quinta-feira, 3 de março de 2016

4066) As ondas gravitacionais (4.3.2016)



Um dos maiores desafios para os cientistas que trabalham em regiões avançadas do conhecimento é explicar aquilo em linguagem comum. Não só para o famoso “leitor mediano” dos jornais. Falo em justificar projetos e justificar pedidos de verbas diante de administradores, políticos ou burocratas cujo conhecimento científico é dos mais rarefeitos.

A imprensa divulgou com alarde, há pouco tempo, uma descoberta relativa às ondas gravitacionais. Isso sempre me intrigou. Eu sempre admiti que a luz (ou melhor o fenômeno eletromagnético) pudesse ser visto tanto como uma manifestação de ondas quanto de partículas em movimento. Os cientistas diziam que as duas coisas, mesmo confirmáveis pela experiência, eram mutuamente excludentes. Ou era uma, ou era a outra. Como nos domínios da FC a gente está sempre a uma página de uma revelação portentosa, deixei a questão em aberto.

Ondas gravitacionais (ou as partículas gravitacionais, ou “grávitons”, com que a FC também já brincou), contudo, são outra coisa, se aceitarmos que a gravidade é mesmo uma curva no espaçotempo, a deformação produzida nele pela presença da matéria. Como captar isso e traduzi-lo para repórteres e para adolescentes que leem Asimov e Clarke? Scott Hughes, na London Review of Books (http://tinyurl.com/zddxsfu), explica a certa altura o que houve:

“Numa galáxia distante, muito tempo atrás, um par de buracos negros, cada um com mais de trinta vezes a massa do nosso Sol, entraram em órbita um em volta do outro. Durante as próximas centenas de milhões de anos, ondas gravitacionais geradas pelo seu movimento os fizeram girar em espiral, devagar a princípio, mas depois ganhando velocidade, chegando cada vez mais perto, até estarem rodopiando mais depressa do que as lâminas de um liquidificador. Acabaram colidindo, já a um terço da velocidade da luz, emitindo uma última rajada de ondas gravitacionais, antes de amainar e recolher-se à vida pacata de um buraco negro comum.”

A dinâmica das ondas gravitacionais fica registrada em nossos medidores. Pela Relatividade Geral, o tom (pitch) e a força da onda mudam, se a fonte proceder assim ou assado. Escutando o LIGO (Laser Interferometer Gravitational-Wave Observatory) podemos dizer (diz Hughes) que um sistema é bem pesado, porque o sinal se encerra numa vibração inferior à do Dó mediano do piano. Se o sistema fosse mais leve (com menos massa) as ondas terminariam em nota mais aguda. Ele comenta que a astronomia sempre foi uma ciência visual, tudo que se fazia era analisar imagens. Agora, a vibração sonora é uma metáfora aceitável para comparar as novas leituras dos novos aparelhos. Ora, direis, ouvir estrelas.





quarta-feira, 2 de março de 2016

4065) A vingança do careta (3.3.2016)





Existe um gênero de narrativa que poderíamos chamar “Bandidos Negligentes Ofendem Sem Querer Pai-de-Família Pacato Transformando-o Numa Verdadeira Máquina De Matar.” Acho que já vimos muita gente nesse tipo de papel: Charles Bronson, Lee Marvin, Mel Gibson, Walter Matthau, Sylvester Stallone, e por aí vai. É uma narrativa que sempre promete. A vingança é um prato que se come frio, e é o melhor exemplo de violência auto-justificada no universo da Literatura da Crueldade. Um malfeito grave, sofrido tempos atrás (principalmente em contexto de covardia, contra pessoas indefesas, etc.) justifica qualquer requinte sádico capaz de ocorrer ao Pai-de-Família Pacato para aplicação nos culpados. Opção que ele nunca descarta.

Uma faísca disso que me apresentaram recentemente foi o romance de Jean-Patrick Manchette, Le Petit Bleu de la Côte Ouest (1976). Nele, Georges Gerfaut é um francês de trinta e poucos anos, casado, duas filhas pequenas, caretão, executivo. Uma noite ele retorna de uma viagem de negócios e vê na estrada um acidente banal, com um dos automóveis fugindo às pressas e o outro se espatifando fora da estrada. Ele desce, traz para seu carro o passageiro único do carro acidentado, visivelmente ferido e em choque. Gerfaut deixa o homem na emergência de um hospital na vila mais próxima, mas só então percebe que ele tinha sido baleado. Era uma execução, na qual ele se meteu sem querer. O homem baleado acaba morrendo, mas nesse ponto a narrativa passa a acompanhar os dois pistoleiros que estavam no outro carro. Eles conseguem identificar quem ajudou a vítima (alguém havia anotado a placa de Gerfaut).

Começam aí dois movimentos contrários, como o ir e vir de um pêndulo ou da katana de um samurai. No primeiro, mais longo, os dois assassinos “fecham” sobre Gerfaut, para eliminá-lo, e quase o conseguem. Gravemente ferido, ele é dado por desaparecido pela família, mas vai se recuperando dos ferimentos num esconderijo remoto, com a mesma paciência de Augusto Matraga. Quando fica bom, é localizado, e aí começa o movimento inverso: ele passa a perseguir seus perseguidores.

Jean-Patrick Manchette (1942-1995) era um fã de jazz (como Gerfaut) e do “roman noir” norte-americano. Seus livros são chamados de polares (=romance policiais, na França) existencialistas. Este romance foi traduzido ao inglês, primeiro como 3 to Kill e depois como West Coast Blues; foi adaptado em novela gráfica por Jacques Tardis (2005), e no cinema por Jacques Deray (1980). É um daqueles enredos acidentados e cheios de solavancos de Bruno Fischer ou David Goodis, impregnados do absurdo de Albert Camus.



terça-feira, 1 de março de 2016

4064) "O Santo Sujo" (2.3.2016)



Lendo sobre o Modernismo brasileiro, conheci o nome de Jayme Ovalle como sendo o parceiro musical de Manuel Bandeira na canção famosa “Azulão”, uma pequena peça de melodia dolente e versos nostálgicos, que entrou no repertório de numerosos intérpretes do canto lírico. As leituras se ampliaram, e o nome de Ovalle começou a pipocar por toda parte. Não se encontra por aí um só livro dele, um só disco, mas todo mundo concorda ter sido ele uma espécie de anjo inspirador da boêmia modernista do Rio de Janeiro.

A biografia O Santo Sujo - a vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 2008), de Humberto Werneck, tem uma pesquisa cheia de surpresas pitorescas, e a prosa rica e precisa do colunista do Estado de São Paulo. Werneck faz surgir a imagem de Ovalle como um escritor que não precisava de livro, poeta que esnobava poemas, músico para quem as canções eram mero efeito colateral da música, alguém capaz de inspirar a todos mas sempre deixando para depois a grande obra que parecia destinado a criar. Não muita coisa: vinte ou trinta canções líricas, um volume de poesias. Deixou, acima de tudo (como o Almotásim de Borges), seu reflexo nos que o cercavam, e o brilho desse reflexo nos permite imaginar a luz própria da pessoa.

Era grande fazedor de frases. “O câncer é a tristeza das células”, “o chato é o verdadeiro psiquiatra”, “a morte é a única coisa nossa; nosso nascimento, por exemplo, pertence aos nossos pais”. Não era um intelectual, era um intuitivo, místico, cheio de tiradas brilhantes, como um menino que presta atenção a tudo. Rezava muito, chorava com facilidade, apaixonava-se dia sim dia não. Era arquiteto de complicadas teorias estéticas, um terno sedutor de mulheres e um inflamado enfeitiçador de homens.

