sexta-feira, 14 de outubro de 2016

4170) Um prêmio Nobel pra Bob Dylan (14.10.2016)



Essa candidatura de Dylan ao prêmio Nobel é coisa velha. Há muitos anos que vejo, nos saites dos fãs, imagens da documentação de inscrição oficial, etc. 

Já escrevi aqui sobre as listas de Prêmios Nobel Alternativos, que sugerem substituir premiados que ninguém conhece por autores muito mais significativos e que nesse mesmo ano estavam no auge de suas obras. Gente como Franz Kafka ou Philip K. Dick ou Jorge Luís Borges, que nunca ganharam.

O crítico Ted Gioia (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/12/1440-o-premio-nobel-alternativo.html) sugere que em vez do poeta Derek Walcott (1992) a Academia deveria nesse ano ter premiado Bob Dylan.  Já nessa época não concordei.  Li pouca coisa de Walcott mas concordo que seja um grande poeta e mereça o prêmio – seja lá o que isso signifique em termos de grana, imagem, poder, acesso.

Nunca achei que Dylan ganhasse. E também nunca liguei muito. Para não parecer que estou esnobando o prêmio Nobel, eu até acompanho bastante essa fórmula-um, sei do impacto que produz. Daí a considerar que os acadêmicos suecos sabem o que é boa literatura e eu não, vai uma grande distância. Mas o leitor leigo, que precisa de um formador de opinião para lhe sugerir o que pensar, fica atarantado diante dessas decisões inesperadas.

Dylan  ganhou por suas canções, mas tem dois livros excelentes, cada qual dentro do seu subgênero, sua época.

Tarantula (1966) é um daqueles textos-colagem de pequenos episódios absurdistas saturados de referências da cultura pop. É quase um prolongamento das Contracapas escritas por Dylan para a maioria dos seus álbuns, principalmente a prosa estilhaçante e eletrificada dos textos incluídos em Bringin’ It Alll Back Home (1965) e Highway 61 Revisited (1965). Uma prosa prima dos textos beat de Ginsberg, Burroughs e Kerouac.

O outro livro, que me surpreendeu, porque não esperava grande coisa dele, foi sua recolha de memórias, Crônicas, vol. 1 (2004 – aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2008/12/0680-bob-dylan-sabe-escrever-2452005.html). Muita gente pensou que seria uma autobiografia cobrindo, quem sabe, a primeira metade da carreira do cantor. E de fato ele fala bastante da New York pós-1960 onde caiu de paraquedas e decolou de foguete. Mas pula para a frente e para trás, fala pouquíssimo dos seus discos mais importantes, a cronologia rapidamente vai pro espaço.

A prosa de Dylan é surpreendentemente bem escrita, precisa, descrevendo o ambiente enfumaçado do Greenwich Village, mostrando os tipos, os cantores, os intelectuais, a malucada, comentando tudo. Alguns críticos observaram que Dylan nesses capítulos iniciais “ressuscitou” vários tipos da cena folk novaiorquina desse tempo.

Ele faz muitos comentários bons sobre seu processo criativo, inclusive tentando explicar uma regra numérica que tem para compor suas músicas, a qual parece até fazer sentido, embora eu não tenha entendido até hoje.

Perto do final do livro ele conta como sua namorada Suze Rotolo o levou para assistir um ensaio do grupo para o qual ela fazia trabalhos de design. O espetáculo se chamava Brecht on Brecht, e era cheio de canções de Bertolt Brecht e Kurt Weill.

Dylan descreve, com uma precisão emocionada, como, ao ouvir as canções de Brecht e Weill, principalmente Pirate Jenny, ele entendeu como escrever uma canção que fosse além das canções folk.

Ele diz:

“Aquela canção era um estímulo novo para meus sentidos, sem dúvida muito parecida com uma canção folk mas uma canção folk de outra jarra e de outro terreno. Minha vontade era pegar um molho de chaves e sai pesquisando esse território, ver se tinha mais alguma coisa por ali. Desmontei a canção inteirinha e abri para olhar dentro dela – era aquela forma, aqueles versos em livre associação, a estrutura, o descaso pela certeza dos padrões melódicos, tudo fazendo com que a canção ganhasse peso, ganhasse um gume afiado.”

Já virou um clichê da crítica aludir a Dylan falando em Rimbaud, e ele próprio de vez em quando faz uma referência. Mas parece que o impacto da poesia do “pobre B. B.” sobre ele foi mais fecundo. Foi Brecht, visto num pequeno palco de ensaios off-Broadway, que lhe deu o estalo-de-Vieira criativo.

Dylan estava acostumado às canções folk norte-americanas, aquela simetria de estrofes idênticas do começo ao fim (como em nosso cordel), e as melodias anasaladas, proclamatórias e circulares das tradicionais baladas inglesas ou irlandesas. As imagens cortantes dos versos de Brecht e as dissonâncias controladas de Weill não passaram em branco.

Robert Shelton (The Bob Dylan Encyclopedia) registra que logo depois disto, em agosto de 1963, a revista musical Broadside publicou uma carta elogiosa de Dylan, no seu estilo ziguezagueante da época:

“Aleluia para vocês todos por terem colocado Brecht neste número mais recente da revista. Ele devia ser tão conhecido quanto Woody [Guthrie], e ser tão lido quanto Mickey Spillane”.

Pois é... fico eu falando de literatura e me esqueço de comentar A Coisa Mais Importante Do Mundo: os prêmios literários, que, para grande parte dos escritores de hoje, são o motivo principal de se escrever um livro.

Fico feliz com o prêmio para Dylan, não por ele, que não precisa de prêmio nenhum, mas pela discussão em torno de poesia, literatura e letra de música, uma discussão importante, se bem que geralmente baseada em premissas erradas.

Minha posição a respeito (que defendo aqui há muitos anos) é de que: 1) “Poesia”, “Letra de Canção”e “Literatura” pertencem ao mesmo campo artístico, usam a mesma matéria-prima (a palavra), e têm cada qual sua especificidade, mas nenhuma das três confere qualidade a uma obra: existe a poesia boa e má, a letra de música boa e má, a literatura boa e má. 2) O prêmio foi justíssimo: acho Dylan um dos grandes poetas do século 20.

E para consolar os inconsoláveis, transcrevo o depoimento de Greil Marcus (um dos melhores críticos de rock que conheço, fã e grande conhecedor de Dylan), sobre a possibilidade dele ganhar o Nobel, num depoimento de 2005:

“Eu espero que ele não ganhe esse prêmio. Existem milhares de escritores que precisam do prêmio mais do que ele. É um prêmio para a literatura; ele é um compositor, ele é um cantor, ele é um artista do palco. Seja como for, Bob Dylan já ganhou uma infinidade de prêmios, não precisa de mais este. Há muita gente que precisa desse dinheiro, que precisa de mais leitores.”










quarta-feira, 12 de outubro de 2016

4169) A arte do improviso (12.10.2016)



(busto de Antonio Marinho, em São José do Egito, PE)


Para quem é músico, o improviso é o solo instrumental feito na hora, com um mínimo de preparação, acompanhando a cadência rítmica e a sequência harmônica que o resto da banda está segurando, e, a partir disso, com liberdade total para inventar.

