Quando aos dezenove anos assisti pela primeira vez Acossado de Jean-Luc Godard, uma das lembranças mais fortes que me ficaram foi a citação (Godard é um fetichista de citações) de uma frase de William Faulkner (em The Wild Palms): “Between grief and nothing, I will take grief” (“Entre a dor e o nada, eu escolho a dor”).
Isto me lembrou uma outra citação, desta vez de Dostoiévski (não boto a mão no fogo – li isto em segunda ou terceira mão), que dizia, mais ou menos:
“Se um homem tiver que ficar de pé, nu, na escuridão, no frio e na treva, no topo de uma montanha altíssima, sem poder mover os pés para o lado para não cair no abismo, sem poder comer, nem dormir, nem descansar, tiritando de frio sob a chuva gelada, durante um milhão de anos – e alguém perguntar se ele quer morrer, ele dirá que não, que muito obrigado, que prefere continuar assim por mais um milhão de anos”.
Você é assim, caro leitor? Não sei se eu sou, mas sempre achei que este era um dos problemas mais úteis de toda a Filosofia (e vi isto confirmado quando li em Albert Camus que o único problema filosófico realmente sério é o suicídio).
Acho que tanto o sofrimento contínuo quanto a aniquilação definitiva nos repelem, nos fazem recuar, por uma espécie de instinto. Fiz uma vez um poemazinho curto que dizia:
Numa margem está o Nada.
Na outra margem, a Dor.
Que enrascada,
nadador!
Se tivermos que escolher entre as duas, qual delas nos parecerá a menos pior?
Vi há pouco tempo uma menção a esta frase num artigo sobre o desenho animado japonês Ghost in the Shell. O artigo é sobre um episódio cheio de citações literárias, que se perdem quando retraduzidas do japonês para o inglês. O roteiro fazia referência ao filme de Godard através da frase de Faulkner, mas na retradução ela virava: “Entre a dor e o vazio, eu escolho a dor”. O articulista comenta:
“Talvez a gente deva ver isto com indulgência. Estamos falando da dublagem em inglês de uma série de TV japonesa que se refere a um filme francês que incorpora uma citação de um escritor americano”.
Não se trata propriamente de um erro de tradução; nada que se assemelhe ao famoso exemplo citado por Paulo Mendes Campos: “O cachorro parou de correr e ficou arfando, com o idioma de fora”. Mas um pequeno exemplo como este, se aplicado a níveis mais rarefeitos de linguagem (como a poesia ou a filosofia), mostra a dificuldade de transpor todas as conotações do texto em sua língua original.
Se a gente der-uma-geral nas traduções de Faulkner mundo afora (sei lá – na Lituânia, na Tunísia, na Bósnia...) talvez encontre versões sutilmente distorcidas daquela frase inicial.
Entre a tristeza e o vácuo, eu escolho a tristeza. Entre a mágoa e a ausência de alternativas, eu escolho a mágoa. Entre o remorso e nada mais, eu escolho o remorso. Entre a aflição e um zero, eu escolho a aflição. Entre o luto e a morte, eu escolho o luto. E assim por diante.
Um comentário:
Que maravilha! Topei com esse blog hoje, procurando alguma coisa sobre a editora Vecchi - que o Ruy Castro menciona na sua crônica de hoje pra Folha de S.Paulo.
Não sabia que a frase era do Faulkner. Ouvi pela primeira vez em "Curtindo a Vida Adoidado" ou "Ferris Bueller's Day Off", filme memorável da minha adolescência (adolescência, ora, a quem estrou enganando?).
Agora só sei que preciso ler Faulkner as soon as possible. Grato.
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