sexta-feira, 28 de agosto de 2015
3905) Contracapa de gif (29.8.2015)
(ilustração: Marcelo Grassmann)
& é mais fácil esconder um incêndio da vizinhança do que uma doença da família & minha cabeça é um jogo de basquete onde a todo instante uma das duas opções de ação passa à frente do placar & o verdadeiro pintor está somente ajudando a tinta a dizer alguma coisa & uma bússola não dá opinião nem emite juízos de valor & a ciência admite, consternada, que qualquer polvo é mais inteligente do que qualquer povo & suponhamos que alguém lhe oferecesse um dia no paraíso e outro no inferno, alternadamente? & um dia inventaremos plantas de plástico capazes de brotar e de crescer sozinhas & tem noites que eu durmo entre almofadas de pedra e lençóis de lixa & um navio olhando lá de longe o porto de uma cidade em quarentena & como era bom se existisse um botão-de-ligar-e-desligar para cada coisa & eles compram arte popular mas se o artista lhes batesse à porta não lhe ofereceriam sequer um café com pão & um livro fechado é uma moeda girando, esperando que alguém o leia para tombar e mostrar o que é & se é para rejeitar o Halloween vamos mandar embora junto o Natal & tem horas em que tudo parece um carnaval de cegos, uma debandada de sonâmbulos & quem espera encontrar a cadeira à sua espera na volta não entende nem de voltas nem de cadeiras & se o chão é enladeirado um banco de praça tem que ser torto para poder ficar reto & é bom não confundir um mero crepúsculo individual com o fim-do-mundo coletivo & a explosão dormindo na granada e acordando de mau humor & às vezes é mais útil ser destruidor de clichês do que ser formador de opinião & quando o diretor diz “luz, câmera, ação” todo planejamento vai pro espaço e o mundo recomeça a andar por si & os objetos são muito fiéis a si mesmos quando deixados quietos & quando o corpo começa a doer assim do-nada é hora de cuidar da alma & na fila dos livros para leitura a vez é sempre de quem chegou por último & existem fãs que são mais fãs de sua atividade-de-fã do que do artista que dizem admirar & aqueles dias em que uma canção antiga começa a rodar em loop na cabeça da gente como um besouro tentando atravessar o vidro da janela & existem palavras-paletó que têm sinônimos perfeitamente camisa-esporte & o mundo é uma torneira aberta, o cérebro da gente a panela cheia & como se fosse um barbeador elétrico querendo depilar um urso enfurecido & a partitura preserva o esqueleto da música, o artista fornece carne e sangue na hora da execução & o futebol está voltando a ser o esporte-para-os-ricos que era quando começou & só é amor ou ódio quando é idéia fixa, insônia, exaltação sem propósito, repetição obstinada &
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
3904) Neo Roman (28.8.2015)
Num texto antigo (“A Defence of Detective Stories”, 1902), G. K. Chesterton defende a teoria de que na vida urbana existe toda uma poética e todo um romantismo, não no sentido amoroso, mas no sentido de um mundo movido mais pela imaginação e o desejo do que pela observação e raciocínio. “A poesia da vida moderna”, como ele a chama, tem a ver, p. ex., com o olhar urbano, meio cínico e meio melodramático de Baudelaire sobre Paris.
Diz GKC: “Essa forma de perceber a poesia que há em Londres
não é pouca coisa. Uma cidade propriamente dita é mais poética do que o campo,
porque, enquanto a Natureza é um caos de forças não-conscientes, a cidade é o
caos das que o são”. A argumentação dele
é longa e variada; ilustra e reafirma essa visão. Ela já foi expressa sob a
inequação de que o civilizado é superior ao primitivo, ou de que a capital é
mais moderna que o interior; mas Chesterton sugere uma idéia melhor, do ponto
de vista literário: a de que o mapa urbano é mais cheio de maravilhas, terrores
e mistérios do que a vida entre as hordas primitivas.