Para quem é cantador de viola, improviso é o verso pensado e cantado quase no mesmo instante, o verso quente, pegando fogo, forjado no toma-lá-dá-cá das sextilhas alternadas. O desafio instantâneo, onde, como me disse inesquecivelmente um cantador, “eu só sei o verso que fiz quando escuto minha boca dizendo”.

A verdade, porém, é que todos nós improvisamos o tempo inteiro quando falamos com alguém. São raros os casos em que “ensaiamos um texto” antes de ir conversar com quem quer que seja. Entrevista de emprego, pedido de noivado, reunião na firma, brinde em banquete... sim, às vezes a gente rabisca umas frases no papel, decora, repete, pra elas irem ficando maleáveis e darem a impressão de ser espontâneas.

Raramente dão: todo mundo pressente que é coisa decorada. Nossa prática constante do improviso é tal que geralmente percebemos de cara quando alguém está contribuindo com a conversa com um “texto pronto”, com frases trazidas de casa.

Achamos fácil improvisar porque nossa fala não tem restrições de métrica, rima, assunto, nada. Basta falar organizadamente o que vem à cabeça. Fazemos isso o dia todo, bem ou mal, a vida inteira. Somos os reis do improviso em prosa. (Está aqui um bom motivo pro cara ficar todo empavonado, como aquele personagem de Molière que a certa altura da vida descobriu que “falava em prosa”.)

O que chama mais a atenção nos improvisos da vida cotidiana é quando diante de uma situação inesperada a gente se sai com uma resposta perfeita, pensada em fração de segundo. Uma resposta que todos em volta percebem que não poderia ser adrede preparada, porque ninguém poderia prever o fato ou a frase que desencadeou a resposta.

É essa rapidez de raciocínio que a maioria dos cantadores tem, mesmo que não seja em verso.

Diz-se que Antonio Marinho estava em casa quando uma comadre dele, esposa de um tal Irineu, botou a cara na janela e perguntou: “Seu Antonio, o senhor viu Irineu?”, e ele em cima da bucha respondeu: “Não!  E fôro?...”

É uma dessas respostas geniais que só fazem sentido no contexto linguístico local. O diálogo, com a segunda-intenção projetada pelo poeta, é: “O senhor viu irem n’eu?”(=sexualmente), e a resposta: “Não!  E foram?...”

Vittorio de Sicca contava um episódio engraçado do início de sua carreira teatral. Jovem e desempregado, arranjou uma “ponta” numa peça, fazendo o criado que a certa altura entrava em cena para entregar uma mensagem ao Conde, algo assim. Sem comer há três dias, Vittorio vestiu a libré e entrou no palco. Quando viu a platéia, o famoso Monstro de Mil Rostos, deu-lhe uma turica e ele desabou no chão, desmaiado. O ator que fazia o Conde, entendendo tudo, recolheu o bilhete que ele tinha na mão, ergueu-o nos braços e levou-o para a coxia, comentando na direção da platéia: “Ora, ora, preciso esconder a chave da minha adega.”

Isso é um desses milhares de improvisos brilhantes que toda noite acontece nos teatros, mundo afora. A reação improvisada pelo ator foi necessária devido a um imprevisto; uma resposta rápida, e à altura. Marca de um ator que, sem sair do personagem, está consciente de tudo em volta.

Improvisos desse tipo acabam no entanto se vendo desvalorizados pela mania dos “cacos”, frasezinhas ausentes do texto que alguns atores enfiam no diálogo o tempo inteiro para deleite da platéia, e que de improviso geralmente não têm nada.

O verdadeiro improvisador dá um nó num pingo dágua em pleno trajeto entre a torneira e o chão.

É como o sertanejo da história contada por Dantinhas Vilar.  Era caçador e mentiroso. Tudo que ele dizia a mulher dele confirmava. Uma vez, tarde da noite, com a sala cheia de amigos, ele falou que tinha caçado uma marreca na lagoa.

- Não foi, Fulana? – perguntou.

- Foi, - disse ela, que estava sonolenta, distraída. – Ele caçou uma macaca.

Houve aquele silêncio, e um dos circunstantes perguntou:

- Macaca?!  Como assim?

- Ah, rapaz, não te conto. É porque eu construí um corredor de estacas entrando na lagoa pra ajudar o gado a descer pra beber. Aí apareceu do mato uma macaca que tinha o costume de correr por cima das pontas das estacas, ficava indo e voltando. Aí eu dei um tiro numa marreca, e pegou na macaca.

Quando os amigos foram embora ele falou pra mulher:

- Da próxima vez que você me obrigar a construir um corredor de estacas a essa hora da noite, eu lhe dou uns cascudos.







domingo, 9 de outubro de 2016

4168) O suspense e o spoiler (9.10.2016)




Já comentei aqui no blog (http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/10/2700-spoilers-29102011.html) uma pesquisa com leitores de contos em que era avaliada a reação de leitores a uma história dramática quando alguns já sabiam o desfecho do enredo, e outros não.

“Estudos comprovaram” que a apreciação de uma obra não era prejudicada pelos “spoilers”. Ao contrário. As pessoas (de um modo geral) se envolviam mais e ficavam mais satisfeitas quando eram avisadas antes da leitura, por um texto introdutório, de como a história iria acabar.

“Cada grupo recebeu versões diferentes de cada história: no primeiro, o segredo ou surpresa da história era revelado numa breve introdução antes do início; em outro, essa revelação era integrada à história original como se fizesse parte dela; um terceiro grupo recebia a história intacta. Os pesquisadores constataram que as pessoas gostavam mais das histórias cujo final era revelado por antecipação; e curiosamente isto só ocorria quando o final era revelado num parágrafo à parte, como introdução ao conto. Quando a revelação era integrada à história, não havia diferença visível no grau de apreciação.”  

(Digressão: Palavrinha chata de traduzir, essa tal de “spoiler”. O spoiler é um trecho falado ou escrito, um fragmento qualquer de informação (foto, capa de livro, etc.), que revela um segredo da história, algo que em princípio o leitor deveria ignorar até o momento; a grande revelação. Dizer como, em português? “Estraga-prazeres”, “desmancha-prazeres”? Estes termos se referem a quem faz a revelação, não ao texto onde a revelação é feita.)

Temos uma mente teleológica, uma herança por um lado da tradição greco-romana de filosofia, direito, etc., e por outro lado da visão-do-mundo judaico-cristã. Tudo converge para uma Redenção final.  O Universo pode ter começado com um ganido, mas tem que acabar num Big Bang.

Somos (o Ocidente) uma civilização linear. Nossa noção de Tempo é um vetor, uma seta orientada, encaminhando-se ao longo de uma dimensão do espaçotempo.  E temos uma espécie de obrigação moral de fazer com que tudo tenha começo, meio e fim. A mais básica definição de “história”, conto, novela, etc., inclui este aspecto. Um começo, um meio e um fim – e sempre nesta ordem. (Jean-Luc Godard sugeria usar todos três, mas misturados.)

Qual a diferença, então, entre uma história sem spoiler e com spoiler?

Quem não gosta de spoiler é porque prefere a surpresa, a incerteza, o mistério impenetrável que se resolve no fim, ao longo de duas ou três páginas. Gosta de ir até os 95% do livro mantendo vivas na mente várias hipóteses que se excluem mutuamente, até ficar sabendo qual delas prevalece. No clímax, o mistério colapsa numa solução. The End.

Quem não se preocupa muito com o spoiler não tem como prioridade saborear a resolução do mistério. Talvez goste de adentrar esse universo já pisando com os coturnos da certeza.

Ao iniciar a leitura de um romance policial sabendo que o assassino é o jardineiro da casa vizinha à da vítima, o leitor se despreocupa de tecer hipóteses sobre os outros personagens, e pode muito bem extrair um prazer de outra natureza ao ver a dissimulação do criminoso ao ser interrogado, e ao acompanhar o modo como o cerco se fecha sobre ele. Esse leitor é uma espécie de deus, que já enxerga o futuro lá de seu camarote.

Para algumas pessoas, já-saber-o-final soma uma camada de interesse a mais ao longo da leitura, que deixa de ser uma leitura em-aberto, de um texto onde qualquer coisa ainda pode acontecer. E passa a ser um texto com final visível (pelo menos nesse aspecto: “o assassino é o pai da moça”) e onde se desenrola um novo tipo de jogo. Esse leitor, mais bem informado, não se deixa manipular tanto pelo autor quanto um leitor inocente, sem-saber-ainda.

O filme A Chegada (“Arrival”) de Dennis Villeneuve (baseado num conto de Ted Chiang) imagina uma raça de alienígenas que tentam se comunicar conosco. A protagonista do conto percebe que as frases com que eles tentam se comunicar só revelam seu sentido completo quando chegam ao fim, como se só então o sentido pudesse ser visível. Como aquelas longas frases em alemão onde o verbo só é revelado no fim.

Ela compara isto ao fenômeno da refração da luz na água. Um raio de luz, ao mudar do ar para a água, de densidade bem diferente, muda de direção e acha instantaneamente o rumo que lhe será mais econômico em termos de deslocamento. Ou seja: ela encontra a distância mais curta entre os dois pontos, o ponto onde toca a água e o ponto onde chega no final.

O cálculo estava pronto?, pergunta ela. O raio de luz já sabia que ia incidir numa lâmina dágua, e já partiu num ângulo exato de tocá-la no ponto necessário, calculando uma refração que ainda não aconteceu?

É esse o tipo de visão do leitor do livro de mistério que já sabe como termina. Ele já avista o ponto onde ainda não chegou (“o assassino de todos é o juiz”), mas ele vai direto para lá. É uma leitura diferente, sabendo o verdadeiro sexo do personagem A, ou como saiu o assassino do quarto fechado B, ou quem foi o espião que ganhou uma guerra na aventura C.






quinta-feira, 6 de outubro de 2016

4167) Dicionário Aldebarã XIII (6.10.2016)




(ilustração: Hannes Bok)


O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.


“Slikh-slikh”: Pequena serpente multicolorida, inofensiva, que se esconde nas frestas das paredes e é muito procurada pelas crianças para servir-lhes de pulseira, colar, etc.

“Noribsin”: Frutas artificiais de massa caseira, preparadas para os dias festivos, combinando o sabor de uma fruta natural e o formato de outra: um “abacaxi” com sabor de morango, uma penca de “bananas” com sabor de goiaba, etc.

“Kolupa”: A situação de impasse, numa negociação, quando cada um dos oponentes possui um elemento indispensável para a solução do problema mas se recusa a compartilhá-lo com os demais.

“Essondiran”: Fórmulas rimadas e ritmadas que são recitadas em uníssono por amigos quando se reencontram depois de muito tempo, para mostrar que a amizade continua a mesma.

“Giunk”: Dieta mágica que consiste em comer, durante uma semana inteira, apenas alimentos cujos nomes tenham a letra inicial do nome da pessoa: bife, bacon, brócolis, berinjela, bruschetta, banana...

“Harnaplon-Kok”: Casas pertencentes a uma mesma família, dando as frentes para ruas diferentes, mas situadas fundos-com-fundos e partilhando um quintal e às vezes uma cozinha em comum.

“Valagium”: jogo que usa complicados esquemas numéricos e alfabéticos para sortear  voluntários, que se comprometem por contrato a cumprir ou aceitar o que lhes couber.

“Litarns”: Tigelas colocadas no centro da mesa, durante as refeições, e onde todos vão depositando cascas de frutas, ossos, etc. à medida que comem.

“Nhossub”: Espécie de vinho barato que traz um prêmio diferente escondido em cada garrafa, a ser quebrada pelos colecionadores desses pequenos brindes. Alguns colecionam as garrafas intactas com o prêmio dentro, visível ou não.

“Ankh-nog-tian”: Pequenos episódios de infância de alguém, eternamente recontados pela família, que vê neles um sinal premonitório qualquer.

“Umpends”: O hábito de alguém distribuir por vários bolsos da roupa o dinheiro que carrega, para diminuir o prejuízo caso seja roubado.

“Khavid’: Pacto de fidelidade entre um homem e uma mulher, casados com outras pessoas, que se prometem um ao outro quando um dia ambos estiverem livres dos seus votos.

“Lo-Habug”: Qualquer situação, em casa, na vida social, na política, em que alguém é forçado a elogiar alguma coisa de que não gostou, devido a um motivo de força maior.

“Maham-puya”: o limite final de pequenas irregularidades que se pode cometer impunemente sem fazer soar os alarmes da lei.

“Thecoor”: pequenas áreas, em cada aposento, reservada aos animais domésticos, que são treinados para usarem apenas aqueles trechos. Cães têm acesso apenas à mesa do jantar. Gatos às cadeiras e sofás.

“Sarinium”: misto de festividade e torneio de contadores de histórias em que era preciso fazer rir a platéia inteira ao mesmo tempo, num prazo combinado.

“Gamp-Gum”: o andar agressivo, mesmo que discreto, de quem sai à rua para praticar um assalto.








segunda-feira, 3 de outubro de 2016

4166) Filme de ilha, de trem, de tesouro (3.10.2016)



A criação de gêneros cinematográficos ou literários não se faz cientificamente, na mesa de reuniões de um colegiado de críticos. É o pessoal envolvido que acaba criando de forma aleatória. Diretores, jornalistas, distribuidores, produtores, espectadores. Em geral são definidos pela presença de alguns elementos estruturais ou temáticos.

Com o aumento da produção e principalmente da circulação de filmes, surgem os subgêneros, e estes constituem enclaves com centenas de títulos.

Quando eu era pequeno, a gente dizia: “Eu gosto de filme de guerra”.  Todo mundo sabe o que é filme de guerra. Nessa época a que me refiro, o que conhecíamos do gênero eram, esmagadoramente, filmes norte-americanos sobre a II Guerra Mundial.

Mas aí aparecia um e dizia: “Eu também, mas só se for filme de submarino”. E também tinha “filme de bombardeio”, como As Pontes de Toko-Ri (1954) de Mark Robson. E “filme de trem” (trens numa situação de guerra, subentende-se) como O Trem (1964) de John Frankenheimer.

Podemos, por outro lados, criar gêneros mais amplos, menos focalizados. Filmes que tenham em comum um só elemento, talvez, mas que esse elemento seja uma parte essencial da sua história, do seu enredo.

