segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
4063) O Cerco de Anathemburg (1.3.2016)
(Ilustração: Shaun Tan)
Ouves, Hermengarda? Estão roendo as muralhas. Alcatéias de castores famintos sofreados por rédeas de nylon não-degradável. Em breve abrirão buracos para a bala envenenada, a flecha radioativa. Vamos, vocês todas, peguem esses sacos plásticos, guardem os jogos de xadrez, as granadas de estimação, os celulares encriptados, as lingeries luminosas. Miróscala, recolha os véus de musselina, tecle red-alerta, destrave os alçapões, afivele o capacete. Chamem o vizir, chamem meu cardeal, meus generais, meu síndico, chamem o chefe da segurança. O chão treme como se fosse feito de água. Não devemos ficar aqui. Corro aos armários: Aqualung? Escafandro estratosférico? Veste de látex? Armadura? Colete à prova de lança-chamas? Todo excesso de opções imobiliza, e ainda nem sei o nível tecnológico ou o viés ideológico dos predadores. Uma explosão abre um rombo na parede e me tira do dilema. Saltamos no elevador privativo, Úrsula aperta um botão qualquer, justo quando um comando com cinto-laser salta no quarto fritando toda matéria orgânica em 360o à volta. O elevador desce, passa os seis andares do serralho, onde a fuzilaria pipoca. Iolanthe, Maud, Shemira, Tsuyoko, Lacy. Nunca mais as verei? Na despensa sou detido por um desmoronamento. Me esgueiro para fora, avanço puxando a fila, e estou na adega, vizinha ao serralho. Um corredor estreito, prateleiras cobrindo paredes, vinhos deitados como se fossem fuzis apontando uns para os outros. Lucíola recusa-se a sair. Vou até o alçapão, ergo-o com dificuldade, porque há um corpo caído sobre ele. Na amurada, no teto, dois atiradores, de costas para mim, debruçados, fuzilam gente na rua. Saímos aos tropeções para o heliporto, mas quando o Locusto faz a manobra de aproximação os dois começam a disparar contra ele. Alguma das garotas explode seus crânios antes de maior prejuízo. Escada de nylon. Ajudam-nos a subir. Quem serão essas pessoas? Quem os mandou? Qual dos meus pedidos de socorro, disparados pelo alarme do seguro, caiu nas mãos do aliado mais próximo, algum idiota cujo partido ou cujo feudo vamos ter que acomodar na próxima gestão? Dou ordens breves, as mulheres se instalam nos bancos como podem. Agora voamos a uma altura de onde se vê metade da capital, os prédios e rios em chamas. Os parques estão juncados de corpos. Daqui de cima não dá para distinguir se são homens-de-armas envoltos em cotas-de-malha e de espadão em punho, ou se são snipers com um estojo infalível de morte-ao-alvo, ou se são astronautas com escafandros vibracionais cuja frequência foi curtocircuitada. Tudo que vai comigo é a destruição e a carnagem. Esqueci o ano. Esqueci o século.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário