sexta-feira, 27 de março de 2015

3773) "O Anjo Exterminador" (28.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão deste sábado, haverá debate comigo e o prof. Sérgio Almeida.)

Para hoje está programado O Anjo Exterminador (“El Ángel Exterminador”, 1963) de Luis Buñuel, realizado no México logo depois que Buñuel, tendo passado um período de relativa obscuridade, ganhou prêmios internacionais, provocou escândalo com Viridiana (1961) e voltou a chamar a atenção da crítica. Em O Anjo..., o milionário Nobile traz para sua mansão um grupo de amigos para um jantar, após a apresentação de uma ópera. Acabado o jantar, eles descobrem que não conseguem sair do salão principal da casa, embora as portas estejam abertas. Uma espécie de bloqueio mental os impede de cruzá-las, e do mesmo modo as pessoas de fora não conseguem entrar na casa. Há uma barreira invisível, mas não é física, e sim mental.

Buñuel mostra a lenta bestialização daquelas pessoas ricas e sofisticadas (seriam chamadas hoje de “coxinhas”) quando começam a sentir falta de comida, água, sanitários. Choram, desesperam-se, trocam socos e acusações, vão aos poucos regredindo a um estágio animalesco. Trancafiados num salão aberto, em breve não se distinguem mais de um grupo de moradores de rua, sujos e famintos. Alguns começam a morrer, e os cadáveres são escondidos em armários.

Assim como o personagem de Feitiço do Tempo de Harold Ramis fica preso no trecho de tempo, os personagens de Buñuel ficam presos num espaço, sem nenhuma explicação. O interesse do diretor é mostrar o processo de deterioração física e moral de todos. Buñuel (tratei disto em meu livro O Anjo Exterminador, Ed. Rocco, 2002) traz para seu cinema influências do movimento surrealista francês dos anos 1920, do qual fez parte; da literatura de folhetim européia; do romance gótico de terror dos séculos 18 e 19.  Seu individualismo feroz o fez investir contra a Igreja, o Estado, a Burguesia, contra tudo que, a seu ver, limitava as liberdades do indivíduo.

É um filme fantástico que não sugere nenhuma explicação racional, embora os personagens comentem sem parar o que aconteceu, proponham hipóteses, tentem descobrir uma maneira de sair dali. Buñuel desdenhava explicações: com o Surrealismo ele aprendeu a importância do impacto direto das imagens absurdas e das situações insólitas, como elemento capaz de desestruturar nosso raciocínio, descarrilar o trajeto seguro das explicações preconcebidas, da lógica, do racionalismo.



quinta-feira, 26 de março de 2015

3772) A perna artificial (27.3.2015)



Era uma vez um cara que morava perto da linha do trem, e costumava ficar às vezes sentado no chão, perto dos trilhos, pensando na vida. Um dia ele estava distraído, com a perna esquerda em cima dos trilhos, e o trem passou e arrancou a perna dele.  Grande comoção na família, que se mobilizou, fez lista de doações, livro-de-ouro, o escambau, e levantou um milhão de cruzeiros (a história é antiga) para poder dar a ele uma caríssima perna artificial. Foi feito, e a vida voltou à normalidade. Uma tarde, ele estava mais uma vez sentado junto da linha do trem, desta vez com as duas pernas em cima dos trilhos. À distância, o trem apitou para avisar que se aproximava. Ouvindo o apito, ele deixou a perna de carne e osso em cima do trilho e afastou a outra, comentando: “Esta aqui me custou um milhão de cruzeiros!”.

Esta é uma das piadas mais antigas que me lembro de ter escutado. Marcou minha infância, e me fazia rir muito. Quando comecei, já por volta dos vinte-e-tantos anos, a refletir sobre o humor e os processos que ele utiliza, percebi que cada vez que pensava nela surgiram novas associações de idéias. A mais importante, acho, é que ela é uma metáfora terrível da nossa época. A gente tende a valorizar o que conquistou com esforço próprio, não o que trouxe de nascença. A gente valoriza mais a tecnologia do que a biologia, mais a civilização do que a natureza. (Um amigo já me disse: “eu cuido melhor do meu computador do que de mim”.) E com isso corre o risco de ficar sem as duas. É uma boa fábula moral para este Brasil que, segundo Glauber Rocha, “pode beber água de coco de graça, mas prefere pagar por uma Coca-Cola”.