Ele cita Sherlock Holmes, para quem o homem urbano vive um
“romance do detalhe” onde cada telha de um teto tem um sinal característico,
está coberta de informação, como se tivesse sido rabiscada com cálculos, de
cima a baixo. A vida urbana é concentrada (milhões de pessoas), variada
(classes, ofícios, etnias, ideologias, etc.) e sob pressão. O resultado é o
romance de mistério, de aventura, de antecipação, de horror, de lição de
abismo.
Diz ele: “A civilização é a mais sensacional das arrancadas
e a mais romântica rebelião. (...) Quando num romance policial o detetive
enfrenta sozinho, com um destemor que beira o cabotinismo, os punhos e os
punhais de uma corja de assaltantes, isso decerto nos ajuda a relembrar que é o
agente da justiça social que constitui a figura mais original e poética,
enquanto os gatunos e os salteadores não passam de plácidos conservadores do
velho cosmos, satisfeitos com a respeitabilidade imemorial dos lobos e dos
gorilas.”
3903) O dia da Abolição (27.8.2015)
(A Princesa Isabel; no destaque, Machado de Assis)
Em 1888, dias antes da assinatura da Lei Áurea, o pai de Lima Barreto, que era funcionário público, chegou em casa e disse ao filho: “A lei da Abolição vai passar no dia dos teus anos.”
O que de fato aconteceu (Lima nascera em 13 de maio de 1881). O escritor estava na multidão diante do Paço Imperial, que aos seus olhos tinha a altura de um “sky-scraper” (ainda não tínhamos inventado o termo “arranha-céu”). Viu falar um homem, muito aplaudido, mas não tem certeza se era José do Patrocínio.
Diz ele:
Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com o lenço, vivas... Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação.
Ele lembra também a missa campal celebrada no Campo de São Cristóvão, quando então viu a princesa imperial mais de perto. Ela lhe pareceu “loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado”. Recentemente circulou nas redes sociais uma foto dessa comemoração em São Cristóvão, onde a princesa aparece cercada de autoridades, e muita gente viu num dos homens à sua volta o rosto de Machado de Assis.
É interessante ver as impressões de um dos nossos primeiros grandes escritores negros sobre este dia. Lima as escreveu num artigo de 1911 (republicado em Um Longo Sonho do Futuro, Graphia, 1993), e diz, com certa candura:
Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.
Ele lembra a alegria da criançada no colégio em que estudava, à Rua do Resende:
Com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia. Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: Vou dizer a papai que não quero mais voltar ao colégio. Não somos todos livres?
terça-feira, 25 de agosto de 2015
3902) Traduzir Perec (26.8.2015)
Vão aqui algumas notas sobre condições especiais da tradução literária. Em 1969, Georges Perec publicou La Disparition, seu famoso romance onde a letra “E” não aparece nem uma vez. O desaparecimento do E é ilustrado pelo desaparecimento do protagonista, Anton Voyl (alusão a “voyelle”, vogal), e de tudo que se refere à quinta letra do alfabeto.
Em 1995, Gilbert Adair publicou a tradução em inglês (A
Void). O jornal Rascunho de Curitiba publicou em seu número de agosto uma
tradução de Vinícius Gonçalves Carneiro para o primeiro capítulo do livro, que
intitulou O Sumiço. Abaixo, o texto
do primeiro parágrafo, nas três versões.
Original: “Anton Voyl n’arrivait pas à dormir. Il alluma.
Son Jaz marquait minuit vingt. Il poussa um profound soupir, s’assit dans son
lit, s’appuyant sur son polochon. Il prit un roman, il l’ouvrit, il lut; mais
il n’y saisissait qu’un imbroglio confus, il butait à tout instant sur un mot
dont il ignorait la signification”.
Gilbert
Adair: “Incurably insomniac, Anton Vowl turns on a light. According to his
watch it’s only 12:20. With a loud and languorous sigh Vowl sits up, stuffs a
pillow at his back, draws his quilt up around his chin, picks up his whodunit
and idly scans a paragraph or two; but, judging its plot impossibly difficult
to follow in his condition, its vocabulary too whimsically multisyllabic for
comfort, throws it away in disgust”.