Os narratólogos pesquisam, por exemplo, variantes do “Problema dos Três Desejos”, a famosa parábola da pessoa que recebe o direito (por alguma agência sobrenatural: gênio da lâmpada, objeto encantado, feitiço, etc.) de fazer três pedidos. Esta situação quase sempre redunda na pessoa sofrendo um castigo por essa ambição de querer tudo fácil demais. Como não achar que o Three Wishes Problem possa constituir um gênero em si?

A ficção científica é uma jângal amazônica convidando à floração de subgêneros: a Invasão da Terra, o Primeiro Contato, a Viagem no Tempo... São dezenas, e cada um com centenas de exemplos.

Tudo pode ser um gênero, desde que haja exemplos em quantidade convincente e de semelhança indiscutível.

O gênero policial-detetivesco surgiu quando Edgar Allan Poe propôs, implicitamente, com alguns contos seus: por que não escrever milhares de histórias sobre crimes misteriosos e o esforço de decifrá-los?

A literatura policial é um gênero? Sim, mas eu diria que subgêneros internos como o Crime do Quarto Fechado já têm bibliografia para encher uma biblioteca inteira. São especializações de certas funções narrativas: o interesse do autor por elas as sobrepõe a todas as outras.

Podemos pensar, portanto, em gêneros definidos por um conceito apenas, deixando em plano secundário época, ambientação, caracterização de personagens, etc.

“Filme de Serial Killer” é um novo subgênero, que se projetou de dentro do “filme policial” de forma notável nos últimos 20 anos. Antigamente aparecia de tantos em tantos anos um título como O Estrangulador de Rillington Place ou Frenesi ou O Abominável Dr. Phibes.

Tudo mudou depois que O Silêncio dos Inocentes (1991) ganhou o chamado Big Five, os cinco prêmios principais no Oscar: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro, Melhor Ator e Melhor Atriz.  Todo mundo convocou uma reunião às pressas e disse: “O negócio agora é serial killer,” e pronto, ninguém aguenta mais.

Por exemplo, poderíamos dizer que existe de agora em diante um gênero chamado A Vingança É Um Prato Que Se Come Frio, e quantas centenas de faroestes, thrillers, tacalepau de ação e aventura, horror gótico, não se encaixariam confortavelmente nessa rubrica? Vejo nesse tumulto de vendetas sutis os rostos de Vincent Price, Robert De Niro, Marlene Dietrich, Bette Davis, Jean Gabin, Jeanne Moreau, Sissy Spacek, Conrad Veidt...

Podemos batizar um gênero de: Pessoa Antipática Chega a Lugar Simpático que a Transforma Em Gente Boa. Assim de cara não lembro nenhum exemplo, mas se passar seis meses assistindo a Sessão da Tarde eu trago uns trinta.

Há um gênero famosamente batizado e descrito por Robert Heinlein: “A Man Learns Better”, algo como “Um Cara Aprende Uma Lição Pro Resto Da Vida”. Tem tema melhor do que esse?  Pode ser FC ou espionagem, pode ser romance-mulherzinha ou horror-gráfico, pode ser faroeste ou medieval, pode ser história de amor, de dinheiro, de poder, de sexo, de droga, de rock and roll. Não importa: dentro da história, “alguém aprende uma lição pro resto da vida”.

Eu poderia pegar um filme e defini-lo como a obra mais típica de um gênero.

Vou pegar como exemplo mais à mão um filme com o recentemente falecido Gene Wilder, O Expresso de Chicago (Silver Streak, 1976) dirigido por Arthur Hiller. É uma trama policial que transcorre durante a longa viagem do trem epônimo de Los Angeles para Chicago.

Ele pertence ao gênero: Filmes Sobre Pessoas Tentando Jogar Outras(s)Pessoa(s) Para Fora de Um Trem e Conseguindo Ou Não.

Parece bobagem? O gênero inclui desde Era Uma Vez No Oeste (1968) até O Imperador do Norte (1973), desde A General (1926) com Buster Keaton até esta comédia interpretada por Gene Wilder onde durante a longa viagem cruzando a América ele se apaixona por uma passageira, presencia um crime, envolve-se numa intriga que não lhe dizia respeito, e é jogado para fora do trem não menos que três vezes.

Todo este papo pode parecer ocioso, mas não é. A cada década que passa os saites de cinema (e futuramente os saites de literatura farão o mesmo) se dedicam a criar subdivisões cada vez mais especializadas para atender consumidores cada vez mais específicos.

“Romance Adolescente Contemporâneo com Vampiros e Lobisomens” podia não ser um gênero oficial, há dez anos, mas agora é. É mais uma peneira de reter outras obras e só deixar passar as que são divisíveis por esse algoritmo.


Especializações desse tipo brotam no interior dos gêneros convencionais, ao sabor das opiniões dos críticos e do sucesso junto ao público. Se começarmos de fato a cruzar fórmulas desse tipo, vamos poder a certa altura dizer: “Hoje quero ver um policial urbano com história de vingança, elementos sobrenaturais, triângulo amoroso e protagonista amnésico”.  E vai haver. 






sexta-feira, 30 de setembro de 2016

4165) A espionagem eletrônica (30.9.2016)



Vi pelas redes sociais uma propaganda de gadget eletrônico que diz: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.” Essa frase é acompanhada pela foto de uma mulher loura, no banco do carona de um carro, segurando (na verdade mostrando para a câmera, para a qual sorri) o que parece ser um pequeno disquete.

Querer destrinchar um conceito produzido por uma equipe de publicitários é uma ilusão, mas vamos lá. Um leitor marcha-lenta irá perguntar: “Ora, mas se o carro é meu e quem anda nele sou eu, pra quê que eu preciso rastrear?”  Uma resposta bem contemporânea seria: “Caba leso, se roubarem teu carro, tu não ia querer saber onde ele tá não?!”

Há mil e um veículos (de carga, oficiais, etc.) que são normalmente rastreados pelas empresas a que pertencem, mas a possibilidade agora está ao alcance de qualquer mero possuidor de smartphone. O que a mulher loura sugere na foto do anúncio é que o carro é do marido (ela está no banco do carona), e que quem vai rastrear é ela. Muita mulher sem malícia irá ter um susto ao perceber essa possibilidade e pela primeira vez pensará, maliciosa: “Aaaah!...”  E o leitor masculino dará de ombros. Pau que bate em Chico bate em Francisco.

Contudo, o mais interessante do anúncio é a formulação da frase: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.”  Esses pronomes possessivos estão aí numa função de folha de parreira, ou seja, para fazer de conta que está ocultando o óbvio. O sentido prático e inegociável da mensagem transmitida é: “Agora pode-se rastrear qualquer carro usando um smartphone.” 

Essa é a mensagem concreta que está sendo passada. O “seu” entra aí para que a agência publicitária, se confrontada com o cenho franzido da Lei, possa dizer: “Mas nós não sugerimos ao consumidor que ele saia por aí rastreando ninguém, nós sugerimos especificamente que era para poder vigiar o carro dele, sua propriedade inalienável, bibibi, bobobó.”

Um artigo recente de Cory Doctorow na Locus discute a enorme permeabilidade de todas as coisas eletrônicas, quando seu alcance é multiplicado pelo sem-fio, e quando o hardware de interatividade se torna universal (ou seja, custa uma mixaria). 