Hoje, o que mais me chama a atenção é o mecanismo tragédia-grega de uma historieta assim. Tudo é fado, tudo é destino, e não se vê um dedo sequer de livre arbítrio nesse personagem aparentemente tão bem posto em si mesmo. Sentar com as pernas em cima de uma linha do trem é meio caminho andado para perdê-las. E quando isto acontece, pensam que o cara ficou com um trauma, uma repulsa pelas coisas ferroviárias? Não, ele continua a sentar no mesmo lugar, com as duas pernas ali, fazendo por conta própria uma reconstituição ritual do trauma, quase que implorando aos Deuses do Plot para que aquele fato espantoso se repita. Anedota não é realismo, é fabulação. Tentar interpretá-la através de motivações emocionais realistas é perdido. Há uma certa literatura (não toda, é claro) que também funciona assim. Críticos desperdiçam hectares de papel cobrando verossimilhança de personagens que são meras funções de uma história que precisa acontecer de uma maneira tão implacável quanto a aproximação de um trem.




quarta-feira, 25 de março de 2015

3771) "O Terceiro Policial" (26.3.2015)




Flann O’Brien (não era este seu verdadeiro nome) é um desses escritores fora-de-esquadro cujas obras se recusam tanto ao sucesso popular quanto ao desaparecimento. Ficam gravadas na memória de quem as leu no momento certo, e a cada geração ressurgem diante de um novo público leitor.  


The Third Policeman foi escrito nos anos 1940, recusado pelos editores, e publicado apenas em 1967, logo após a morte do autor.  É uma espécie de romance policial absurdista, numa Irlanda rural onde todo mundo se locomove de bicicleta, inclusive os policiais.

Há um crime cometido logo no início que lança o narrador numa fuga, ao longo da qual ele vai dar numa delegacia de polícia que parece pertencer a um mundo de dimensões diferentes. 

“Ela dava a impressão de ter sido pintada em cima de um outdoor, e muito mal pintada aliás. Parecia totalmente falsa e inconvincente. (...) Eu estava vendo a frente e a traseira do prédio ao mesmo tempo, quando me aproximava dele pela lateral.”  

O narrador, que não tem nome, passa então por aventuras notáveis. 

Desce a um subterrâneo cyberpunk cheio de encanamentos, tubulações de aço, medidores, mecanismos gigantescos. 

Ouve falar de uma teoria atômica segundo a qual um homem e sua bicicleta são seres híbridos, pois cada um está impregnado de átomos do outro, devido ao longo uso, tanto que em alguns crimes de morte é mais sensato prender e executar a bicicleta. 

Toma conhecimento de cores que não podem ser percebidas pelos olhos, e de um lugar onde o tempo não corre e a barba não cresce. 

Ouve a história do balão que subiu à estratosfera com um homem, e desceu vazio. 

Discute as teorias do filósofo De Selby, como a de que a noite não passa de um acúmulo de pó preto largado pelos vulcões ao longo do dia, e que escurece o mundo quando passa de um certo limite.

O absurdismo cara-de-pau de O’Brien pode ser encontrado em muitos dos estilistas excêntricos da FC, como R. A. Lafferty, Avram Davidson, Damon Knight (Humpty Dumpty, de 1996, lembra muito este livro), além de autores que não são da FC mas tiraram um fino nela, como Alfred Jarry, Georges Perec, Raymond Queneau, além de dramaturgos do absurdo como Ionesco e Samuel Beckett. 

É um livro incrustado de teorias científicas mirabolantes, num clima de filme de animação, com pequenos detalhes realistas de total verossimilhança. 

