quarta-feira, 21 de outubro de 2015

3951) O rosto do poema (22.10.2015)


("Poema", de Joaquim Cardozo)

O rosto do poema é o formato que ele adquire na página impressa. Aquilo que chamamos “a mancha gráfica”, o espaço ocupado pelas palavras impressas na página branca. (Quando se trata de trechos em prosa cerrada, essa mancha é um retângulo impresso cercado por margens em branco.)  A mancha do poema revela, no primeiro vislumbre, sua extensão total, o comprimento das suas linhas, a (ir)regularidade das estrofes. Nessas manchas de texto, que visualizamos de chofre antes de decompô-las em palavras, percebe-se a respiração do poema, as expansões e contrações da voz que o enuncia.

Alguém abre um livro e vê aquela massa compacta de texto que é o “Uivo” de Allen Ginsberg, aquelas linhas intermináveis que se quebram à margem direita e se derramam para a linha logo abaixo. Ao começar a ler, a pessoa sabe que todo o resto do texto vai seguir aquele formato, vai obedecer ao ritmo caudaloso daquela dicção (Ginsberg já afirmou que nos poemas dele o tamanho da linha era a capacidade do seu pulmão, era toda frase que ele fosse capaz de dizer antes de precisar encher os pulmões de novo). Se na página seguinte o leitor acha um poema de e. e. cummings, vai ter uma informação visual diferente, a começar pela abolição das maiúsculas, as palavras partidas em pedaços verticais, etc. O poema típico de Ginsberg parece uma parede; o de cummings parece uma folha caindo devagar.

Sempre que releio “O Caso do Vestido” de Drummond me pergunto por que motivo ele partiu em dísticos (grupo de 2 versos) esse longo rimance ibérico-cordelesco. Poderia ter mantido o fluxo vertical do texto, que é todo em setissílabos, marcando apenas as pausas internas à própria narração, como o fez em tantos outros (“O Elefante”, “Morte do Leiteiro”, “A Mesa”, etc.). Mas não, ele saiu quebrando o poema todo de 2 em 2 linhas, o que torna o “Caso do Vestido” facílimo de localizar, apenas folheando o livro. Tão reconhecível quanto a divisão de 3 em 3 usada em “A Máquina do Mundo”, sem que isso se deva a nenhuma imposição interna. Talvez alusão aos tercetos de Dante na Divina Comédia, mesmo sendo brancos (sem rima) os versos que ele agora usa. O efeito rítmico, ao meu ver, é o de conter um fluxo que poderia ser contínuo, como quem desce de carro uma ladeira dando pisadinhas leves e constantes no freio para brecar a aceleração da descida.

Um soneto, um haicai ou uma sextilha podem ser identificados de relance por um leitor de mediano conhecimento. É a primeira informação essencial: “o tamanho é este aqui”. É a primeira informação que se dá ao leitor (antes mesmo da leitura do título do poema) e a primeira expectativa estética que se produz nele.









terça-feira, 20 de outubro de 2015

3950) Nós fumo (21.10.2015)



“Não é somente no cinema que isto veio a se cristalizar como clichê, mas também na literatura,” disse Philip Marlowe, batendo a cinza do Camel num cinzeiro redondo de vidro. Levou o cigarro aos lábios, aspirou a fumaça, soltou-a em dois tubos paralelos, parodiando um touro enfurecido. “Nem todos os autores têm facilidade para preencher os tempos mortos de uma cena onde duas ou mais pessoas falam entre si. É preciso fazer com que essas pessoas interajam com o ambiente, façam algum gesto. Os outros personagens me servem bebidas, oferecem-me tabaco, e quando eu bebo eu acabo aceitando.”

“Pois eu não sabia o que fazer com as mãos,” disse James Bond, cigarrilha no dedo.  “Não era disso que aquelas coadjuvantes se queixavam,” observou Miss Marple, firmemente limitada ao seu chá de sempre. “Minha cara senhora,” disse Bond fazendo uma curvatura risonha, “na mesa de jogo ou no leito amoroso geralmente já se sabe o que se vai fazer. O problema, como nosso bom Marlowe assinalou, são os bate-papos dos personagens. A ‘conversation piece’ dos nossos pintores. Descrever o que alguém faz com o cigarro ajuda a intercalar as falas com algo que contenta os olhos. Alguns leitores precisam dessas informações visuais mais do que outros.”