Era em imitação a Ovalle, diz-se, a mania de Vinicius de Moraes pelos diminutivos: “o poetinha, o uisquinho, o beijinho”. Vinicius foi um que, ainda jovem, se deixou fascinar pela maneira ovalliana de ser e de viver, a qual não impediu o “santo sujo” de ter sido a vida inteira um impecável e assíduo funcionário da Alfândega. Era na madrugada, onde florescem os talentos boêmios, que Ovalle desabrochava nas mesas de bar ou de cabaré, nas reuniões literárias onde era profanamente reverenciado por Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Aníbal Machado, Di Cavalcanti, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos... A lista é longa e cobre várias décadas. Um desses amigos, Dante Milano, assim o descreveu: “Tudo o que pretendia fazer era prodigioso, mas não se dava ao trabalho de realizar. Não podia, não havia tempo. Cada dia para ele era um novo dia diferente, cada noite era outra noite; um momento para ele era uma existência total”.




segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

4063) O Cerco de Anathemburg (1.3.2016)



(Ilustração: Shaun Tan)

Ouves, Hermengarda?  Estão roendo as muralhas. Alcatéias de castores famintos sofreados por rédeas de nylon não-degradável. Em breve abrirão buracos para a bala envenenada, a flecha radioativa. Vamos, vocês todas, peguem esses sacos plásticos, guardem os jogos de xadrez, as granadas de estimação, os celulares encriptados, as lingeries luminosas. Miróscala, recolha os véus de musselina, tecle red-alerta, destrave os alçapões, afivele o capacete. Chamem o vizir, chamem meu cardeal, meus generais, meu síndico, chamem o chefe da segurança. O chão treme como se fosse feito de água.  Não devemos ficar aqui.  Corro aos armários: Aqualung? Escafandro estratosférico? Veste de látex?  Armadura?  Colete à prova de lança-chamas?  Todo excesso de opções imobiliza, e ainda nem sei o nível tecnológico ou o viés ideológico dos predadores.  Uma explosão abre um rombo na parede e me tira do dilema.  Saltamos no elevador privativo, Úrsula aperta um botão qualquer, justo quando um comando com cinto-laser salta no quarto fritando toda matéria orgânica em 360o à volta. O elevador desce, passa os seis andares do serralho, onde a fuzilaria pipoca. Iolanthe, Maud, Shemira, Tsuyoko, Lacy. Nunca mais as verei? Na despensa sou detido por um desmoronamento.  Me esgueiro para fora, avanço puxando a fila, e estou na adega, vizinha ao serralho.  Um corredor estreito, prateleiras cobrindo paredes, vinhos deitados como se fossem fuzis apontando uns para os outros. Lucíola recusa-se a sair. Vou até o alçapão, ergo-o com dificuldade, porque há um corpo caído sobre ele.  Na amurada, no teto, dois atiradores, de costas para mim, debruçados, fuzilam gente na rua. Saímos aos tropeções para o heliporto, mas quando o Locusto faz a manobra de aproximação os dois começam a disparar contra ele. Alguma das garotas explode seus crânios antes de maior prejuízo. Escada de nylon. Ajudam-nos a subir. Quem serão essas pessoas? Quem os mandou? Qual dos meus pedidos de socorro, disparados pelo alarme do seguro, caiu nas mãos do aliado mais próximo, algum idiota cujo partido ou cujo feudo vamos ter que acomodar na próxima gestão? Dou ordens breves, as mulheres se instalam nos bancos como podem. Agora voamos a uma altura de onde se vê metade da capital, os prédios e rios em chamas. Os parques estão juncados de corpos. Daqui de cima não dá para distinguir se são homens-de-armas envoltos em cotas-de-malha e de espadão em punho, ou se são snipers com um estojo infalível de morte-ao-alvo, ou se são astronautas com escafandros vibracionais cuja frequência foi curtocircuitada. Tudo que vai comigo é a destruição e a carnagem. Esqueci o ano. Esqueci o século.




sábado, 27 de fevereiro de 2016

4062) A fala paraibana (28.2.2016)



(cartunage.blogspot.com.br)


Dias atrás postei aqui um artigo onde comentava algumas expressões que me pareciam totalmente campinenses ou paraibanas. Penso nelas assim porque foi em Campina que as ouvi pela primeira vez, e muito pouco em outros lugares. Muitos leitores, de outros Estados, demonstraram conhecê-las há muito tempo, tê-las como típicas de sua região de origem. Serão brasileiras por inteiro? Serão uma compreensível assimilação da fala nordestina, a região que mais exporta falantes para o resto do Brasil? Não dá pra saber, mas aqui vão outros exemplos do meu Dicionário da Fala Paraibana.