Entre nós, O’Brien poderia ser apreciado pelos leitores de Campos de Carvalho ou Victor Giudice, dois praticantes dessa literatura que caminha sobre uma linha de fronteira, um pé no realismo da vida material, um pé no absurdo das teorias cósmicas.










3770) "Gimme Shelter" (25.3.2015)



O ano era 1969, e Merry Clayton era uma cantora profissional de Los Angeles que fazia vocais em estúdio e na banda de Ray Charles. Estava grávida, era cerca de meia-noite e ela já estava deitada com o marido quando o telefone tocou. 

Era um produtor pedindo para ela dar um pulo num estúdio e fazer um vocal, coisa rápida. Ela reclamou: “Cara, já estou deitada pra dormir, não vou mais sair pra trabalhar uma hora dessas.”  O produtor insistiu, disse que seria bom pra carreira dela, e pagava bem. 

O marido pegou o telefone para discutir com ele, falou, ouviu, ouviu, aí desligou e disse: “Merry, é melhor você ir. Vai ser bom pra sua carreira”.

Ela vestiu uma capa e, de bobs no cabelo, foi direto para o estúdio, onde foi recebida pelos Rolling Stones, que estavam gravando “Gimme Shelter”. 

Quem conhece bem a música deve lembrar aquela voz feminina rasgada, lancinante, no refrão: 

"War, children, it’s just a shot away, it’s just a shot away... 
Rape, murder, it’s just a shot away, it’s just a shot away...”  

É uma canção dark, falando da guerra, da brutalidade da época, da violência onipresente.  Sentada num banquinho (“minha barriga estava muito pesada”), ela gravou três takes do vocal, onde sua voz dobra com a de Mick Jagger, e foi pra casa.

Acho difícil traduzir esse refrão. “It’s just a shot away” significa mais ou menos “está a apenas um tiro de distância”. Seria algo como: “Pra guerra, rapaziada, só falta um tiro”. Para o estupro, para o assassinato, só falta um tiro. Só falta “um tantinho assim”. 

Os Stones amenizam a mensagem no final, dizendo: “Love, sister, it’s just a kiss away”: “para o amor, minha irmã, só falta um beijo”. Concessão aos tempos do “Paz & Amor”? Pode ser, mas “Gimme Shelter”, uma das canções mais fortes da banda, não ficou marcada como uma canção de alto astral, e sim como uma canção de “os tempos estão sombrios”.  Como o “Cálice” de Chico & Milton, e tantas outras dos nossos tempos de ditadura.

Aqui neste link (http://tinyurl.com/ldz24jj) é possível ouvir a música, a faixa somente com a voz de Merry, e uma entrevista de Jagger onde ele lembra o episódio. 

Foi bom pra carreira de Merry? Difícil dizer, mas tornou-se a performance mais famosa dela. A história, contudo, não teve propriamente um final feliz. A hora tardia e o esforço desgastaram Merry Clayton, e pouco depois da gravação ela perdeu o bebê. 

“Foi um período muito sombrio para mim,” disse ela, “mas Deus me deu forças para superar. Dei a volta por cima. Encarei isso como parte da vida, do amor, da energia, e desviei noutra direção, de modo que hoje não me incomoda cantar ‘Gimme Shelter’. A vida já é muito curta e eu não posso viver no passado.”







segunda-feira, 23 de março de 2015

3769) "Maldito Sertão" (24.3.2015)



Tem crescido o número de livros de contos baseados nas lendas populares, no folclore, nas histórias de assombrações e de monstros das diversas regiões do Brasil. Quando publiquei no ano passado meu livro de contos Sete Monstros Brasileiros (Casa da Palavra, 2014) , citei alguns amigos que estão trabalhando esse tipo de literatura, como Simone Saueressig, Christopher Kastensmidt e Felipe Castilho. Mitos e lendas populares têm sido sempre adaptados para livros infantis, tomando inclusive uma feição paradidática, mas o fenômeno mais recente é a produção de textos nessa linha para leitores adultos, fazendo uma interface com a literatura de terror tradicional.