“E alguns autores sabem fornecer isto melhor do que outros, Mr. Bond, mas permita lembrar-lhe que nem só de cigarros vive a nossa estirpe,” disse Sherlock Holmes, sugando repetidamente ao cachimbo de roseira-brava, constatando-o de fogo morto, riscando um fósforo de cera, aplicando-o ao fornilho inerte e vendo-o esbrasear-se e consumir-se quase que de dentro para fora. “A proverbial nitidez e o proverbial claro-escuro de tudo que é ficção vitoriana, sem dúvida”, disse Miss Marple, “sempre levando em conta, claro, que quem viveu a era vitoriana desconhecia essa palavra e descreveria seu próprio tempo, talvez, em termos muito diversos.”

“Nós somos no fundo uns neo-vitorianos,” disse Doc Sportello, enquanto estendia na mesinha a seda, deslindava berlotas, enfileirava o matagal picadinho, dava a enrolada final na múmia e acendia o prepúcio de papel. “A Califórnia é uma Londres, só que ensolarada pelo lado de fora.”  Marlowe puxou um charuto cubano do bolso interno do paletó, mordeu-lhe a ponta, cuspiu-a pela janela que dava para o Tâmisa e disse: “Todo romance na verdade conta duas histórias, a história do que aconteceu, e as falas que os personagens pronunciaram. Quem sabe um dia invadirão o descanso eterno das nossas sepulturas para cortar nosso texto. No futuro, censores condenarão esta pequena antologia. No futuro ninguém saberá que fumávamos”. “Fumarei a isto”, disse alguma voz.



segunda-feira, 19 de outubro de 2015

3949) Poeminha curto (20.10.2015)




(Leminski, por Marcos Guilherme)


Já vi esse tipo de poema descrito como “poeminha leminskiano”. O curitibano Paulo Leminski não o inventou, mas é um dos seus melhores executantes.  

Ninguém inventa essas coisas, essas formas simples. Esse formato difuso brotou junto com os poetas da minha geração, os que começaram a divulgar seus poemas nos anos 1970 e nos 80 já estavam em livro. 

Eu fiz um monte deles, todo mundo fez um monte, e com frequência vemos belas coisas sendo ditas.

Leminski é candidato à faixa de melhor fazedor, com preciosidades como: 

pariso 
novayorquizo 
moscoviteio 
sem sair do bar 

só não levanto e vou embora 
porque tem países 
que eu nem chego a madagascar.

Ou essa fotografia zen: 

o barro 
toma a forma 
que você quiser 

você nem sabe 
estar fazendo apenas 
o que o barro quer.  


Esses movimentos de ida e volta do poema se mantêm mesmo quando cada bloco fica menor em tamanho: 

um pouco de mao 
em cada poema que ensina 

quanto menor 
mais do tamanho da china.


Isto é o poema curto em dois blocos.  Tem um desenlace rítmico diferente da sextilha, diferente do haicai. Estruturalmente, corresponde mais ou menos a duas quadrinhas (ou tercetos, ou dísticos, misturadamente) superpostas, resultando num poema de 6 a 8 linhas no total, com uma cesura ao meio. 

O verso do meio e o último (o 4o. e o 8., digamos) rimam entre si. Este efeito é mais importante do que o numero total de versos, e se eles rimam internamente entre si ou não. É como se o poema mostrasse a cara, depois a coroa, e tudo rimasse. Um vapt e um vupt. Um zás e um trás.

O primeiro bloco pode ter de uma a quatro linhas, raramente mais, linhas que exibem rimas ou não, e ele se conclui com uma linha onde é proposta a rima que deve se repetir no final. 

A leitura desse primeiro bloco deixa uma expectativa rítmica e sonora a ser preenchida pelo segundo. Quando ele o faz, fecha o poema com um senso de resolução melódica e simetria estrutural. 

O perigo de tal verso é apenas, como o de toda forma simples, o de ser muito acessível ao versejador preguiçoso ou sem muito o que dizer.


Ainda Leminski, este com um alô de chapéu a Yeats: 

eu tão isósceles 
você ângulo 
hipóteses 
sobre o meu tesão 

teses sínteses 
antíteses 
vê bem onde pises 
pode ser meu coração.  

Este, sobre a bolandeira do fazer versos: 

moinho de versos 
movido a vento 
em noites de boemia 

vai vir o dia 
quando tudo que eu diga 
seja poesia. 

E esta declaração de guerra em forma de cambalhota: 

o pauloleminski 
é um cachorro louco 
que deve ser morto 
a pau a pedra 
a fogo a pique 

senão é bem capaz 
o filhodaputa 
de fazer chover 
em nosso piquenique.












sábado, 17 de outubro de 2015

3948) "A rotina e a quimera" (18.10.2015)




(Carlos Drummond)


Sob este melancólico título Carlos Drummond publicou uma crônica no Correio da Manhã, recolhida depois no livro Passeios na Ilha (1952), e nela meditava sobre o destino do escritor brasileiro que tem um emprego público. 

Como se sabe, dois terços do nosso cânone na poesia, no romance e no conto foram produzidos por indivíduos que ganhavam a vida como: 

1) funcionários públicos; 
2) professores; 
3) jornalistas. 

Em tempos mais recentes, 

4) publicitários; 
5) advogados. 

A fatia mais estreita corresponde a todas as outras profissões, inclusive a fugidia espécie do “escritor em tempo integral”.

Há medidas modernizadoras (diz o poeta) para evitar que funcionários desviem seu tempo de expediente para atividades menos confessáveis (ele lembra que Lima Barreto “escrevia romances nas costas do papel almaço, usado, da repartição”). O escritor-funcionário, porém, não deixará de escrever por isto: “escreverá na hora do sono ou da comida, escreverá debaixo do chuveiro, na fila, ao sol, escreverá até sem papel”.

Drummond falava de cátedra, e para ele o escritor-funcionário tem que estar equidistante do miserê e do pleiboísmo: 

“O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é condição ideal para bom número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados imediatos, porém não abre perspectiva de ócio absoluto. O indivíduo tem apenas a calma necessária para refletir na mediocridade de uma vida que não conhece a fome nem o fausto.”

O poeta reconhece a floração do talento em outros temperamentos, como o boêmio ou o escritor faminto de mansarda, mas adverte: 

“aqui se trata de certo tipo de criador literário, aquele que não ama velejar pelos mares lendários nem ancorar à sombra do botequim: o escritor-homem comum, despido de qualquer romantismo, sujeito a distúrbios abdominais, no geral preso à vida civil pelos laços do matrimônio, cauteloso, tímido, delicado. A organização burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o”.

O poeta parece estar opondo o andarilho Rimbaud ao sedentário Drummond, mas logo abaixo ele se dá o trabalho de nomear (contei agora mesmo) trinta e três colegas do nosso Olimpo literário, e seus respectivos cargos. O poeta ainda adverte: 

“Mas seriam páginas e páginas de nomes, atestando o que as letras devem à burocracia, e como esta se engrandece com as letras.”  

A primeira grande decisão na carreira de um escritor não é estética nem ideológica, é a sua resposta à pergunta: “Como vou ganhar a vida enquanto escrevo? Um emprego confortável e seguro, que dure a vida toda, ou viver de aventuras? Qual das duas vidas me transformará num escritor melhor?”.






sexta-feira, 16 de outubro de 2015

3947) Coisas que aconteceram (16.10.2015)



Eu estava no Rio de Janeiro a passeio, hospedado no apartamento de amigos em Ipanema. Cheguei um dia sozinho, de madrugada, rua deserta. Havia um cara querendo entrar no prédio; não tinha a chave, nem havia porteiro. Abri a porta para ele, que sorriu, me agradeceu, entramos, eu ia para o térreo, ele subiu no elevador. Era Glauber Rocha.

Eu vi em Salvador, no Corredor da Vitória (uma rua com intenso tráfego em mão dupla), dois motoristas diminuírem a marcha ao virem na direção um do outro, e depois pararem os carros lado a lado, trocarem sorriso, aperto de mão, algumas frases, enquanto as duas filas de carros esperavam, por trás de cada um, e depois eles deram tchau, todo mundo seguiu em frente e o mundo até hoje não se acabou.

Eu vi no Circo Voador da Lapa, após o Rock in Rio de 1985, numa noite em que muita gente subiu ao palco, a hora em que a platéia pediu James Taylor, que tinha botado o “RiR” todo pra cantar “You’ve Got a Friend” poucos dias antes. Ele sentou ao microfone e pegou o violão, e aí um engraçadinho da platéia jogou uma lata de cerveja que pegou na cabeça dele. Ele cantou mesmo assim.

Eu estava na multidão hirsuta que de violão em punho foi para a frente da cadeia de Ouro Preto pedir ao megafone a libertação dos atores do Living Theatre de Julian Beck e Judith Malina, ali encarcerados, e como não se libertou ninguém a gente cantou de novo “This is the dawning of the Age of Aquarius”, e voltou para a praça.

Eu vi da platéia algo que talvez já tenha acontecido a muita gente pelo mundo afora, mas eu tive uma sensação de estranheza e de novidade alguns anos atrás, quando vi ao vivo Chuck Berry cantando “Yesterday” num palco carioca.

Eu estava ali bem pertinho da grade do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, quando o corpo do presidente-eleito-e-não-empossado Tancredo Neves foi posto à visitação pública, e a multidão forçou os cordões, e foi preciso a viúva vir à sacada e ao microfone, para pedir que se afastassem, porque podia acabar acontecendo uma tragédia.

Eu estava na platéia do Teatro Santa Roza, na Paraíba, durante um espetáculo de Brecht montado por Renato Borghi e Ester Góes, quando no meio da peça um fotógrafo da imprensa subiu no palco e tirou mais de uma dúzia de fotos, como se fosse invisível, até que os atores se interromperam e pediram a ele para descer, porque estavam se desconcentrando.

Eu vi pela TV o gol de Basílio que interrompeu o famoso jejum de títulos paulistas pelo Corinthians; eu estava em Cachoeira da Bahia, o bar com a TV estava cheio de baianos, além de alguns alemães que estavam de passagem, e todo mundo naquela noite foi Corinthians desde criancinha.


quinta-feira, 15 de outubro de 2015

3946) "O Desatino da Rapaziada" (16.10.2015)



Terminei a leitura, que passou voando, de O Desatino da Rapaziada – Jornalistas e Escritores em Minas Gerais 1920-1970” de Humberto Werneck (Companhia das Letras, 1992). Digo que passou voando porque é assim que parece passar esse período nas letras e na imprensa de Minas Gerais, com uma sucessão de jornais, revistas e suplementos ou tablóides literários que sobem aos céus de Minas em girândolas de boas intenções e versos febris, brilham durante alguns anos ou alguns números e depois se desfazem em fumaça e cinza enquanto um novo tablóide alça sua própria explosão.

Sempre pensamos no escritor brasileiro como um funcionário público com histórias para contar, papel em abundância e tempo de sobra. O livro de Humberto Werneck nos lembra que não só as repartições: as redações de jornais também foram um valhacouto onde se homiziaram muitos beletristas acusados de poetas. E lembra que a reportagem diária, com seus percalços, revelou muitos dos nossos talentos na ficção.

HW examina em seu livro gerações sucessivas de jornalistas-literatos, começando pela época do Modernismo, com Carlos Drummond de Andrade sendo a figura que mais se destaca, e depois vem abordando a geração “encontro marcado” em alusão ao romance homônimo de Fernando Sabino (cujo grupo se complementa com Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino), até a explosão dos “contistas mineiros” dos anos 1960 em diante, de Murilo Rubião a Luiz Vilela.

Aliás, é bom qualificar minha afirmação mais acima, porque ser jornalista era, também, uma forma de ser funcionário público. Os jornais geralmente faziam parte de projetos pessoais de governadores, prefeitos, políticos necessitados de um altofalante para seus interesses.  O jornalista geralmente não tinha estabilidade, nem salários polpudos nem proteção trabalhista, mas era possível aproveitar os entusiasmos eleitoreiros deste ou daquele partido para encher as ruas de papel impresso. Surgiam daí os jornaizinhos combativos que na metade da frente defendiam os interesses do patrão e na metade de trás traficavam as subversões estéticas do seu tempo.