“Andar de urubu baleado”: Um andar oscilante, sestroso e artificial, com as pernas meio arqueadas, usados por "playboys" de subúrbio ou por malandros de zona. "De vez em quando a gente está por ali, tomando uma cervejinha, aí de repente chega Fulano, com aquele andar de urubu baleado, usando óculos escuros de noite e mastigando um palito."  Variante: “Andar de urubu cangueiro”.

“Dar ponto”: Aprovar. “Ih, rapaz, dei ponto a essa sua camisa! Muito bonita!”  “Dei ponto à atitude de Fulano, eu não esperava outra coisa dele”.  Também se usa, no sentido passivo, “ganhar” e “perder ponto”.  “Fulano ganhou ponto comigo depois daquele discurso que ele fez”.  “Tome cuidado, que toda vez que você faz uma besteira como essa você está perdendo ponto com a família de sua noiva.” Equivalentes: “Dar valor”, “Dar o maior valor”.

“Salvou-se uma alma!”: Exclamação irônica que se usa quando acontece um fato inusitado, geralmente uma boa ação praticada pela pessoa menos provável.  “Minha gente... Salvou-se uma alma! Olha Fulano pagando uma conta!”  A origem é a crença popular de que cada vez que alguém na Terra pratica uma ação nobre, uma alma do Purgatório recebe anistia e sobe ao Paraíso.

“Todo penso é torto”: Usa-se para bloquear a argumentação de alguém que começa dizendo "Eu pensei que..." ou "Eu penso que..."  “-- Eu pensei que era melhor a gente marcar uma reunião pra discutir o assunto.  -- Todo penso é torto! Daqui que a gente faça a reunião, a coisa já está fora de controle.”  "Penso" é uma contração irregular, equivalente a "pendido", cambaio, coisa que está em desnível, pendendo para um lado:  "Essa mesa ficou pensa, o sr. vai ter que diminuir um pouco os pés deste lado."   O sentido imediato da frase é: "Aquilo que é apenas pensado é imperfeito."

“Roer a corda”: O mesmo que “bater pino”, voltar atrás, desistir ou “furar” na hora H.  “Já estava tudo pronto pra gente viajar, mas na última hora Fulano roeu a corda e a gente ficou sem carro”.  Tem ligação com a imagem de um animal amarrado que rói a corda que o prende, e foge.






sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

4061) O Eco do pêndulo (27.2.2016)



No Brasil, Umberto Eco publicou nos anos 1980 um best-seller incontestável (O Nome da Rosa) e depois um anti-best-seller (O Pêndulo de Foucault). A enorme vendagem do primeiro livro, pela Nova Fronteira, deve ter animado a Editora Record a arrebatar os direitos do segundo, que vendeu muito abaixo do esperado. Quase todos os exemplares dos sebos e da Estante Virtual são dessa edição que encalhou, a de 1989. Uma injustiça, pois para mim os dois livros são igualmente bons. (Se o encalhe fosse do primeiro, todo mundo diria: “Mas é claro! Uma história de frades medievais, cheia de termos em latim, quem vai comprar isso?!”).

O Pêndulo é um livro tão complicado e divertido quanto o anterior, com o bônus de ser contemporâneo. Sua sátira fere mais rente o pensamento ocidental, misturando alquimia, teoria da conspiração, mercado editorial, política, melodrama rocambolesco, Cabala, candomblé. Esta última parte pertence ao longo trecho ambientado no Brasil (capítulos 23 a 33). O argumento dos conspiradores que inventam uma conspiração e depois são engolidos por ela seria meio que retomado por Eco em seu último romance, Número Zero (2015). No Nome da Rosa ele tinha homenageado Conan Doyle e Borges; no Pêndulo, dá para sentir o espírito de Dumas, de Fantomas e da revista Planeta.

O romance é o que John Clute descreve como uma Fantasia da História, uma narrativa que revela uma História Secreta do Mundo. A erudição que Eco derrama nele não é nem excessiva nem extemporânea, porque o tema da obra é justamente a proliferação de interpretações místicas, mirabolantes e paranóicas que vêm atordoando o mundo ocidental desde o Renascimento. O romance segue a estrutura rígida e arbitrária dos “sephiroth” da Cabala, mas pelas suas fendas faz brotar uma jângal indisciplinada de teorias fantasiosas, hipóteses herméticas, narrativas ocultas. Eco cita uma ironia de Chesterton, para quem, quando se deixa de acreditar em Deus, não é para acreditar em uma outra coisa, é para sair acreditando em tudo quanto aparece pela frente.