Em breve maridos e esposas, patrões e empregados, polícias e bandidos, banqueiros e banqueiros e assim por diante poderão se rastrear uns aos outros através não de um automóvel, mas de um button (atenção, não é “bottom” que se escreve), um crachá, uma carteira de identidade informatizada, um chip implantado no primeiro dia de trabalho (previsto em contrato, com aprovação sindical), um livro dado de presente, uma roupa, uma implantação dentária ou pequena cirurgia feitas com outro pretexto.

Dize-me se andas, e eu te direi em que direção estás indo.

Na trilogia “Science in the Capital” de Kim Stanley Robinson” (aqui: https://www.amazon.com/Forty-Signs-Rain-Stanley-Robinson/dp/0553585800/ref=sr_1_1),  Frank Vanderwal arranja uma namorada que é casada e trabalha para a CIA, e em cada encontro ela precisa usar um detector para se certificar de que nenhum dos dois está com um bug implantado. Frank geralmente está, e não faz idéia de como puseram aquilo ali. Uma moeda, um pequeno adesivo colado às escondidas no aperto de um elevador, qualquer coisa minúscula capaz de emitir um sinal.

Em Onde os Fracos Não Têm Vez, de Cormac MacCarthy (filmado pelos irmãos Coen), um transmissor desse tipo (só que em tamanho maiorzinho) é encontrado tarde demais. No romance de William Gibson Zero History, o personagem acha um aparelhinho que o denunciava e dá um jeito de, num shopping, jogá-lo dentro do carrinho do bebê de uma mulher russa, chique, que passeia vigiada por dois seguranças.

A mão de escrever argumento chega treme ao pensar nas ramificações dramatúrgicas dessa tecnologia.

Tem um componente adicional. Nem falo de atitudes espionatórias como a de rastrear o percurso físico de um cidadão, uma tarefa zerozerossetiana que qualquer agente interpretado por William H. Macy é capaz de executar. Falo no acúmulo de dados sobre a pessoa de cada um de nós. Se você tem cartão bancário, cartão de crédito, número de CPF, se você usa computador e smartphone, já existem a esta altura alguns terabytes de atividades suas espalhadas em pacotes por servidores do mundo inteiro.

Ninguém apaga nada. Custo de estocagem desse tipo de informação decresce à medida que crescem os estoques. E os algoritmos de cruzar informações são cada vez mais discriminadores e mais rápidos.

E não adianta o velho e confortável argumento de que “quem não deve não teme”, e que “um cidadão de bem não tem o que recear”.

Porque o fato é que, num futuro breve, havendo necessidade, será possível levantar em algumas horas uma quantidade espantosa de informação sobre qualquer um de nós. Ela já existe, basta saber puxar para fora. E puxar organizadamente. Ele gasta com que? Viaja para onde? Conversa com quem? Recebe dinheiro de onde? Pergunta o que ao Google? Passeia por onde no browser? Guarda o que no seu HD pessoal?

Na época da Revolução Francesa conhecida como o Terror o ódio pelos aristocratas era tão grande que muitas vezes bastava uma denúncia qualquer para mandar um cara (que era tão povo quanto os outros da sua rua) para a guilhotina: “Ele sempre foi amigo dos aristocratas!” dizia um vizinho ressentido, e lá ia a cabeça do cidadão para o cesto.

Qual a última pessoa (ou grupo) em cujas mãos você não quereria de jeito nenhum ver todos os seus emails, todos os seus telefonemas, toda sua vida financeira, tudo que você já viu num monitor, ou que já chamou com um clique?








terça-feira, 27 de setembro de 2016

4164) O artista múltiplo Jean Cocteau (27.9.2016)




Ninguém o cita muito hoje em dia, e não sei como ele é visto pelos jovens, se é como um dramaturgo de vanguarda, um poeta e desenhista gay, um cineasta surrealista...

Há meio século, Cocteau, para mim, era menos um escritor importante do que uma figura folclórica, como Salvador Dali. Os dois podiam até ser de fato grandes artistas, quando estavam trabalhando, mas a imprensa (pelo menos a imprensa brasileira, a única de que eu tinha referências aos quinze anos) os tratava como figuras meramente folclóricas.

Dali era um excêntrico. Cocteau era uma figura menos excêntrica do que ele. Tinha o lado pitoresco do artista em evidência, autor de espetáculos, livros ou projetos que causavam algum impacto e polêmica. Sempre rendia uma notinha, uma frase com legenda espirituosa.

Era também um desses artistas sempre meio em xeque por serem gays num tempo em que essa palavra nem era usada para isto. Ele era daquele faixa que demarca seu terreno com inteligência e verve. Era um poeta, mas era também um Desconstrutor Surrealista, muitas vezes um Rei do Paradoxo Aforístico, um convidado capaz de tornar uma noitada social inesquecível com meia dúzia de frases, como também foram Oscar Wilde ou G. K. Chesterton.

Cocteau era para mim o poeta e pintor francês cujos versos e linhas lembravam os de Garcia Lorca. Só deixou de ser quando vi pela primeira vez seu filme Orfeu. É um surrealismo mitológico que só Cocteau acertou a fazer, muito diferente do absurdo feroz de Buñuel, e com efeitos bem originais para produzir o sonho, o fantástico.

É o mito de Orfeu: a morte da esposa, a descida aos infernos, a solução negociada, a olhada para trás, a perda final. Cocteau reconta essa história na Paris de 1950, tendo como centro um Café des Poètes. Na sequência inicial do filme acontece uma briga nesse café, uma daquelas coreografias executadas com prazer pelos extras. (O cinema inventou esse conceito: a briga feliz.)

Quem nos mostrou esse filme foi o padre Massote, na Escola de Cinema de BH, onde ele e professores como Paulo Pereira e Hélio Gagliardi tinham grande admiração pelo diretor. Os truques de espelho, de água, de tela transparente, são todos convincentes. Sabe-se que Buñuel tinha pouca paciência com a técnica e a filmagem; Cocteau devia gostar muito de cinema, das soluções técnicas.

Cocteau é um nome distante hoje em dia, mas acabou de sair a tradução para o inglês de uma daquelas biografias-de-mil-páginas sobre ele, resenhada aqui:


Pouco tempo atrás percebi, lendo a correspondência de Julio Cortázar com seus amigos portenhos (Cartas a los Jonquières, 2010), que Cocteau foi uma de suas grandes influências. Cortázar diz aos amigos que irá ver pela primeira vez um show de Louis Armstrong (ele já mora em Paris; o ano é 1952) daí a poucos dias, e comenta:

“Imaginarás, creio, o que é isto para mim. Sei que Louis está velho, e naturalmente não espero dele o que me deu em seus discos durante tantos anos. Mas ele foi uma das grandes paixões da minha juventude, e vê-lo em cena me parece como uma homenagem, algo como o que senti nesse mesmo teatro quando vi Cocteau abraçado a Stravinsky depois de Oedipus Rex. Pouco a pouco vou encontrando em meu caminho os meus deuses de adolescência. É um sinal de morte e de velhice, mas que importa. Me faltam Duke Ellington, Colette, Earl Hines, Picasso. Talvez me seja dado vê-los um dia.”