São dezenas de episódios pitorescos de rivalidades poéticas, despeitos pessoais, travessuras, pequenos delitos, maledicência terapêutica. E de louvação bem humorada aos azares da profissão, que, segundo o poeta Carlos Drummond, “proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada”, e ajuda a prevenir a chegada da “preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo”. Nada como uma boa redação dos velhos tempos para curar o “writer’s block” dos existencialistas de hoje.



quarta-feira, 14 de outubro de 2015

3945) Eu me lembro - 6 (15.10.2015)



Eu me lembro do cheiro do ambiente do caldo de cana Macaíba, e das páginas de revistas com curiosidades, mistérios e bizarrices, emolduradas, na parede da sinuca O Gato Preto. 

Eu me lembro que em Campina Grande já se fabricou a cachaça “Galo da Borborema”; eu tinha uma garrafa em casa, da qual derramei o primeiro conteúdo e substituí por Rainha. 

Eu me lembro de uma foto (na Manchete ou no Cruzeiro) mostrando que o número 1961 continuava o mesmo se fosse virado de cabeça pra baixo.

Eu me lembro que o primeiro lugar em que se venderam livros de bolso em Campina foi no Abrigo Maringá. 

Eu me lembro quando a comitiva presidencial com Juscelino em carro aberto passou pela nossa casa subindo a rua Miguel Couto, rumo ao centro. 

Eu me lembro de uma mendiga de chapéu que pedia esmolas de pé na Rua Maciel Pinheiro; ela tinha o rosto deformado e eu, que teria uns dez anos, morria de medo de avistá-la.

Eu me lembro de quadrinhos de Gabby Hayes, C.B., Morcego Negro, Flecha Ligeira, Flecha Certeira, Rocky Lane e Falcão Negro, o qual depois eu soube ser criação do paraibano Péricles Leal. 

Eu me lembro de um cachorro doido nos poços das lavadeiras no Alto Branco, e quem o matou de espingarda foi nosso vizinho Zezinho Buraco, ex-zagueiro do Treze. 

Eu me lembro dos animais empalhados na vitrine da loja Palacinho da Criança. 

Eu me lembro da caixa de sapatos cheia de diferentes tabelas da Copa de 1966 que eu guardava embaixo da cama.

Eu me lembro de Mário Rogério e seus amigos cantando e tocando violão à noite, no alto do edifício Abdallah, a alguns metros do portão da nossa casa na rua Padre Ibiapina. 

Eu me lembro da cartola do Preguéto, do cachorro quente do Cisne Lanches, do sorvete da Capri e da cabeça-de-galo de Zuzu. 

Eu me lembro do fim das terças-feiras de Carnaval no Gresse, quando, ao amanhecer da 4a.feira de Cinzas, a orquestra descia a ladeira tocando rumo à Praça da Bandeira, onde Ivan Gomes atirava os bêbos dentro da fonte.

Eu me lembro do cheiro de compensado dos palcos e dos bastidores da TV no Recife, e de como o palco parecia pequeno quando a gente entrava nele. 

Eu me lembro do baterista que tinha sido mordido de cachorro doido e agora tinha que tomar injeções na barriga. 

Eu me lembro dos certificados de censura dentro de envelopes pregados à face interna da tampa das latas de filme em 35mm, e que o gerente deixava a gente ler e anotar. 

Eu me lembro das pessoas que trabalharam com meu pai: Edson da Federação, Seu Sebastião contínuo, depois Seu Lisboa motorista, Albanisa a eterna secretária. 