Um dos temas do livro são as “vanity presses”, as edições autofinanciadas por gente que tem dinheiro bastante para publicar por conta própria as coisas sem pé nem cabeça que escreve. Isso resulta numa proliferação de informação insensata, e é de certa forma uma prefiguração da Internet de hoje, onde qualquer teoria escalafobética encontra crentes e seguidores, e onde basta um computador e um pouco de sorte para encontrar um milhão de espíritos desarvorados capazes de acreditar numa fantasia que criamos por brincadeira ou por delírio fabulatório. O Pêndulo é o livro mais profético do autor.





quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

4060) Um Eco aberto (26.2.2016)



O recentemente falecido autor de O Nome da Rosa tem sido saudado na imprensa como um “Homem Renascentista”, igualmente capaz e talentoso em numerosas atividades complexas, daquelas que em muitos casos basta apenas uma para ocupar pelo resto da vida um intelecto robusto. Eu diria que Umberto Eco pertenceu a um tipo de intelectual contemporâneo que herdou o humanismo iluminista moderno mas sempre soube manter um olho atento para atividades ou temas considerados menores. Não é todo “Renaissance Man” que escreve sobre programas de TV, sobre orixás ou sobre torcidas de futebol. Os livros técnicos de Eco são opacos para mim (tentei ler 200 vezes A Estrutura Ausente) mas nos seus escritos para o leitor comum (como eu) ele é uma perfeita ilustração da máxima de Isaac Asimov, de que quem pensa com clareza consegue escrever com clareza.

Eco, daqui de onde o leio e observo, é um desses intelectuais de ampla erudição que não perderam o senso de humor, o interesse pelas coisas pequenas ou banais, a vocação lúdica, a capacidade fabulatória. São capazes de rir com as banalidades do cotidiano; mas não é o riso “blasé” e cínico de tantos pseudo-intelectuais de hoje, que se acham superiores ao seu próprio país ou mesmo ao mundo inteiro. Para os intelectuais, o mundo é uma fonte de diversão, de indignação, de prazer, de medo, de mistério. Vejo muito do seu espírito em Raymond Queneau, diretor editorial da coleção “Pléiade”, romancista (Zazie no Metrô), poeta, letrista de MPF (música popular francesa), matemático amador, ex-surrealista, amante dos trocadilhos e dos jogos verbais. Vejo-o em Julio Cortázar, capaz de construir pirâmides como O Jogo da Amarelinha e ao mesmo tempo de criar seus “almanaques” de microtextos e as divertidas Histórias de Cronópios e de Famas.

Outro que corre na mesma raia é Ítalo Calvino, leitor de vasta cultura, compilador de folclore (Fábulas Italianas), autor de romances metalinguísticos ou fantásticos, ensaísta literário capaz de reunir no mesmo texto profundidade de visão e clareza cristalina de exposição (Seis Propostas Para o  Próximo Milênio).  Ou então o também semiólogo Roland Barthes, cuja obra conheço menos, mas que influenciou o começo da carreira semiológica de Eco, com suas Mitologias. Barthes é dono de um humor mais contido e mais austero, mas sua percepção emotiva dos conflitos humanos, expressa com riqueza de filigranas mentais em Fragmentos do Discurso Amoroso, mostra (como Eco) que o verdadeiro intelectual é capaz de enxergar o que todo mundo viu e não percebeu, e ao dizê-lo pela primeira vez fazer aquilo parecer uma verdade eterna.





quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

4059) Eco, o humorista (25.2.2016)



Obituários recentes de Umberto Eco louvam o romancista, o semiólogo, o medievalista. Sem forçar muito a barra poderíamos louvar o humorista também. Eco escreveu numerosos textos de humor, textos destinados a extrair do leitor não a gargalhada, mas a risada, a risada de admiração, de incredulidade, de malícia, de susto, qualquer uma.  O humor produz uma reviravolta nas idéias (seja na lógica, seja na imaginação, seja na pulsão emocional) e puxa o tapete do leitor, fá-lo traçar no ar um zás-trás, e a risada é sua queda no chão. Um bom exemplo do humor de Eco é o seu texto sobre editores explicando por que recusaram obras como a Bíblia, a Recherche de Proust ou O Processo de Kafka.