Paixões de juventude, deuses de adolescência: talvez seja essa mentalidade meio de fandom que faz alguns críticos considerarem Cortázar, hoje, um autor imaturo. Mas essas cartas são registros de impressões endereçadas a amigos muito próximos, que dificilmente não entenderão alusões ou ironias propositais. Cortázar, nessa época com 38 anos, tinha o cacoete de falar de morte e de velhice, figura de linguagem endêmica em gente como ele.  

Em agosto de 1955 ele escrevia aos amigos:

“Ontem completei quarenta e um anos. Je viens d’avoir trente ans, dizia Jean, o da estrela, num belo poema que hás de recordar, e o dizia com tanta tristeza como eu.”

Só mesmo um virginiano para dizer isso. Em 1966, dentro dos cinquenta e dois, ele lembrava Cocteau num contexto mais brincalhão, ao rechaçar os elogios descabelados de alguns conhecidos após o sucesso de O Jogo da Amarelinha (1962):

“Voltando àquela nota de Arroyo: é divertido que ele divida o tempo literário em a.C. e d.C., o que é absurdo, mas vá lá. Suponho que minhas iniciais o ajudaram a organizar esse novo calendário, mas diga a Rocco, se é amigo de Arroyo, que eu sempre me senti mais próximo de Jean Cocteau do que de Jesus Cristo, no que diz respeito a iniciais.”

Cocteau desenhista tinha um pequeno detalhe de estilo que eu chamo ”desenho de guardanapo”, onde cada vez que a caneta se detém num ponto produz um pequeno borrão. Isso aparece nos letreiros de abertura do Orfeu, aqui:


Foi um desses artistas que mexem em tudo (cinema, desenho, poesia, teatro, pintura, etc.) e tudo que fazem é parecido, tem o carimbo de uma maneira única de ver e de dizer.










sábado, 24 de setembro de 2016

4163) "A Volta do Marido Pródigo" (24.9.2016)



(ilustração: Poty)

Nos 70 anos de publicação de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, comentei aqui em 16 de abril o primeiro conto do livro, “O Burrinho Pedrês”:


O segundo conto do livro, “A Volta do Marido Pródigo”, faz um sequenciamento interessante com ele.

Uma das coisas mais interessantes para quem publica livros de contos é o sequenciamento das histórias. Rosa mexeu muito no sequenciamento de Sagarana:


É uma atividade muito parecida com escolher as faixas de um disco de canções. A arte de enfileirar as canções como se fossem dominós. Cada elemento narrativo, cada episódio encaixa com o que vinha antes e abre uma porta para o que virá depois.

“O Burrinho Pedrês” era uma história de idas e voltas; não é muito diferente, e que não se perca pelo nome, “A Volta do Marido Pródigo”, cuja malandragem já começa no título. Não é o filho, das escrituras sagradas, é o marido das cantorias profanas. O marido, no caso, é o malandro articulador, o malandro deixa-comigo, o malandro cuja lábia engambela quase todo mundo.

Lalino Salãthiel é um rei das armações, um costurador de situações como o João Grilo de Ariano Suassuna, mestre da conspiração festiva. Trabalha numa pedreira, ou mais conversa que trabalha, até se envolver na política local mediante apadrinhamento do Major Anacleto. “Capadócio”, como se dizia na época, vivia de violão em punho, socializando, amigo de todo mundo, alma da festa. Sedutor de mulheres e convencedor de homens.

A sequência inicial (o conto é dividido em nove segmentos numerados) o define: ele conta vantagens, cheio de empáfia e de semi-informações, enquanto os outros quebram pedra e lhe fazem perguntas incrédulas. (Menos os um-ou-dois de sempre, que ficam resmoendo meio de banda  e dizendo: “Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que-horas, quando chega, ainda é todo enfeitado e falastrão!”.)

Lalino é civilmente Eulálio de Souza Salãthiel, e a mulher (que talvez seja, na verdade, o centro desta história tão giratória) o chama de Laio. Lalino, mesmo farrista e boa-praça, fica execrado por muitos quando aparentemente vende a esposa, Rita, a um espanhol endinheirado. (Na verdade ele pediu o dinheiro emprestado para fugir da cidade e o espanhol, que vivia de olho comprido na morena, emprestou-lho numa piscadela.)

Laio faz um bom contraste com o Major Anacleto, que é popeiro, pegador de ar, e meio desorientado, precisando de pessoas ponderadas e cabeça-fria como o Tio Laudônio para assumir a pilotagem na turbulência, e escolher uma linha de ação.

A briga política local é feroz, cobra engolindo cobra, e o grupo deles faz frente ao dos Benignos, que estavam liderando a corrida até a chegada de Lalino Salãthiel.

Lalino tanto tem de João Grilo quanto do poeta de Ariano Suassuna na Farsa da Boa Preguiça, sua boemia sem maldade, sua indolência contemplativa nos momentos de pausa, mas ele é mesmo é “um corisco de esperto, inventador de trêtas”, como diz Seu Oscar, o filho do coronel.

Lalino é um sonhador, que gosta de olhar as figuras de um livro e imaginar “um étero-avião transplanetário”, e que comenta:

“Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui, sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarro lá no sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de-noite e a gente poder dormir...”

O animal totêmico do conto é o sapo, várias vezes referido nos diálogos e nas cantigas, além da famosa fábula da Festa no Céu, quando o sapo vê que vai ser arremessado de volta à terra e implora: “Só não me jogue na água, porque eu não sei nadar!”, e é lá que os seguranças da festa o jogam, e ele sai nadando, aliviado. É como se Lalino Salãthiel tivesse dito: “Só não me bote numa função onde eu precise ganhar todo mundo no papo.”

Lalino é um personagem-de-si-mesmo, uma persona pública e festiva, que se vira como pode, memorizando fotos de revistas para quando estiver se pabulando de suas andanças pelo Rio de Janeiro.  Um desses indivíduos de permanente otimismo, um ser humano que o tempo todo se sente “pomposamente, terrivelmente feliz.” Que tem uma sorte que nunca lhe falha, talvez porque ele produza nas pessoas uma impressão de empatia prazerosa; todos falam mal dele, todos criticam sua vagabundagem, mas ninguém resiste à sua presença.

A apresentação do personagem:

“Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente. Blusa cáqui, com bolsinhos, lenço vermelho no pescoço, chapelão, polainas, e, no peito, um distintivo, não se sabe bem de que. Tira o chapelão: cabelos pretíssimos, com as ondas refulgindo de brilhantina borora.”

Um estilo telegráfico, uma imagem forte após a outra. Um estilo que Mário Palmério apanhou no ar e repôs em voo com a sua famosa abertura de Vila dos Confins, apresentando Xixi Piriá:

"Lá vem êle. E ganjento, pilantra: roupinha de brim amarelo, vincada a ferro; chapéu tombado de banda, lenço e caneta no bolsinho do jaquetão abotoado; relógio-de-pulso, pegador de monograma na gravata chumbadinha de vermelho."

Rosa não apareceu apenas com um repertório de novos discursos, ele foi desde seu primeiro livro um comentador bem-humorado do discurso alheio, embora, diplomata, procurasse estar sempre de-bem com todo mundo, quando possível. Ele ironizava a retórica burocrática e oficialesca que provavelmente era obrigado a usar em seu trabalho, e dentro de um conto de ambientação rural, interioranazinha, comparece um parágrafo assim:

“Major Anacleto relia – pela vigésima-terceira vez – um telegrama do Compadre Vieira, Prefeito do Município, com transcrições de um outro telegrama, do Secretário do Interior, por sua vez inspirado nas anotações que o Presidente do Estado fizera num anteprimeiro telegrama, de um Ministro conterrâneo. E a coisa viera vindo, do estilo dragocrático-mandológico-coactivo ao cabalístico-estatístico, daí para o messiânico-palimpséstico-parafrástico, depois para o cozinhativo-compadresco-recordante...”

O Major Anacleto tem um pouco daqueles sultões orientais já meio velhuscos e entediados, que se encolerizam com facilidade e cinco minutos depois já se esqueceram. Quando dá uma ordem e alguém lhe diz que aquilo já foi feito, ele reclama: ”Diabo! Vocês também não deixam nada para eu pensar!”. Não consegue acompanhar os malabarismos de estratégia de Laio, mas lhe diz: “Eu mesmo gosto de gente aluada, quando são assim alegres e têm resposta pra tudo.”

Este é um dos contos de Rosa mais políticos, mais claramente descritivos de peripécias políticas, mas é acima de tudo uma história de amor “por artes das linhas travessas da boa escrita divina”. Lalino está casado, felizão da vida, mas não lhe sai da cabeça a lenda das polacas do Rio de Janeiro, ele passa a morena no cobre e vai embora... mas acaba voltando. Ela tinha tudo para não querê-lo de volta, mas nem o autor resistiu ao papo-de-derrubar-avião do personagem, e a fez doida pelo condenado.

Num depoimento de JGR a João Condé, em 1946 (reproduzido em Remembramentos, Vilma Guimarães Rosa, Nova Fronteira, 1983) o autor dá uma geral nos contos do livro e, sobre este, afirma:

“II) – A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO – A menos ‘pensada’ das novelas do ‘Sagarana’, a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945”.













terça-feira, 20 de setembro de 2016

4162) Tropeções de escritor (20.9.2016)



("cadavre exquis" - www.letti.de)

O escritor Tim Powers contava que começou a ler um livro e a certa altura dois personagens entram no carro e pegam a estrada para outra cidade. Vão conversando e de repente o narrador diz: “Pedi licença a Fulano e fui na cozinha pegar duas cervejas.” E o leitor dá um pulo e diz: Peraí, os caras não estavam num carro?!

Erro de continuidade não existe só no cinema. Existe um certo surrealismo nesses cortes bruscos motivados por inexperiência, carraspanas, doença na família, ou mero esquecimento mesmo. Um autor de pulp fiction, por exemplo, tinha que fazer “x” páginas por dia e geralmente fazia sem ter tempo (ou saco) para reler o que tinha feito na véspera. Pegava de onde tinha deixado.

A falta de cerimônia deles para com a arte literária beirava a de Nelson Rodrigues, que, reza a lenda, aproveitava os remansos do tempo na redação do jornal onde garimpava o leite das crianças, e ficava na máquina batucando os folhetins com que garantia o café dos adultos, e que assinava como “Suzana Flag”(Meu Destino É Pecar, Escravas do Amor, etc).

Eram novelões intrincados, ora com alguma rudeza naturalista, ora melodrama puro, tango argentino puro. Cada romance era como três ou quatro peças rodriguianas interagindo umas com as outras.

Daí que em certos momentos Nelson enchia o saco, vestia o paletó e descia para almoçar ou para tomar uma. Os colegas corriam para a máquina, liam, sentavam ali e continuavam a história por mais duas ou três páginas até alguém anunciar o retorno dele, e aí todos voltavam a suas mesas. Nelson tirava o paletó, pendurava o paletó no encosto, puxava a cadeira, sentava, erguia o prendedor de metal de sobre a folha de papel e relia as últimas cinco linhas. Repunha o prendedor, e daí seguia em frente.

Isso é uma típica brincadeira de redação ou de escritório, ambientes propensos a esse tipo de gracejo. Imagino por minha conta que esse detalhe, mesmo que fosse revelado a Nelson, não mudaria nada. Ele daria de ombros, enfastiado. Que importava se havia um texto intruso incrustado no DNA de sua criatura? Autoria? Que importava a autoria?  Fossem perguntar a Suzana Flag.

Eu diria que em outro contexto isso seria uma brincadeira surrealista de meta-parceria em cabra-cega. Aquela brincadeira de escrever uma frase e dobrar o papel deixando um pedacinho para ser lido e continuado pelo próximo, que faz o mesmo e passa adiante. São os tais “cadáveres delicados” que André Breton, Luis Buñuel, Paul Éluard e os demais surrealistas praticavam, com textos e desenhos coletivos feitos às cegas.

Nelson Rodrigues, mesmo sob o próprio nome, e no que tem de melhor, sempre foi um imperfeccionista, produzindo sem parar, confiando mais no impacto da verdade central de tudo aquilo do que em qualquer filigrana estilística.

Era escritor de redação de jornal, com formação de almanaque, de palavras cruzadas, de coluna de variedades, curiosidades, faits-divers (como também o foram Georges Perec, Raymond Queneau, Mario Quintana). O redator navalha, que com uma só frase degola uma dúvida e encerra uma questão.

Essa era a escola de Nelson, um fazedor de frases impecável. Teatro + jornal = literatura. A tirada brilhante das grandes cenas do melodrama, e a concisão desconcertante do criador de manchetes.

Talvez alguma coisa de sua obra envelheça, mas não acho que serão os diálogos. Talvez os enredos. Não era um grande concatenador de manobras complicadas. Suas intrigas eram intrigas suburbanas; mesmo no romance eram teatrais; mesmo no teatro tinham algo de radiofônico. Pessoas falando, falando, jogando tudo pra fora. 

E as tramas dele eram entendíveis por quem é capaz de entender uma página policial, uma novela hispânica, um folhetim francês. Mas seu negócio não era a “trama”. Eram as situações bizarras, patéticas, brutais, constrangedoras em que ele jogava seus personagens como quem joga gente aos leões. Seus enredos não parecem um silogismo ou uma equação, e sim uma girândola de fogos de artifício.

Lembro às vezes a história, acho que contada por Frank Gruber, de um escritor de pulp fiction que deu uma festa para uma multidão de amigos em seu apartamento em Manhattan, anos 1940. Enquanto os convidados bebiam e dançavam, o dono da casa, num recanto, datilografava a toda velocidade as últimas vinte páginas de um conto que precisava pôr no Correio no dia seguinte. À meia-noite ele deu o conto por terminado e foi beber e dançar com os outros.

Nessas lendas urbanas literárias, a profissão de escritor parece mais romântica do que é, mas o crítico e o leitor: pensam: como ficaria uma história escrita assim? Para alguns, não faz diferença. Tem gente que escreve num café de calçada, num beliche de caserna, num trem lotado. Tem escritor que nem se altera, pode estar num clube, num grito de carnaval, escrevendo num caderno sob a chuva de confetes, e o texto sai com som de mosteiro.

Penso assim: pessoas como esses escritores pulp reliam o que tinham feito? Pegavam da última frase, como Nelson Rodrigues? Mantinham controle de continuidade em algum bloco-de-notas com nomes, datas, direções mencionadas no texto? Ou era tudo de oitiva?  Isaac Asimov orgulhava-se de só pegar num conto para revisar quando ele era recusado por todas as revistas disponíveis no momento. Eu acho isso uma heresia pior do que não ir ao médico.