Vinícius Gonçalves Carneiro: “Insone, Tônio Voguel, com um
toque no interruptor, enche de luz o dormitório. No relógio de Bolso de
Zurique: cinco e quinze. Depois dum profundo suspiro, ergue-se do leito e
estende-se sobre um coxim. Escolhe um livro, percorre, lê, só compreendendo um
imbróglio confuso, sempre colidindo num termo desconhecido.”
VGC optou na versão brasileira por fazer desaparecer o “A”,
fiel à intenção do original, que é omitir a letra mais frequente no idioma.
Visto que o livro de Perec se organiza inteiramente em torno dessa ausência
crucial, não há problema, por exemplo, em traduzir “minuit vingt” por “cinco e
quinze”: a hora certa é irrelevante, basta que seja plausível. O que importa
mesmo é que seja uma hora sem a letra-tabu.
3901) "As Aventuras do Flama" (25.8.2015)
("O Flama": pelo filho, Mike Deodato, e pelo pai, Deodato Borges)
Foi o primeiro super-herói paraibano. Nasceu na novela de rádio homônima transmitida todos os dias pela Rádio Borborema; eu e minha irmã Clotilde ficávamos grudados no pé do rádio para ouvir as histórias escritas por Deodato Borges e interpretadas pelo “cast de rádio-teatro da Rádio Borborema”.
Era um tempo em que praticamente todas as noites havia novelas de rádio escritas e interpretadas por artistas locais. Meu pai trabalhou na rádio alguns anos, e alguns desses atores frequentavam nossa casa.
Lembro de ter ouvido uma adaptação de As Quatro Penas Brancas, romance de aventuras passado na Legião Estrangeira.
O Flama era um herói mascarado e usando capa, fisicamente no
modelo do Batman. O rosto me sugeria uma certa semelhança com Errol Flynn, que
era uma espécie de George Clooney daquele tempo. Suas aventuras ocorriam num
ambiente que misturava elementos brasileiros e estrangeiros.
No elenco de personagens, havia Eliana, sua noiva (era um tempo em que os super-heróis tinham noivas!), o garoto Zito (uma espécie de Robin), Bolão, um rapaz meio gordo que servia de “alívio cômico” pelas suas tiradas engraçadas, o Comissário Láurence (simétrico ao Comissário Gordon, do Batman), e havia um “Raposa” que usava uma metralhadora e chamava os bandidos de “os macacos”.
No elenco de personagens, havia Eliana, sua noiva (era um tempo em que os super-heróis tinham noivas!), o garoto Zito (uma espécie de Robin), Bolão, um rapaz meio gordo que servia de “alívio cômico” pelas suas tiradas engraçadas, o Comissário Láurence (simétrico ao Comissário Gordon, do Batman), e havia um “Raposa” que usava uma metralhadora e chamava os bandidos de “os macacos”.
A novela foi patrocinada pelos Drops Dulcora (“quadradinhos,
embrulhadinhos um a um!”). Criou um Clube do Agente Secreto, com carteirinha e
tudo; e sorteava fotos do Flama e Zito, mascarados, de arma em punho, em
contraluz, fotos feitas em estúdio. Era grande a audiência.
O Flama (tal como o Dick Peter, de Jeronymo Monteiro) tanto enfrentava assaltantes de bancos quanto “monstros de ferro” que invadiam a cidade.
O Flama (tal como o Dick Peter, de Jeronymo Monteiro) tanto enfrentava assaltantes de bancos quanto “monstros de ferro” que invadiam a cidade.
O sucesso foi tanto que Deodato lançou em março de 1963 a
revista em quadrinhos, escrita e desenhada por ele. A esta altura eu, já com
12-pra-13 anos, não me interessei tanto, não colecionei, afinal já lia Conan
Doyle e Julio Verne. Mas o sucesso foi grande!
Agora, a Funesc (Fundação Espaço Cultural, de João Pessoa) lançou uma edição fac-símile do número 1 da revista, com uma HQ (“O Caso do Dragão Vermelho”), um conto (“Rapto!”) e algumas seções de piadas, curiosidades, sonetos.
Agora, a Funesc (Fundação Espaço Cultural, de João Pessoa) lançou uma edição fac-símile do número 1 da revista, com uma HQ (“O Caso do Dragão Vermelho”), um conto (“Rapto!”) e algumas seções de piadas, curiosidades, sonetos.