No seu O Segundo Diário Mínimo (Record, 1994, trad. Sérgio Flaksman) Eco propõe os “Anagramas a Posteriori”, teste que consiste em baralhar as letras de um mesmo nome várias vezes, e “interpretar” os resultados, fazendo uma descrição cabível do personagem correspondente. Um calidoscópio de letras. O nome “Umberto Eco” é anagramado por Mário Giusti, que sugere exemplos como “Bruce O’Moet (nacionalista irlandês exilado em Reims no século XIX, fundador com Paul Chandon de uma célebre cave de champanhes)” ou “Toro Ecumbe (campeão sul-americano dos meio-pesados em 1953)” ou até “Buc Meteoro (personagem de histórias em quadrinhos dos anos 30)”. Os exemplos são numerosos e impagáveis. O jogo (proposto por Giusti) é encampado por Eco e por outros amigos, vira um torneio lúdico coletivo.

Não é humor narrativo, é humor enunciativo. No caso, com um ludismo verbal que proporciona ao autor a chance de desenvolver redes de associações verbais semiconscientes deflagradas pela junção de nomes próprios que trazem alusões étnicas, ou históricas, ou regionalistas, etc.  Isso é útil para quem, como romancista, tem que em cada obra inventar dezenas de nomes de personagens, nomes que podem até ser exóticos, mas precisam ser sempre nomes aceitáveis como de pessoas reais, no universo descrito.

Chamar o detetive de O Nome da Rosa de William de Baskerville não é apenas um alô-de-chapéu ao mito sherlockiano, é também trazer à cena Shakespeare, suas chacinas anunciadas, suas autoimolações. Dois autores popularíssimos, dois mitos ingleses cortando-se em cruz. Outros exemplos igualmente alusivos talvez passem batidos a boa parte dos leitores que não lhes conhecem as referências. A quantidade de imaginação e de esforço presente nessa brincadeira dos anagramas nos faz ver em Eco um espécie de Guimarães Rosa. Rosa tinha esse mesmo foco, e nenhum nome nas suas histórias deixa de trazer uma camada oculta de associações de idéias.




terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

4058) A depressão (24.2.2016)



(David Foster Wallace)

Uma obra literária pode levar ao suicídio uma pessoa depressiva? O caso mais famoso, ao que eu saiba, foi Os sofrimentos do jovem Werther (1774) de J. W. Goethe. É uma das grandes obras do romantismo alemão, um livro escrito aos 24 anos onde Goethe, reza a lenda, descarregou sua tristeza por uma paixão que não deu certo. O livro aparentemente provocou uma onda de suicídios de leitores jovens que se identificaram com o protagonista, um rapaz que se mata porque sua amada casou com outro.

Males de amores, contudo, raramente causam depressão. Ela pode ser deflagrada por problemas psicológicos profundos ou por desequilíbrio químico do organismo (neste caso é comum o tratamento pelo uso de remédios). Um caso recente de suicídio literário foi o de David Foster Wallace, o autor de A Piada Infinita (“Infinite Jest”). Wallace sofria de depressão desde jovem, e usava medicamentos. Já famoso, com mais de 40 anos, seu médico sugeriu interromper o tratamento ou tomar outra medicação. Ele o fez. Não deu certo, e a depressão voltou com tudo. Ele voltou ao remédio antigo – e este não fez mais efeito. Um dia a esposa deu uma saída rápida, e ao voltar encontrou Wallace enforcado no porão, com os cachorros da casa parados em volta, olhando.

