(ilustração: Poty)
Nos 70 anos de publicação de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, comentei aqui em 16 de abril o
primeiro conto do livro, “O Burrinho Pedrês”:
O segundo conto do livro, “A Volta do Marido Pródigo”,
faz um sequenciamento interessante com ele.
Uma das coisas mais interessantes para quem publica
livros de contos é o sequenciamento das histórias. Rosa mexeu muito no
sequenciamento de Sagarana:
É uma atividade muito parecida com escolher as faixas de
um disco de canções. A arte de enfileirar as canções como se fossem dominós.
Cada elemento narrativo, cada episódio encaixa com o que vinha antes e abre uma
porta para o que virá depois.
“O Burrinho Pedrês” era uma história de idas e voltas;
não é muito diferente, e que não se perca pelo nome, “A Volta do Marido
Pródigo”, cuja malandragem já começa no título. Não é o filho, das escrituras
sagradas, é o marido das cantorias profanas. O marido, no caso, é o malandro
articulador, o malandro deixa-comigo, o malandro cuja lábia engambela quase
todo mundo.
Lalino Salãthiel é um rei das armações, um costurador de
situações como o João Grilo de Ariano Suassuna, mestre da conspiração festiva. Trabalha
numa pedreira, ou mais conversa que trabalha, até se envolver na política local
mediante apadrinhamento do Major Anacleto. “Capadócio”, como se dizia na época,
vivia de violão em punho, socializando, amigo de todo mundo, alma da festa.
Sedutor de mulheres e convencedor de homens.
A sequência inicial (o conto é dividido em nove segmentos
numerados) o define: ele conta vantagens, cheio de empáfia e de
semi-informações, enquanto os outros quebram pedra e lhe fazem perguntas
incrédulas. (Menos os um-ou-dois de sempre, que ficam resmoendo meio de
banda e dizendo: “Mulatinho descarado!
Vai em festa, dorme que-horas, quando chega, ainda é todo enfeitado e
falastrão!”.)
Lalino é civilmente Eulálio de Souza Salãthiel, e a
mulher (que talvez seja, na verdade, o centro desta história tão giratória) o
chama de Laio. Lalino, mesmo farrista e boa-praça, fica execrado por muitos
quando aparentemente vende a esposa, Rita, a um espanhol endinheirado. (Na
verdade ele pediu o dinheiro emprestado para fugir da cidade e o espanhol, que
vivia de olho comprido na morena, emprestou-lho numa piscadela.)
Laio faz um bom contraste com o Major Anacleto, que é
popeiro, pegador de ar, e meio desorientado, precisando de pessoas ponderadas e
cabeça-fria como o Tio Laudônio para assumir a pilotagem na turbulência, e
escolher uma linha de ação.
A briga política local é feroz, cobra engolindo cobra, e
o grupo deles faz frente ao dos Benignos, que estavam liderando a corrida até a
chegada de Lalino Salãthiel.
Lalino tanto tem de João Grilo quanto do poeta de Ariano
Suassuna na Farsa da Boa Preguiça,
sua boemia sem maldade, sua indolência contemplativa nos momentos de pausa, mas
ele é mesmo é “um corisco de esperto, inventador de trêtas”, como diz Seu
Oscar, o filho do coronel.
Lalino é um sonhador, que gosta de olhar as figuras de um
livro e imaginar “um étero-avião transplanetário”, e que comenta:
“Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui, sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarro lá no sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de-noite e a gente poder dormir...”
O animal totêmico do conto é o sapo, várias vezes
referido nos diálogos e nas cantigas, além da famosa fábula da Festa no Céu,
quando o sapo vê que vai ser arremessado de volta à terra e implora: “Só não me
jogue na água, porque eu não sei nadar!”, e é lá que os seguranças da festa o
jogam, e ele sai nadando, aliviado. É como se Lalino Salãthiel tivesse dito: “Só
não me bote numa função onde eu precise ganhar todo mundo no papo.”
Lalino é um personagem-de-si-mesmo, uma persona pública e
festiva, que se vira como pode, memorizando fotos de revistas para quando
estiver se pabulando de suas andanças pelo Rio de Janeiro. Um desses indivíduos de permanente otimismo, um
ser humano que o tempo todo se sente “pomposamente, terrivelmente feliz.” Que
tem uma sorte que nunca lhe falha, talvez porque ele produza nas pessoas uma
impressão de empatia prazerosa; todos falam mal dele, todos criticam sua
vagabundagem, mas ninguém resiste à sua presença.
A apresentação do personagem:
“Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente. Blusa cáqui, com bolsinhos, lenço vermelho no pescoço, chapelão, polainas, e, no peito, um distintivo, não se sabe bem de que. Tira o chapelão: cabelos pretíssimos, com as ondas refulgindo de brilhantina borora.”
Um estilo telegráfico, uma imagem forte após a outra. Um
estilo que Mário Palmério apanhou no ar e repôs em voo com a sua famosa
abertura de Vila dos Confins,
apresentando Xixi Piriá:
"Lá vem êle. E ganjento, pilantra: roupinha de brim amarelo, vincada a ferro; chapéu tombado de banda, lenço e caneta no bolsinho do jaquetão abotoado; relógio-de-pulso, pegador de monograma na gravata chumbadinha de vermelho."
Rosa não apareceu apenas com um repertório de novos
discursos, ele foi desde seu primeiro livro um comentador bem-humorado do
discurso alheio, embora, diplomata, procurasse estar sempre de-bem com todo
mundo, quando possível. Ele ironizava a retórica burocrática e oficialesca que
provavelmente era obrigado a usar em seu trabalho, e dentro de um conto de ambientação
rural, interioranazinha, comparece um parágrafo assim:
“Major Anacleto relia – pela vigésima-terceira vez – um telegrama do Compadre Vieira, Prefeito do Município, com transcrições de um outro telegrama, do Secretário do Interior, por sua vez inspirado nas anotações que o Presidente do Estado fizera num anteprimeiro telegrama, de um Ministro conterrâneo. E a coisa viera vindo, do estilo dragocrático-mandológico-coactivo ao cabalístico-estatístico, daí para o messiânico-palimpséstico-parafrástico, depois para o cozinhativo-compadresco-recordante...”
O Major Anacleto tem um pouco daqueles sultões orientais
já meio velhuscos e entediados, que se encolerizam com facilidade e cinco
minutos depois já se esqueceram. Quando dá uma ordem e alguém lhe diz que
aquilo já foi feito, ele reclama: ”Diabo! Vocês também não deixam nada para eu
pensar!”. Não consegue acompanhar os malabarismos de estratégia de Laio, mas
lhe diz: “Eu mesmo gosto de gente aluada, quando são assim alegres e têm
resposta pra tudo.”
Este é um dos contos de Rosa mais políticos, mais claramente
descritivos de peripécias políticas, mas é acima de tudo uma história de amor “por
artes das linhas travessas da boa escrita divina”. Lalino está casado, felizão
da vida, mas não lhe sai da cabeça a lenda das polacas do Rio de Janeiro, ele
passa a morena no cobre e vai embora... mas acaba voltando. Ela tinha tudo para
não querê-lo de volta, mas nem o autor resistiu ao papo-de-derrubar-avião do
personagem, e a fez doida pelo condenado.
Num depoimento de JGR a João Condé, em 1946 (reproduzido
em Remembramentos, Vilma Guimarães
Rosa, Nova Fronteira, 1983) o autor dá uma geral nos contos do livro e, sobre
este, afirma:
“II) – A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO – A menos ‘pensada’ das novelas do ‘Sagarana’, a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945”.
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