quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

0845) Soy Loco por Ti, América (1.12.2005)


("Latinoamerica", de Anton Olea)

Acabou a novela América da Globo, e de repente percebi estar sentindo falta daquela musiquinha de todas as noites: “Soy loco por ti, América... Soy loco por ti de amores...” E pensei que certas palavras funcionam como uma incógnita algébrica, ou seja, podemos atribuir-lhes o valor que bem entendemos, sabendo que com isto estamos alterando o valor da fórmula inteira a que pertencem.

A novela da Globo celebra a América dos norte-americanos, estes reluzentes e faiscantes Estados Unidos que cintilam no horizonte de todos os países do mundo, mesmo os que ficam do lado oposto do planeta. Para onde quer que um terrestre se vire, em sua própria pátria, acaba enxergando as torres douradas, as torres de cristal, as torres de diamantes e de dólares da pátria do capitalismo, a qual, como aqueles palácios misteriosos dos contos de fadas, nos atrai quando estamos distantes e passa a nos repelir à medida que chegamos perto.

Elia Kazan fez um belo filme sobre o sonho da migração (no caso, dos gregos e armênios) para os EUA. O título original do filme é America America, e o título brasileiro foi um desses raros casos em que melhoramos o original: Terra do Sonho Distante. Não pode haver título mais preciso para essas histórias de gente humilde e corajosa que vê no horizonte um clarão que nunca se apaga, o clarão das luzes de um país onde há oportunidade para todos, desde que sejam honestos, trabalhadores, e acreditem nos ideais democráticos. Como resistir a um clarão assim?

Acontece que a canção “Soy loco por ti, América” não se refere a essa América mítica, e sim à nossa América Latina. Que eu me lembre, foi a primeira canção brasileira em que ouvi elogios ao nosso pobre subcontinente, repleto de lhamas, índios vestindo ponchos e ditadores bigodudos. A canção (de Gilberto Gil e Capinam) apareceu no primeiro disco de Caetano Veloso (1968). Diz-se que era uma homenagem velada a Che Guevara (“el nombre del hombre muerto ya no se puede decirlo, quien sabe...”). Mas seu ritmo latino, cheio de maracas e pistons, nos remetia de imediato ao mundo da salsa, do mambo, do merengue. Um mundo com o qual não nos identificávamos.

Uma vez, o editor da revista Veja deu uma entrevista no programa de Jô Soares, que lhe perguntou qual o tipo de notícia que menos interessava ao leitor brasileiro. E ele disse: “Qualquer coisa sobre a América Latina. A gente só publica por obrigação jornalística, mas ninguém sentiria falta se não publicássemos”. A América que queremos ver, ou que a classe média leitora de Veja quer ver no horizonte, é a América do dólar, de Miami, do “vou levar as crianças à Disney”. Não é a América que escritores como Eduardo Galeano tentam manter viva em nossa memória na trilogia Memória do Fogo. Eu digo que o Brasil mudou no dia em que a Globo fizer uma novela das 8 ambientada na América de Vargas Llosa, de Astúrias, de Garcia Márquez, de Ernesto Sábato, de Juan Rulfo.

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