Disse ele certa vez, sobre o problema: “É o motivo pelo qual quero morrer. (...)  É como se não fosse capaz de encontrar nada fora dessa sensação e por isso não sei que nome lhe posso dar. É mais horror que tristeza. É mais horror. É como se uma coisa horrorosa estivesse prestes a acontecer, a coisa mais horrível que se possa imaginar, não, pior do que se possa imaginar porque há também a sensação de que é preciso fazer qualquer coisa de imediato para se deter aquilo, mas não se sabe o que se deve fazer e de repente está acontecendo, durante o tempo todo, está prestes a acontecer e ao mesmo tempo está acontecendo.”

Essas coisas podem acontecer num contexto explicável (problemas pessoais, financeiros, de saúde, etc.) ou inexplicável (os ataques de pânico que acometem pessoas sadias e sem problema algum). A bebida e as drogas acabam sendo válvulas de escape para alguns. Parece óbvio que não resolvem o problema, e sim o agravam, pois a euforia momentânea do barato tem como reverso a rebordosa do dia seguinte. Toda pessoa deveria ter uma atividade, uma prática qualquer capaz de fazer frente a essas quedas terríveis na areia movediça do nada-vale-a-pena. Artistas muitas vezes fazem de sua arte um salva-vidas precário que os ajuda a manter-se à tona. Nem sempre funciona, mas quando funciona acaba sendo a única coisa que segura um sujeito do lado de cá até que passe a tempestade.






segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

4057) Cinco mal-entendidos (23.2.2016)



A lojinha de velhos vinis e CDs era larga mas atravancada, abafada, de teto baixo. Prateleiras e balcões cheios de velharias. Aqui e acolá, uma preciosidade. Uma mocinha bonita começou a passar lá de vez em quando, aparentemente quando saía do escritório para almoçar. Ficava mexendo nos vinis de jazz. Lauro, o dono da loja, fantasiou nela uma intelectual que lia poesia em inglês e sabia escolher vinhos. Um dia ela foi para o balcão de axé e lá se deteve. Ele não resistiu e foi perguntar se ela gostava daquilo. “Não,” disse a moça, “é que hoje o ventilador está virado pra cá.”

Paulo Jatobá, sertanejo, soldador, 47 anos, irrompeu furibundo num bar e fuzilou com cinco tiros seu vizinho Nestor Sá, 61 anos, aposentado, conhecido como Nestor Merdinha, o qual havia entreouvido numa conversa doméstica a esposa recente do dito Paulo, Marilinha da Silva, 20 anos, afirmar que era virgem, e saiu depreciando tanto o caráter da madame quanto a virilidade do esposo, por não ter entendido que se tratava meramente de uma comparação zodiacal entre donas-de-casa ociosas.

O pai leva o filho a um evento de mangás, RPGs, quadrinhos, com dezenas de estandes, milhares de pessoas, numa balbúrdia indescritível. A certa altura o garoto volta para junto dele, puxa sua camisa, excitado: “Pai, me dá cinco e cinquenta!”. Ele dá uma nota de dez, manda guardar o troco, volta a conversar com os amigos. Daí a pouco olha e vê o garoto num estande afastado, com expressão arrasada, quase chorando. Vai até lá e vê a vendedora segurando um álbum imenso, quase 500 páginas, e explicando ao guri: “São cento e cinquenta...”

A piriguete, em plena viagem turística acompanhando turnê da banda de forró Abaixa Que Eu Levanto, entra no hotel, pega a chave na recepção, sai batendo com os saltos altos no piso, rebolando dentro do shortinho. Entra no elevador, fala com autoridade para o ascensorista gordo e cinquentão: “Vamos para o quarto, por favor.” Ele responde: “Pois não, senhora. Em que andar fica?...”

César estava recebendo duas primas distantes, irmãs, que vieram passar férias com os pais dele. Mesmo tímido, levou as duas a um filme bem mulherzinha, depois a um terraço à beira mar para tomar cerveja e pendurar a conta até onde a vista desse. Apaixonou-se de imediato por uma delas. A certa altura (a música era ensurdecedora) criou coragem, aproximou-se do ouvido da outra e gritou: “Diga a sua irmã que ela é muito linda!”. Ela, também gritando: “O quêee?” Ele: “Muito liiinda!”. Ela deu um sorriso brejeiro, correu os dedos sobre o decote, ergueu os olhos para ele sem mexer a cabeça e disse: “Esperei tanto por isto...”