Deodato faleceu ano passado (2014). Foi um entusiasta da cultura pop, como Jeronymo Monteiro, Rubens Francisco Lucchetti, Péricles Leal e outros pioneiros da literatura de gênero (policial / FC / terror / fantasia) que temperaram no fogo do medo os meninos e as meninas da minha geração.
sábado, 22 de agosto de 2015
3900) Meu artigo 4.000 (23.8.2015)
Duvido que mesmo muitos fãs da literatura policial, hoje em
dia, conheçam o modesto Edward D. Hoch, autor norte-americano falecido em 2008
aos 77 anos. Escreveu poucos romances (inclusive três de ficção científica). A
maior parte de sua produção foi em forma de contos. Hoch (pronuncia-se “Rôuk”)
foi um típico escritor da ficção popular dos EUA. Às vezes somos tentados a
chamar toda essa literatura-de-gênero de “pulp fiction”, mas existe uma grande
diferença de formato e de estilo entre a pulp fiction propriamente dita (que
floresceu nas décadas de 1920-30-40) e a ficção das revistas dos anos 1950 em
diante, as chamadas revistas “digest”, de tamanho menor, com menos ênfase do
que as “pulp” no melodrama e no sensacionalismo, histórias em média mais bem
escritas e mais curtas. O modelo mais conhecido do leitor brasileiro é o
saudoso Mistério Magazine de Ellery Queen.
Um diferencial de Hoch é a variedade de detetives que criou.
Suas histórias são formulaicas, ou seja, cada uma delas repete obrigatoriamente
um certo número de efeitos e até mesmo uma estrutura fixa, onde variam os
elementos. Isto é típico da ficção popular, escrita em quantidade, e na qual
seria contraproducente ter que reinventar tudo do zero em cada nova narrativa.
As enciclopédias detetivescas listam entre 20 e 30 detetives inventados por
ele, vários com dezenas de histórias.
Meus preferidos são o Dr. Sam Hawthorne, um médico da Nova
Inglaterra que resolve crimes impossíveis (quarto fechado, etc.); Rand, um
espião inglês cuja especialidade é decifrar códigos secretos (os mais
implausívelmente barrocos!) usados por espiões inimigos; e Nick Velvet, um
ladrão profissional que se especializa em roubar para seus clientes objetos
aparentemente sem valor ou sem motivo aparente (a água de uma piscina, p. ex.).
Hoch é considerado o contista mais prolífico do mundo
literário, com cerca de 940 contos publicados. Em maio de 1973 ele iniciou uma
série que dificilmente será igualada: todos os meses uma nova história sua
apareceu na edição norte-americana do Mistério Magazine de Ellery Queen, e
isto se manteve por 34 anos ininterruptos.
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
3899) Drummond e a FC (22.8.2015)
Em seu livro Lição de Coisas (1962) Carlos Drummond de Andrade incluiu um poema curto cujo título me atraiu desde o primeiro olhar: “Science Fiction”. Assim mesmo, em inglês, sintoma de uma época em que a assimilação de certas palavras ainda estava incompleta, e ainda se dizia “goal-keeper”, “whisky”, etc. O texto do poema diz:
“O marciano encontrou-me na rua / e teve medo de minha
impossibilidade humana. / Como pode existir, pensou consigo, um ser / que no
existir põe tamanha anulação de existência? // Afastou-se o marciano, e
persegui-o. / Precisava dele como de um testemunho. / Mas, recusando o
colóquio, desintegrou-se / no ar constelado de problemas. // E fiquei só em
mim, de mim ausente.”
O poema surgiu num momento em que a FC estava presente na
imprensa e na cultura brasileira em geral, através das edições de Gumercindo R.
Dórea (Editora GRD), que vinha publicando obras de FC de Dinah Silveira de
Queiroz, Fausto Cunha, Rubens Teixeira Scavone e outros, além da primeira Antologia Brasileira de Ficção Científica (1961).