Outro lançamento recente é Maldito Sertão (Natal, Editora Jovens Escribas, 2012, 2ª. Edição) de Márcio Benjamin. É uma coletânea de doze contos curtos onde surgem os “habituais suspeitos” das nossas lendas de terror e assombração: o lobisomem, o papa-figo, a porca dos sete leitões, a Comadre Fulozinha, a mula sem cabeça, etc.  As histórias de Márcio Benjamin têm narrativa ágil, com parágrafos curtos. Em sua maioria descrevem uma situação humana (uma casa, uma família, um grupo de pessoas) onde a invasão do sobrenatural se dá tanto por acaso quanto por uma espécie de maldição tipo “estava escrito”, algo que provavelmente aquelas pessoas nunca poderiam evitar.  Os desfechos são misteriosos e geralmente violentos.

Um aspecto que me agradou foi a linguagem nordestina coloquial empregada pelo autor, que reforça a textura oral desses contos. “Saiu desembestada”, “arrudiando a casa”, “velho como a fome”, “aperreados com a violência”, “buchos cheios de arribaçãs fritas”, “uma zuada seca”, “o primeiro bufete que levei, de uma ruma de outros”, “eu moro aqui faz é tempo”, “arrumadinhas como bonecas de feira” são algumas expressões que dão ao livro essa oralidade sertaneja, esse resíduo de um modo de falar e de pensar que serve de caldo fermentador dessas histórias. Sem forçar a barra da oralidade (o português é simples mas correto, sem transcrições fonéticas), essa maneira de escrever dá credibilidade literária a essas pequenas fábulas de crueldade, pecado, mistério, medo, ambição.

São histórias que não vêm dos livros, embora Câmara Cascudo e outros as tenham registrado.  Vêm da memória de infância, das reuniões na mesa da cozinha, no alpendre da casa da fazenda, em volta de uma fogueira ou de um candeeiro que recorta de luzes e sombras a imaginação de um grupo de crianças de olhos grudados na pessoa que conta os malassombros, com largos gestos de ênfase multiplicados e ampliados pela chama.




sábado, 21 de março de 2015

3768) Minha outra vida (22.3.2015)



Às vezes eu sonho acordado que sou um cara bem diferente de mim mesmo, vivendo uma vida que não parece nem um pouco com a minha. 

É uma das minhas formas de terapia inexplicável. Inexplicável porque se fosse uma fantasia de riqueza, orgias, farras, viagens pelo mundo, boemia, glória literária, tudo isso seria muito óbvio: estou sonhando com o que gosto e não tenho, ou tenho e queria ter em dobro. Mas não é o caso. Sonho com coisas sem graça e que não têm nada a ver comigo.

Às vezes sou um cara de 30 e poucos anos que vive sozinho numa casa minúscula. Cozinho, esquento ou peço por telefone minha comida, lavo minha roupa, faço a limpeza da casa. Minha casa tem mobília simples e pouca: poltronas, mesas, geladeira, um som na sala. Não tem uma TV, um livro, um disco sequer. Nada nas paredes além de um relógio redondo na sala e um calendário quadrado na cozinha. 

Eu acordo, tomo banho, faço a barba, visto calça, camisa, calço tênis. Desço uma escadinha interna que conduz à garagem. Entro no carro, sento, ligo a ignição e sinto com prazer aquele ronco profundo, possante, prometendo motor em ordem e tanque cheio. Saio dirigindo devagar pelas ruazinhas tranquilas.

Aonde vou? Não sei. Não é para o trabalho. Meu trabalho é alguma coisa que me faz passar semanas a fio longe dali; mas quando volto, volto para aquela casinha silenciosa, as ruas, os gramados. Parece uma cidade americana ou européia, mas pode ser uma daquelas cidades históricas mineiras, ou da serra gaúcha. 

Vou ao supermercado, ao boliche, ao cinema. Às vezes vou à noite para uma boate, bebo cerveja com alguma garota, dançamos, vamos para um quarto dos fundos.

Tenho dinheiro no Banco que daria para me manter por dois ou três anos, se parasse de trabalhar. Não tenho família nem amigos. Meus vizinhos me acenam e sorriem de longe, nunca entraram na minha casa nem eu na deles. 