Eu me lembro do garçom Espanha, do taxista Luizinho e de Henrique da banca de revistas do Calçadão.




terça-feira, 13 de outubro de 2015

3944) Inventando palavras (14.10.2015)



Como se criam as palavras novas? Muita gente tem o que eu chamo a visão Stalinista de como a língua evolui. Para eles, a evolução da língua é uma atividade coordenada pelo Estado, através de gramáticos e dicionaristas. Os gramáticos criam as leis de trânsito do idioma, decretando o que é permitido e o que é proibido fazer. E os dicionaristas fazem uma espécie de recenseamento das palavras do idioma, carimbando as que têm existência oficialmente reconhecida (e significado explicado no verbete) e têm autorização de uso.

Só que não. Os gramáticos administram uma pressão enorme que a língua sofre por parte de usuários que precisam desobedecer as regras em benefício da expressividade, ou da rapidez, ou da clareza. Ou mesmo devido a defeitos deles mesmos, que às vezes a entendem mal e usam seus recursos meio às cegas, sem perceber como poderiam aproveitá-los melhor. O povo é o criador da língua, mas o povo é um polvo de mil tentáculos, cada qual atarefado em resolver seu problema imediato e sem ligar para o conjunto da obra. O povo tanto produz obras-primas de inventividade quanto catástrofes verbais de pensamento confuso.

O dr. Castro Lopes (1827-1901) foi um desses idealistas eruditos que queria corrigir sozinho os erros do povo brasileiro, e um dos maiores erros, no julgamento dele, era a aceitação de palavras francesas (isto foi há cem anos, quando a França era quem mandava em nossa cultura dominante), palavras como chofer, abajur, menu, garagem, ou palavras inglesas como futebol etc.  Recorrendo às fontes mais profundas do idioma (o latim e o grego), o doutor propunha uma série de palavras novas. Para abajur, ele propunha “lucivelo”, que traz a mesma idéia de uma luz sendo parcialmente vedada. Para futebol, sugeriu “ludopédio”, que significa “brincadeira com os pés”.  Além de outras palavras que Guimarães Rosa, num dos prefácios de Tutaméia (1967), enumera, divertindo-se: protofonia, ancenúbio, nasóculos, preconício...

Não devemos mangar muito do doutor, porque algumas das suas propostas têm hoje uso corrente, como cardápio, estréia, necrópole e o verbo “postar”. Ou seja: a criação verbal também se dá de cima para baixo, do gabinete para as ruas, do erudito para o popular. As idéias dos doutores são muitas vezes incorporadas pela plebe. O problema é que a pressão no sentido oposto é incalculavelmente maior. Atualmente, por causa das discussões políticas sobre impeachment, o verbo “impichar”, em todas as suas formações, está sendo usado pela imprensa sem pedir licença. O dr. Castro Lopes provavelmente não concordaria com o verbo.



segunda-feira, 12 de outubro de 2015

3943) Vila Nova (13.10.2015)



O ano era 1976, e o Treze tinha um ataque que incluía João Paulo, Soares e Gil Baiano. Que outra coisa importante aconteceu no Brasil ou no mundo nesse ano? Eu, por mim, respirava futebol, cinema e cantoria de viola, em doses equivalentes e maciças. Ano de Congresso dos Violeiros, de muitas cantorias em bairros remotos de Campina, de muita conversa em torno de verso e em torno de livro. 

Foi por volta dessa época que Ivanildo Vila Nova me visitou no apartamento onde eu morava, perto da Rodoviária velha. Ele estava chegando de uma viagem à Bahia, e perguntou se eu conhecia um cantor chamado Elomar Figueira de Melo. Falei que não, e ele cantarolou trechos de “lá na casa do Carneiros / onde os violeiros / vão cantar louvando você...” e do “já que tu vai lá pra feira / traga de lá para mim...”  Foi a primeira vez que escutei os versos do Bardo de Conquista. E Ivanildo completou: “Não tem palavras que descreva esse homem, o jeito verdadeiro dele. E quando pega o violão e canta as coisas dele, então... É um apocalíptico”. Isso colou e virou um parâmetro. Tempos depois, quando mostrei a Ivanildo a versão acústica, original, de Bob Dylan cantando “It’s alright, Ma”, ele apontou na mesma hora e disse: “Apocalíptico também.”