O texto que Asimov mandava era seu primeiro rascunho, que já era praticamente o texto final. O Doutor não gostava de reescrever, tinha (ao que se diz) uma memória espantosamente retentiva, e defendia sua teoria estilística da “prosa da vidraça” (transparente, mostrando tudo, sem chamar a atenção para si)  contra a “prosa do vitral”, a prosa ornada, que não importa do que fale, está mostrando antes de tudo a si própria.

Se você não é Asimov, como é o meu caso, o jeito é revisar. Você “perdiganha” um tempo imenso relendo pela décima vez um trecho que já foi reescrito nove, mas por isso mesmo, prestenção. 

Será que Nelson percebeu e cortou as intervenções dos seus companheiros de jornal? E como seriam? Será que eles esculhambavam muito, ou procuravam repetir os nomes dos personagens, continuar, mesmo avacalhando, o que estava escrito ali? Cem anos depois, algum professor de literatura vai envelhecer tentando em vão entender que cortes bruscos de enredo e de tom eram aqueles que de vez em quando sobressaltavam o livro.

De qualquer modo, brincadeira surrealista ou não, é uma interferência na obra feita à revelia do autor da obra. Comparo com aquela tradução de Os Lusíadas para o inglês onde o tradutor britânico cortou várias estrofes consideradas impróprias, mas em compensação inseriu trezentos versos com a descrição de uma batalha marítima que não existe no original. (Aqui:









segunda-feira, 19 de setembro de 2016

4161) "Mickey One" (19.9.2016)



Mickey One de Arthur Penn (1965) é um desses filmes obscuros que só servem de referência para mim, porque ninguém nunca viu. Tirando minha turma do Cineclube de Campina Grande, conheço poucas pessoas que viram o filme. Lembro que Jean-Claude Bernardet foi um dos poucos que disseram lembrar e gostar dele. Citei esse filme num conto da Espinha dorsal da memória.  

A crítica da época comparou a Kafka esta história de um artista de stand-up comedy, que cai em desgraça junto à Máfia e começa a fugir de tudo e de todos, porque não sabe exatamente quem está tentando matá-lo. No auge do sucesso nas boates de Detroit, Mickey (Warren Beatty) foge dos palcos, viaja de carona, desaba noutra cidade, trabalha como servente, mora numa pensão sórdida.

Sua transformação parece a daquele personagem de Philip K. Dick que num dia é o apresentador de TV mais famoso do país e no outro acorda atordoado numa pensão barata, num mundo onde não tem documentos e onde sua existência é negada em todos os registros.

O começo dos anos 1960 jogou uma curiosa saraivada de influências no cinema norte-americano.

Vi num programa de TV a cabo que a parceria entre Warren Beatty e o diretor Arthur Penn surgiu (estou contando de memória, pode não ser precisamente isto) porque Beatty, sempre antenado, tinha visto os filmes policiais existencialistas de Louis Malle (Ascensor para o Cadafalso, 1958), Jean-Luc Godard (Acossado, 1959), François Truffaut (Atirem no pianista, 1960) e outros. Achara aquilo o máximo e queria fazer um equivalente.

Mickey One, a primeira tentativa, não produziu muito impacto mas resultou num filme plasticamente belo e com uma narrativa bem pessoal. Eles conseguiram contar, por exemplo, com o fotógrafo Ghislain Cloquet, que faz um belo trabalho em preto e branco. (Cloquet fotografou numerosos trabalhos de Alain Resnais e Robert Bresson).

A intenção parece ter sido a de capturar um pouco desses filmes, onde sobre uma ambientação de policial “B” norte-americano alguém projetava o absurdismo do ”estrangeiro” de Camus, dos destinos trágicos previsíveis de antemão.

Policial e jazz norte-americano. Angústia existencial e notas de rodapé francesas.

Mickey One, visualmente, tem sequências extremamente bem editadas em termos de movimento e descrição dramática. Várias cenas meio stanislawskianas que parecem bate-bocas meio escritos e meio improvisados entre os atores.

Era uma tendência teatralizante da época, e Beatty, já um galã em ascensão, queria visivelmente seguir na trilha de James Dean, Marlon Brando e Paul Newman: o herói sedutor mas torturado por uma ânsia inexplicável que as personagens femininas, obedecendo aos roteiristas, achavam charmoso.

Vi o filme em 1967 em Campina Grande, e votei nele como melhor filme do ano. Vi alguma repercussão nos jornais do Nordeste, mas nada que deixasse marcas mais fundas.

E como diria o poeta João Barafunda, tão recitado por meu pai: “Todos depressa, desde aquele instante / esqueceram-se dela. Menos eu.”  Quando dois anos depois Beatty e Penn jogaram sua segunda cartada, com Bonnie e Clyde - Uma rajada de balas (1967), todo mundo se esqueceu de Mickey One. Menos eu.

Revi o filme agora e parece Jim Jarmusch, roman noir em P&B, com boas doses de Louis Malle.  Na época falávamos (porque era isso que os críticos profissionais falavam) da influência de Kafka e de Orson Welles, com O Processo (1962), que é certamente outro referencial de Penn. E de Metropolis – em alguma sequência de facho de luz na escuridão ou de balé visual de estruturas mecânicas.

Na época acho que as referências da gente puxavam para esse lado gótico, expressionista, sei lá o quê. Vivíamos escarafunchando a história do cinemão antigo, e os parâmetros ficavam sendo aqueles. Mas hoje vejo o quanto esse policial existencialista norte-americano é um esforço consciente para ser meio francês.

O filme tem cenas noturnas meio incoerentes e delirantes, sem som ambiente, apenas com um solo de jazz; é um detalhe que Penn pega do Ascensor de Malle, e onde o francês usava Miles Davis ele usa Stan Getz.

Mickey tem várias cenas em que ele fala e fala para um interlocutor que não emite uma sílaba. É a maldição do standup.  A maldição de Riobaldo e do sobrinho do Iauaretê: alguém que não consegue parar de falar, alguém que não consegue parar de dizer em voz alta algo que ainda não sabe o que vai ser.

Alguém que aceita com um certo susto e uma certa humildade servir de conduto ao jorro de uma mensagem falada. E o jorro passa através deles, e não adianta perguntar se compreendem o que estão dizendo, mas é bem possível que um ou outro saiba.

Mickey fala, pergunta, responde-se, questiona-se. Troca de tom e de personagem quando vê que não está funcionando. É, como Beatty provavelmente é, um ator 24-horas-7-dias.

O melhor filme daquele ano? Olhe, filmes mais galardoados do que ele já envelheceram pior aos meus olhos.

Arthur Penn é admiradíssimo por pessoas que não têm a menor idéia de sua existência. Talvez fiquem surpresas em saber que são de um mesmo cineasta filmes tão dissímiles e tão assistíveis quanto Bonnie & Clyde (com Beatty e Faye Dunaway), O milagre de Anne Sullivan (com Anne Bancroft e Patty Duke), Pequeno Grande Homem (com Dustin Hoffmann), Alice`s Restaurant (com Arlo Guthrie), Night Moves (com Gene Hackman), Caçada Humana (com Marlon Brando).