O texto de Drummond, no entanto, sempre me lembrou outro
conto: “Encontro Noturno” de Ray Bradbury, incluído na antologia Maravilhas da
Ficção Científica, da Editora Cultrix (1958), organizada por Fernando Correia
da Silva, com seleção de Wilma Pupo Nogueira Brito e introdução de Mário da
Silva Brito.
No conto de Bradbury (na verdade, uma das suas “Crônicas
Marcianas” de 1950) um terrestre e um marciano se encontram por acaso no alto
de uma colina de Marte, começam a conversar, e descobrem que estão num ponto de
cruzamento entre momentos diferentes no tempo. O marciano vê no vale lá embaixo
sua civilização viva e florescente; o terrestre vê ruínas desertas. Depois de
um diálogo cheio de contradições, os dois se separam, perplexos, e cada um vai
cuidar de sua vida.
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
3898) Tem mas acabou (21.8.2015)
Quem nunca passou por isso num restaurante, num café, ou
mesmo em outros tipos de loja?
Você
senta, pede o cardápio, vai passando os olhos, aí descobre algo como:
“Sanduíche Montparnasse: baguete crocante com gergelim, fiambre, queijo minas,
bacon pulverizado, gomos de tangerina, molho mostarda-e-mel”.
Você se anima.
Aquilo pode até ser indigesto mas pelo menos é diferente; você chama o garçom e
pede. Ele olha o cardápio e diz: “Esse aí tem, mas acabou”.
Todo mundo se irrita com essa resposta, mas ela me parece
totalmente lógica. O cara está dizendo que sim, de fato, o sanduíche faz parte
das atrações da casa. É produzido regularmente ali, recebe pedidos, vende
unidades. Ou seja: tem. Acontece que naquele momento acabou, em geral porque se
esgotaram alguns ingredientes principais.
O formato da resposta parece
contraditório, mas ela está dizendo apenas: “De fato temos esse sanduíche no
cardápio, pode voltar a pedir noutro dia; mas agora não estamos servindo porque
acabou o molho de açafrão-pimenta (ou seja lá o que tiver acabado)”.
Se o garçom disser “Não tem” (advertem os especialistas em
vendas), está subliminarmente induzindo na mente do freguês a noção de que o
produto não tem MESMO, não está à venda, não vale a pena pedir de novo. É o
anti-marketing.
É preciso transmitir ao cliente uma mensagem positiva que o
console da frustração momentânea. É preciso fazer com que o cliente não bata em
retirada, pelo contrário: volte daí a alguns dias, convencido de que ocorreu
apenas uma turbulência momentânea mas ele vive num Universo onde as coisas
fazem sentido, e coisas que pareciam ter acabado para sempre acabam é voltando.
O “tem mas acabou” é uma fórmula de teimosia positiva. É o
mantra cheio de estoicismo de alguém que mesmo derrotado não dá o braço a
torcer, de alguém mantendo viva a chama da esperança de que num dia mais
favorável aquele cliente e o seu sonhado sanduíche possam finalmente se
encontrar numa lua-de-mel de dentadas, salivas e degustações.
É um gesto de
altivez na derrota, é como o artilheiro de um time que, atravessando um jejum
de meses sem marcar um gol, ainda é capaz de dizer no fim de mais um jogo, ao
microfone dos repórteres de campo: “Não teve gol, mas domingo vai ter jogo de
novo, quem sabe se o gol não vai sair?”.
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
3897) Nabokov e a tradução (20.8.2015)
Num dos seus primeiros artigos para The New Republic, onde
colaborou por muito tempo (“The Art of Translation” - http://tinyurl.com/lcgosud), Vladimir
Nabokov listou os três principais equívocos cometidos por tradutores, e os três
tipos principais de tradutor. Ele próprio se apressou a dizer que cada erro não
correspondia a cada tipo, mas se distribuíam aleatoriamente entre eles.