Como se diria numa saudação oriental: “O poeta remoto e antediluviano que escuta em mim reconhece, saúda e homenageia o poeta antediluviano e remoto que fala através de ti.”  A poesia, cantada ou escrita, tem a sorte de parecer com a música. Pra quem quiser buscar a complexidade o céu é o limite, mas ao mesmo tempo tem uma área acessível à simples aplicação da técnica. É relativamente fácil fazer um bom verso. O que não é fácil é produzir versos de qualidade consistente, não importam as fases da inspiração e as marés da profissão, ao longo de muito tempo.

Ivanildo Vila Nova está fazendo 70 anos. Tem mais que o dobro do que tinha quando o conheci. Tem havido homenagens não somente ao grande repentista que é, mas também ao líder combativo, sem papas na língua, reivindicador, que trabalhou muito para que tanto a sociedade quanto o cantador vissem com olhos melhores o próprio cantador. Amigo exigente com todos e consigo mesmo. E o verso, como se sabe, uma navalha.

Naquele dia em que cantarolou Elomar, Ivanildo disse: “Esse livro é pra você. Me deram na viagem, eu achei muito maluco e concluí que o destinatário ideal era você.”  E pôs na minha mão a primeira edição do “Catatau” de Paulo Leminski, a mesma que conservo ainda hoje, quase aos pedaços mas completa. Portanto, se tantas outras coisas eu não devesse ao meu mestre Ivanildo eu já deveria Leminski e Elomar, pra começo de conversa.



sábado, 10 de outubro de 2015

3942) Frankenstein pirateado (11.10.2015)




(ilustração: Bleu Turrell)


Um dos pontos de discórdia irremediável entre a Religião e a Ciência é a questão da criação. A religião afirma que Deus é o responsável por tudo que se cria no mundo, e a ciência afirma que o homem não somente pode, como também deve criar coisas novas. 

A religião quer manter sua jurisdição sobre tudo que acontece, inclusive sobre as escrituras sagradas. Para os cristãos, a Bíblia não foi escrita pelos escribas, profetas e evangelistas, e sim pelo Espírito Santo. Para os muçulmanos, o Corão não é um objeto, é um dos atributos de Deus, assim como a sua onisciência e sua misericórdia.

Quando no romance de Mary Shelley o doutor Frankenstein criou a vida em laboratório, estava incorrendo no maior dos sacrilégios, o de assumir para si um direito que era apenas de Deus. 

Somente Deus podia criar a vida; ao criá-la, Frankenstein estava pirateando a criação “na garagem de casa”, gerando um produto para o qual a Divindade tinha monopólio de fabricação.

Há um texto de Martinès de Pasqually (1727-1774) que toca nessa questão, em seu Tratado da Reintegração. Diz ele: 

“Para procriar a sua semelhança corporal, tu não tens recurso a outros princípios senão aqueles das essências espirituosas que te são inerentes; e se quiseres, por iniciativa tua, empregar princípios opostos a tua substância de ação e de operação espiritual divina e temporal, disto não resultará a reprodução, ou, se isto acontecer, ela terá ocorrido sem participação divina, e será colocada entre as fileiras dos brutos; será mesmo considerada como um ser sobrenatural, e causará repugnância a todos os habitantes da natureza temporal.”

De acordo com esta ótica, a monstruosidade da criação de Frankenstein não reside no corpo bizarro, mas na ausência de alma, pois não foi criado pela Divindade. 

É curioso que esse debate se dê nos mesmos termos com que hoje em dia discutimos propriedade industrial, pirataria, etc.  O monstro de Frankenstein é um produto sem alma, ou seja, sem o código-de-barras ou o ISBN ou o selo-do-IPI ou qualquer outra formalidade atestando que aquele produto foi feito por quem tem a autorização exclusiva de fabricação.

Frankenstein retrata a Revolução Industrial e a ascensão dos estados laicos, onde não cabe mais à igreja determinar o que pode ou não ser feito. Seu clima tenebroso e pessimista tem a ver com os medos de uma época ainda tateando os limites do sacrilégio e da própria liberdade. 

O monstro de Frankenstein é o precursor do uísque fabricado na banheira durante a Lei Seca, do livro impresso e vendido sem autorização da editora, do CD ou DVD da gravadora ripado dentro de casa, da bolsa Vuitton comprada na Rua da Carioca.