À noite rego as plantas, faço pequenos consertos. Ou levo uma espreguiçadeira para o gramado do quintal, abro uma cerveja, fico sentindo a brisa, olhando as estrelas, bebendo devagar, sem pensar, sem lembrar, sem imaginar coisa alguma.

É uma vida vazia, uma vida sem alegria, sem prazer? Talvez seja, mas é uma vida que nunca tive nem terei, uma vida parecida com uma foto de revista, algo com cores mas sem som nem movimento. Uma vida que só o pensar nela me repousa, me descansa de mim mesmo. Como aquelas pessoas que para adormecer imaginam o fundo de um lago escuro, eu me imagino nessa vida sem gente, sem afetos, sem emoções, sem perigos, sem vitórias, sem projetos e sem medos, e o fato de ter esse lugar para onde ir de vez em quando chega a me repousar desta carga pesada de ser quem sou.





sexta-feira, 20 de março de 2015

3767) "Feitiço do Tempo" (21.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua da Alfândega com Rua 1º. de Março, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida, e estarei presente sempre que possível, o que não é o caso de hoje.) Comentarei aqui os filmes escolhidos, e o leitor fora do Rio pode encontrar os filmes nas locadoras e na Internet, caso se interesse.

Hoje será exibido Feitiço do Tempo (“Groundhog Day”) de Harold Ramis (1993). A premissa fantástica (há uma só) do filme é que o personagem de Bill Murray fica preso num único dia, o Dia da Marmota (“groundhog”), quando nos EUA se costuma deduzir a duração do inverno em função do comportamento de uma marmota em sua toca. Murray é Phil, um repórter de TV meio cafajeste que vai cobrir essa data folclórica numa cidadezinha, acompanhado da produtora Rita (Andie MacDowell) e sua equipe. Phil quer comer Rita, e ela não o suporta. Uma nevasca os deixa presos na cidade, sem poder sair. E quando Phil acorda no hotel, na manhã seguinte, descobre que o Dia da Marmota está se repetindo, tintim por tintim: mesmos diálogos, mesmos gestos, mesmos pequenos acidentes.

O choque inicial o desorienta, mas quando dorme de novo tudo se repete.  Phil leva algum tempo para perceber que está preso num “loop” temporal, como um disco enganchado. A premissa do roteiro de Danny Rubin não é explicada, mas, como fica clara desde logo, o espectador se concentra em ver de que maneira Phil irá reagir diante das dezenas de pequenos episódios daquele dia eternamente reprisado, que aos poucos ele começa a saber de cor.


Groundhog Day se baseia numa única premissa fantástica para desenvolver complexos padrões de repetições e variantes; uma técnica de seriados como Twilight Zone e outros. O filme tem um elenco simpático e uma narrativa bem editada (quanto mais o espectador vai se familiarizando com os fatos mais rápida ela se torna). Talvez sua virtude principal seja algo que filmes fantásticos deste tipo nem sempre fazem: ele examina todas (em termos, claro) as consequências possíveis da premissa principal, todas as possibilidades do que poderia acontecer a um personagem numa situação como aquela. Como acontece com tantos bons romances de ficção científica, os roteiristas (Ramis e Rubin) se divertem em imaginar e em sugerir ao espectador uma infinita ramificação de vidas possíveis para aquele personagem, naquele mundo em que ele é o único que já sabe o que vai acontecer mas está mais prisioneiro do que todos os outros.




3766) Coco cheio de sangue (20.3.2015)



Uma história irreal com uma base realista parece ser uma espécie de “default” do fantástico contemporâneo, de Julio Cortázar a Stephen King, e de Italo Calvino a Ray Bradbury. O chamado realismo mágico latino-americano tinha essa base realista muito forte. O problema é que para os leitores norte-americanos ou europeus a própria base realista soava exótica, era surreal, era surpreendente – o que dava ao gênero uma aura difusa e onipresente de fantasia. Mas não era essa a intenção de autores como Garcia Márquez ou Juan Rulfo, para quem era tão importante mostrar a panela de sopa fumegando no fogão quanto o fantasma do antigo dono da casa.

