Vi pelas redes sociais uma propaganda de gadget eletrônico
que diz: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.” Essa
frase é acompanhada pela foto de uma mulher loura, no banco do carona de um
carro, segurando (na verdade mostrando para a câmera, para a qual sorri) o que
parece ser um pequeno disquete.
Querer destrinchar um conceito produzido por uma equipe de
publicitários é uma ilusão, mas vamos lá. Um leitor marcha-lenta irá perguntar:
“Ora, mas se o carro é meu e quem anda nele sou eu, pra quê que eu preciso rastrear?” Uma resposta bem contemporânea seria: “Caba
leso, se roubarem teu carro, tu não ia querer saber onde ele tá não?!”
Há mil e um veículos (de carga, oficiais, etc.) que são
normalmente rastreados pelas empresas a que pertencem, mas a possibilidade
agora está ao alcance de qualquer mero possuidor de smartphone. O que a mulher
loura sugere na foto do anúncio é que o carro é do marido (ela está no banco do
carona), e que quem vai rastrear é ela. Muita mulher sem malícia irá ter um
susto ao perceber essa possibilidade e pela primeira vez pensará, maliciosa:
“Aaaah!...” E o leitor masculino dará de
ombros. Pau que bate em Chico bate em Francisco.
Contudo, o mais interessante do anúncio é a formulação da
frase: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.” Esses pronomes possessivos estão aí numa
função de folha de parreira, ou seja, para fazer de conta que está ocultando o
óbvio. O sentido prático e inegociável da mensagem transmitida é: “Agora pode-se
rastrear qualquer carro usando um smartphone.”
Essa é a mensagem concreta que está sendo passada. O
“seu” entra aí para que a agência publicitária, se confrontada com o cenho
franzido da Lei, possa dizer: “Mas nós não sugerimos ao consumidor que ele saia
por aí rastreando ninguém, nós sugerimos especificamente que era para poder
vigiar o carro dele, sua propriedade inalienável, bibibi, bobobó.”
Um artigo recente de Cory Doctorow na Locus discute a enorme permeabilidade de
todas as coisas eletrônicas, quando seu alcance é multiplicado pelo sem-fio, e
quando o hardware de interatividade se torna universal (ou seja, custa uma mixaria).
Em breve maridos e esposas, patrões e empregados,
polícias e bandidos, banqueiros e banqueiros e assim por diante poderão se
rastrear uns aos outros através não de um automóvel, mas de um button (atenção,
não é “bottom” que se escreve), um crachá, uma carteira de identidade
informatizada, um chip implantado no primeiro dia de trabalho (previsto em
contrato, com aprovação sindical), um livro dado de presente, uma roupa, uma
implantação dentária ou pequena cirurgia feitas com outro pretexto.
Dize-me se andas, e eu te direi em que direção estás indo.
Na trilogia “Science in the Capital” de Kim Stanley
Robinson” (aqui: https://www.amazon.com/Forty-Signs-Rain-Stanley-Robinson/dp/0553585800/ref=sr_1_1),
Frank Vanderwal arranja uma namorada que
é casada e trabalha para a CIA, e em cada encontro ela precisa usar um detector
para se certificar de que nenhum dos dois está com um bug implantado. Frank
geralmente está, e não faz idéia de como puseram aquilo ali. Uma moeda, um
pequeno adesivo colado às escondidas no aperto de um elevador, qualquer coisa
minúscula capaz de emitir um sinal.
Em Onde os Fracos
Não Têm Vez, de Cormac MacCarthy (filmado pelos irmãos Coen), um
transmissor desse tipo (só que em tamanho maiorzinho) é encontrado tarde
demais. No romance de William Gibson Zero
History, o personagem acha um aparelhinho que o denunciava e dá um jeito
de, num shopping, jogá-lo dentro do carrinho do bebê de uma mulher russa,
chique, que passeia vigiada por dois seguranças.
A mão de escrever argumento chega treme ao pensar nas
ramificações dramatúrgicas dessa tecnologia.
Tem um componente adicional. Nem falo de atitudes
espionatórias como a de rastrear o percurso físico de um cidadão, uma tarefa
zerozerossetiana que qualquer agente interpretado por William H. Macy é capaz
de executar. Falo no acúmulo de dados sobre a pessoa de cada um de nós. Se você
tem cartão bancário, cartão de crédito, número de CPF, se você usa computador e
smartphone, já existem a esta altura alguns terabytes de atividades suas
espalhadas em pacotes por servidores do mundo inteiro.
Ninguém apaga nada. Custo de estocagem desse tipo de
informação decresce à medida que crescem os estoques. E os algoritmos de cruzar
informações são cada vez mais discriminadores e mais rápidos.
E não adianta o velho e confortável argumento de que
“quem não deve não teme”, e que “um cidadão de bem não tem o que recear”.
Porque o fato é que, num futuro breve, havendo
necessidade, será possível levantar em algumas horas uma quantidade espantosa
de informação sobre qualquer um de nós. Ela já existe, basta saber puxar para
fora. E puxar organizadamente. Ele gasta com que? Viaja para onde? Conversa com
quem? Recebe dinheiro de onde? Pergunta o que ao Google? Passeia por onde no
browser? Guarda o que no seu HD pessoal?
Na época da Revolução Francesa conhecida como o Terror o
ódio pelos aristocratas era tão grande que muitas vezes bastava uma denúncia
qualquer para mandar um cara (que era tão povo quanto os outros da sua rua) para
a guilhotina: “Ele sempre foi amigo dos aristocratas!” dizia um vizinho
ressentido, e lá ia a cabeça do cidadão para o cesto.
Qual a última pessoa (ou grupo) em cujas mãos você não
quereria de jeito nenhum ver todos os seus emails, todos os seus telefonemas,
toda sua vida financeira, tudo que você já viu num monitor, ou que já chamou
com um clique?
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