Para o autor de Lolita, o primeiro erro, e menor,
corresponde aos “erros óbvios devidos à ignorância e ao conhecimento
equivocado”. São p. ex. os tradicionais “falsos amigos” e outras semelhanças
ilusórias, que nos fazem traduzir “eventually” por “eventualmente” ou “push”
por “puxe”. Um erro de natureza técnica, que o tradutor se apressaria a
corrigir se ficasse sabendo. Em segundo lugar, diz ele, vem o caso do tradutor
que “intencionalmente pula palavras ou trechos que não quer se dar o trabalho
de entender, ou que poderiam parecer obscuros ou obscenos para leitores
vagamente imaginados”. O terceiro caso é uma radicalização do segundo, quando
“uma obra-prima é aplastada e rebatida num tal formato, e vilmente embelezada
de forma a se enquadrar de conformidade aos valores e aos preconceitos de um
público qualquer”. São erros cuja gravidade aumenta na proporção da opção
consciente do tradutor, da sua intenção de errar.
E os tipos de tradutores? Diz ele que são: “o erudito
ansioso para fazer com que o mundo aprecie as obras de um gênio obscuro tanto
quanto ele próprio aprecia; o mercenário bem intencionado; e o escritor
profissional relaxando na companhia de um confrade estrangeiro”. Nabokov parece temer o terceiro tipo mais do
que os outros dois, pois adverte: “quanto maior o seu talento individual, mais
provável que ele acabe submergindo a obra original sob a cascata cintilante do
seu próprio estilo. Ao invés de vestir a pele do autor verdadeiro, ele obriga o
autor vestir a pele dele próprio”.
3896) O leão sorridente (19.8.2015)
Por volta de 1731, o rei Frederico da Suécia recebeu um presente enviado pelo Rei de Argel: um leão, coisa rara na Suécia, algo que pouquíssimos habitantes do país nórdico tinham visto a não ser nas ilustrações pouco confiáveis da época, nos brasões heráldicos, nas pinturas.
Presentear animais selvagens era um costume dos nobres daquele tempo. Podemos lembrar do romance de José Saramago,
No caso do leão, o rei sueco se afeiçoou ao animal e o
manteve em cativeiro e em exibição enquanto o animal durou. Após sua morte, decidiu
que ele continuaria sendo visto pelo público, e enviou seus restos mortais para
um taxidermista, a quem caberia empalhar o animal. Só que o artista não
conhecia leões, e recebeu apenas os ossos e a pele do bicho.
O resultado foi uma criatura que não parece leão nem aqui
nem em Estocolmo; lembra mais um cachorro sorridente, com dentes humanos e
língua de fora. Sua imagem tem sido usada satiricamente na Internet (ver aqui: http://tinyurl.com/p5byrym).
O caso do Leão do Castelo de Gripsholm, como é chamado, lembra outro presente real famoso, o rinoceronte que Dom Manuel I de Portugal recebeu e que foi imortalizado numa célebre gravura de Albrecht Durer. É um animal mais ornamental do que zoológico, sobre o qual já escrevi aqui: http://tinyurl.com/pu8hj4a).
O caso do Leão do Castelo de Gripsholm, como é chamado, lembra outro presente real famoso, o rinoceronte que Dom Manuel I de Portugal recebeu e que foi imortalizado numa célebre gravura de Albrecht Durer. É um animal mais ornamental do que zoológico, sobre o qual já escrevi aqui: http://tinyurl.com/pu8hj4a).
Não se trata apenas de que os artistas envolvidos são incompetentes ou maus observadores. Eu diria, pra resumir, que o contato com o Extraordinário estimula mais a imaginação do que a observação. Ao enxergar uma criatura que não corresponde aos seus parâmetros, ao seu repertório de referências, o artista interpreta detalhes erradamente; faz associações de idéias que não se aplicam ao caso; preenche lacunas coma primeira coisa ou a coisa mais vistosa) que lhe vem à mente.
Sua imaginação é despertada por aquele objeto exótico ou bizarro que parece menos uma coisa real do que um produto da imaginação de outro artista.
Neles convivem, num mesmo plano, a realidade observada e os complementos arbitrariamente fantasiados pelo artista.
É a mesma receita da ficção científica – só que neste caso a mistura é consciente, proposital e faz parte de uma convenção cultural da época. São objetos literários estimuladores da imaginação, mesmo que aparentados da observação científica.
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