Inventar avalistas para autenticar a procedência de fatos fantásticos é uma tática antiga.  É como se dá com as lendas urbanas.  Ninguém diz: “Um papa-figo está sendo visto na cidade”. Diz: “Uma amiga de minha irmã viu um papa-figo na rua dela”. É preciso, num esforço de verossimilhança, atribuir a visão do fato fantástico a uma pessoa real, de existência inquestionável.

Mia Couto começa seu conto “Pranto de coqueiro” (1994) assim: “Foi evento que saiu no jornal da Nação, oficial e autenticado. O alvoroço dos coqueirais de Inhambane mereceu título e honrosas colunas. Tudo começou quando, sentado na marginal de Inhambane, meu amigo Suleimane Ibraímo partiu a casca de um coco. Pois de dentro do fruto não jorrou a habitual água-doce mas sangue. Exatamesmo: sangue, certificado e indiscutível sangue. Mas não foi o único pasmo do assunto. Do fruto brotou ainda humana voz em choros e lamentos.”

Logo nas primeiras linhas nos deparamos com um fato fantástico (o coco cheio de sangue, e de vozes), mas para preparar essa intromissão do fantástico temos uma narração informativa, citando pessoas e lugares, além de referências insistentes à imprensa, ao fato de que tudo aquilo é “oficial e autenticado”, de que o fato é “certificado e indiscutível”.  Mesmo exibindo as costumeiras invenções verbais de Mia Couto (“exatamesmo”), é um texto propositalmente convencional, que narra a ação por via indireta.

Esta é uma pequena variante de um dos artifícios mais antigos do gênero, a “história contada”, tão querida dos narradores de Henry James, Machado, Conan Doyle. Na história-moldura, um grupo de homens está reunido e um deles conta uma história inacreditável. O narrador da história-moldura, dentro da qual a história inverossímil é contada, se exime de qualquer responsabilidade, pois está apenas reproduzindo o que ouviu. Hoje, usa-se citar jornais, TV, websaites, tudo o que, sob a aparência de confiabilidade, pode servir de aval a qualquer história impossível.


quinta-feira, 19 de março de 2015

3765) Bob Dylan para um só (19.3.2015)



Imagine um superstar do rock como Bob Dylan, subindo com sua banda num palco e fazendo um show para uma platéia de – dez mil, vinte mil, cinquenta mil pessoas?  Não: de uma pessoa só. Não é delírio: estou assistindo um clip do show agora (aqui: http://en.experimentensam.com/bob-dylan) e matutando sobre o lado pitoresco do capitalismo. (Digam o que quiserem do capitalismo, mas ele é tão divertido, pelo menos pra quem tem capital, quanto um baile de carnaval no Clube Monte Líbano nos anos 1950.)

 

O show faz parte do projeto Experiment Ensam (“Experimente Só”), financiado por um grupo sueco de apostas (que deve ter dinheiro sobrando, dá pra perceber). A filosofia por trás do projeto (está tudo lá no saite) é que muitas das nossas experiências são comunais, só podem ser fruídas plenamente quando estamos acompanhados, ou quando pelo menos olhamos em redor e sabemos que outras pessoas estão sentindo aquilo que a gente sente. Então, o projeto produz situações coletivas e escolhe ou sorteia alguém para ser o único usuário durante uma noite.

 

Fredrik (um sueco fã de Dylan) diz que uma das coisas mais divertidas nos shows dele é tentar identificar as canções, e tem razão. Dylan é famoso por modificar o tom, o andamento, o ritmo, os arranjos. Já vi 4 shows dele, todos no Rio, e muitas vezes a gente só identifica a música quando ele chega ao primeiro refrão. (Tentar reconhecer pelos versos é igualmente difícil: a dicção dele é pior do que letra de médico.) “O que é isso? Será ‘Changing of the Guards’ em ritmo de reggae?”.  E esse prazer (diz Fredrik) só é possível quando se está com amigos, inclusive após o show: “Você viu o solo de gaita na música tal?...”

