelevante se irão se transformar numa valsa ou num reggae ou sei lá em quê. 

Quando um letrista se senta à janela para escrever uma letra, em geral está se lixando para ritmos e arranjos. É a luz de um momento que ele está querendo captar, e sorte dele se depois encontrar um músico que, lendo seus versos, encontre uma melodia, uma harmonia e um ritmo que pareçam estar sentindo e dizendo a mesma coisa.





0839) A arte da dupla leitura (24.11.2005)




A Disneylândia de Hong Kong foi inaugurada, e é curioso ver os relatos sobre as adaptações feitas no projeto básico para adequá-lo aos costumes chineses. Uma das principais influências é a desse tal de “Feng Shui”, que eu pensava que era uma invenção da Zona Sul carioca, mas não, existe lá na China também. 

O parque inteiro foi planejado para atender a essa arte de orientação espacial das instalações, assegurando o fluxo livre de energias positivas, As alamedas, por exemplo, são curvas, em vez de retas; as montanhas ladeiam o parque, cuja entrada fica virada na direção do mar. O fato de haver uma pequena ilha no oceano em frente é considerado positivo. Os chineses não gostam de vastas extensões contínuas de água. Para eles, mar sem ilhas é como céu sem estrelas.

O mais interessante são as aliterações verbais que dão boa sorte. O restaurante do hotel do parque tem 2.238 lótus de cristal em sua decoração. Por que um número tão exato? Porque o número 2.238 em chinês soa parecido com a frase “riqueza com facilidade”. 

O hotel, por outro lado, não tem o quarto andar (como muitos outros prédios na China), porque a palavra “quatro” soa parecido com a palavra “morte”. Nas lojas de souvenir não se acham relógios; é um presente pouco usado na China, porque em chinês a frase “dar um relógio” soa parecido com “ir a um enterro”.

Não vamos mangar deles – afinal, em nossa própria cultura o número 24 sugere que um sujeito é homossexual, o número 171 no Rio é sinônimo de desonestidade, e o número 13 costuma dar azar (principalmente a quem se veste de preto e vermelho). 

O mais interessante é essa superstição baseada na semelhança fonética das palavras. A língua chinesa é tremendamente monossilábica, e depende muito do modo de pronunciar. Um trechinho como, sei lá, “chuan cheng djun kai” pode significar “Ó minha Amada, teus olhos parecem dois lótus ao luar do verão” mas com mudança de entonação (“tchuan tchen joon kiai”) pode querer dizer “Eita, chegou a conta do meu celular”.

O escritor de ficção científica Cordwainer Smith, criado na China, foi conselheiro militar americano na Guerra da Coréia. Era difícil conseguir fazer com que soldados chineses se rendessem, porque a rendição era considerada uma desonra. Smith espalhou milhares de panfletos pedindo aos chineses que, ao se entregar, gritassem para os americanos as palavras chinesas “amor”, “dever”, “humanidade” e “virtude”, que, pronunciadas em conjunto, soam como as palavras inglesas “I surrender” (“Eu me rendo”). 

Uma bela utilização da ambigüidade fonética, sons quase iguais com significados completamente diferentes. Smith considerava este o ato mais importante de sua biografia (salvou centenas de vidas), e seus belos contos de FC são cheios de personagens e lugares com nomes poéticos, às vezes com um toque oriental: Alpha Ralpha Boulevard, Lady C’Mell, Clown Town, Lord Jestocost, Lord William Not-from-here, Magno Taliano, Dolores Oh.