Uma história irreal com uma base realista parece ser uma espécie de “default” do fantástico contemporâneo, de Julio Cortázar a Stephen King, e de Italo Calvino a Ray Bradbury. O chamado realismo mágico latino-americano tinha essa base realista muito forte. O problema é que para os leitores norte-americanos ou europeus a própria base realista soava exótica, era surreal, era surpreendente – o que dava ao gênero uma aura difusa e onipresente de fantasia. Mas não era essa a intenção de autores como Garcia Márquez ou Juan Rulfo, para quem era tão importante mostrar a panela de sopa fumegando no fogão quanto o fantasma do antigo dono da casa.
Inventar
avalistas para autenticar a procedência de fatos fantásticos é uma tática
antiga. É como se dá com as lendas
urbanas. Ninguém diz: “Um papa-figo está
sendo visto na cidade”. Diz: “Uma amiga de minha irmã viu um papa-figo na rua
dela”. É preciso, num esforço de verossimilhança, atribuir a visão do fato
fantástico a uma pessoa real, de existência inquestionável.
Mia
Couto começa seu conto “Pranto de coqueiro” (1994) assim: “Foi evento que saiu
no jornal da Nação, oficial e autenticado. O alvoroço dos coqueirais de
Inhambane mereceu título e honrosas colunas. Tudo começou quando, sentado na
marginal de Inhambane, meu amigo Suleimane Ibraímo partiu a casca de um coco.
Pois de dentro do fruto não jorrou a habitual água-doce mas sangue. Exatamesmo:
sangue, certificado e indiscutível sangue. Mas não foi o único pasmo do
assunto. Do fruto brotou ainda humana voz em choros e lamentos.”
Logo
nas primeiras linhas nos deparamos com um fato fantástico (o coco cheio de
sangue, e de vozes), mas para preparar essa intromissão do fantástico temos uma
narração informativa, citando pessoas e lugares, além de referências
insistentes à imprensa, ao fato de que tudo aquilo é “oficial e autenticado”,
de que o fato é “certificado e indiscutível”.
Mesmo exibindo as costumeiras invenções verbais de Mia Couto
(“exatamesmo”), é um texto propositalmente convencional, que narra a ação por
via indireta.
Um comentário:
Gostos bastante dessas suas análises de estrutura e construção, muito obrigado por esses recortes interessantes! :)
abraço
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