 

Num teatro com uma única poltrona ocupada, Dylan cantou músicas de Buddy Holly, Fats Domino, etc. – uma escolha correta. Se eu fosse fazer um show assim, ao invés de cantar os “grandes sucessos obrigatórios” ficaria mais à vontade cantando as músicas que mais gosto, e que ninguém nunca me pede. Fredrik aplaude no silêncio após a música, e a certa altura grita uma frase de incentivo que arranca risadas de Dylan e dos músicos. Diz ele, depois: “Na hora, foi uma das experiências mais intensas da minha vida; depois, no entanto, eu fico meio triste por não ter podido compartilhar com ninguém”.

 
Outros experimentos levam uma pessoa sozinha para um restaurante e depois uma boate, para um parque de diversões, para um show de comédia stand-up. É uma dessas sacadas publicitárias baseadas em idéias curiosas e muito dinheiro. (Aliás, não consegui saber quanto pagaram a Dylan pelo show, nem se ele teve a hora-e-meia de duração habitual.)


quarta-feira, 18 de março de 2015

3764) "Jimi Hendrix por ele mesmo" (18.3.2015)



Ele chegou a ser considerado, pela hiperbólica imprensa roqueira, como o maior guitarrista vivo do rock, o maior guitarrista de todos os tempos e “o homem que nunca tocou uma nota errada”.  Exagero, é claro, fórmulas sem sentido. Toda avaliação estética é qualitativa, subjetiva, impossível de quantificar, medir e organizar num ranking de pontuação.  O próprio Jimi, quando ouvia essas coisas, dava uma risada meio rouca.

O livro Jimi Hendrix por ele mesmo (Ed. Zahar, 2014, tradução de Ivan Weisz Kuck) é uma compilação de declarações de Hendrix em primeira pessoa: entrevistas (jornal, revista, TV, rádio), textos manuscritos, diários, cadernos de anotações. Os organizadores intervêm de vez em quando, com notas de poucas linhas para situar certos depoimentos no contexto de algo que estava acontecendo.

Hendrix serviu de exemplo para muita gente de como alguém podia ser um garoto-problema (fugiu de casa, foi expulso da escola) e ao mesmo tempo não ser um criminoso, não ser “do Mal”, como se diz. Pelo que ele fala, não era nada do Mal, apenas queria trabalhar com o que gostava (e só gostava de uma coisa: guitarra), usar cabelo extravagante, roupa extravagante. Quando voltou famoso a Seattle e recebeu as chaves da cidade, disse: “As únicas chaves que eu esperava ver nessa cidade eram as da cadeia”.

Talentoso e intuitivo, Hendrix não é um pensador articulado, não tem a lógica brechtiana e meio absurdista de Bob Dylan, nem o espírito grouchomarxista de John Lennon. É um rapaz que vive para a música; grande parte dos seus depoimentos é tentando explicar as dificuldades de gravação ou masterização de um disco, porque buscavam efeitos que os técnicos desconheciam. Ele, que despontou para o sucesso no Reino Unido, detestava os técnicos de estúdio dos EUA, preferia os ingleses: “Os engenheiros lá são mais criativos. Fazem coisas fantásticas, que lembram até a forma como lutaram na Segunda Guerra Mundial. É tudo muito positivo, o clima, a engenharia, a coisa toda. Lá, estar com um engenheiro é estar diante de um ser humano. É estar com alguém que está fazendo seu trabalho. Aqui na América, os engenheiros não estão nem aí para você. São tão máquinas quanto os gravadores com que trabalham. Dá pra sentir que falta o ser humano, que o estúdio só está interessado na conta, nos 123 dólares por hora”.

São comentários sobre as canções, queixas do cansaço das turnês, reclamações ou elogios quanto ao som fornecido num show. Protestos hippies de paz e amor um tanto pró-forma, de alguém que tinha uma única idéia fixa: música. Os quatro últimos anos dos 27 que viveu foram uma montanha russa que está bem captada nestes fragmentos.