quarta-feira, 25 de março de 2015

3770) "Gimme Shelter" (25.3.2015)



O ano era 1969, e Merry Clayton era uma cantora profissional de Los Angeles que fazia vocais em estúdio e na banda de Ray Charles. Estava grávida, era cerca de meia-noite e ela já estava deitada com o marido quando o telefone tocou. 

Era um produtor pedindo para ela dar um pulo num estúdio e fazer um vocal, coisa rápida. Ela reclamou: “Cara, já estou deitada pra dormir, não vou mais sair pra trabalhar uma hora dessas.”  O produtor insistiu, disse que seria bom pra carreira dela, e pagava bem. 

O marido pegou o telefone para discutir com ele, falou, ouviu, ouviu, aí desligou e disse: “Merry, é melhor você ir. Vai ser bom pra sua carreira”.

Ela vestiu uma capa e, de bobs no cabelo, foi direto para o estúdio, onde foi recebida pelos Rolling Stones, que estavam gravando “Gimme Shelter”. 

Quem conhece bem a música deve lembrar aquela voz feminina rasgada, lancinante, no refrão: 

"War, children, it’s just a shot away, it’s just a shot away... 
Rape, murder, it’s just a shot away, it’s just a shot away...”  

É uma canção dark, falando da guerra, da brutalidade da época, da violência onipresente.  Sentada num banquinho (“minha barriga estava muito pesada”), ela gravou três takes do vocal, onde sua voz dobra com a de Mick Jagger, e foi pra casa.

Acho difícil traduzir esse refrão. “It’s just a shot away” significa mais ou menos “está a apenas um tiro de distância”. Seria algo como: “Pra guerra, rapaziada, só falta um tiro”. Para o estupro, para o assassinato, só falta um tiro. Só falta “um tantinho assim”. 

Os Stones amenizam a mensagem no final, dizendo: “Love, sister, it’s just a kiss away”: “para o amor, minha irmã, só falta um beijo”. Concessão aos tempos do “Paz & Amor”? Pode ser, mas “Gimme Shelter”, uma das canções mais fortes da banda, não ficou marcada como uma canção de alto astral, e sim como uma canção de “os tempos estão sombrios”.  Como o “Cálice” de Chico & Milton, e tantas outras dos nossos tempos de ditadura.

Aqui neste link (http://tinyurl.com/ldz24jj) é possível ouvir a música, a faixa somente com a voz de Merry, e uma entrevista de Jagger onde ele lembra o episódio. 

Foi bom pra carreira de Merry? Difícil dizer, mas tornou-se a performance mais famosa dela. A história, contudo, não teve propriamente um final feliz. A hora tardia e o esforço desgastaram Merry Clayton, e pouco depois da gravação ela perdeu o bebê. 

“Foi um período muito sombrio para mim,” disse ela, “mas Deus me deu forças para superar. Dei a volta por cima. Encarei isso como parte da vida, do amor, da energia, e desviei noutra direção, de modo que hoje não me incomoda cantar ‘Gimme Shelter’. A vida já é muito curta e eu não posso viver no passado.”







segunda-feira, 23 de março de 2015

3769) "Maldito Sertão" (24.3.2015)



Tem crescido o número de livros de contos baseados nas lendas populares, no folclore, nas histórias de assombrações e de monstros das diversas regiões do Brasil. Quando publiquei no ano passado meu livro de contos Sete Monstros Brasileiros (Casa da Palavra, 2014) , citei alguns amigos que estão trabalhando esse tipo de literatura, como Simone Saueressig, Christopher Kastensmidt e Felipe Castilho. Mitos e lendas populares têm sido sempre adaptados para livros infantis, tomando inclusive uma feição paradidática, mas o fenômeno mais recente é a produção de textos nessa linha para leitores adultos, fazendo uma interface com a literatura de terror tradicional.

Outro lançamento recente é Maldito Sertão (Natal, Editora Jovens Escribas, 2012, 2ª. Edição) de Márcio Benjamin. É uma coletânea de doze contos curtos onde surgem os “habituais suspeitos” das nossas lendas de terror e assombração: o lobisomem, o papa-figo, a porca dos sete leitões, a Comadre Fulozinha, a mula sem cabeça, etc.  As histórias de Márcio Benjamin têm narrativa ágil, com parágrafos curtos. Em sua maioria descrevem uma situação humana (uma casa, uma família, um grupo de pessoas) onde a invasão do sobrenatural se dá tanto por acaso quanto por uma espécie de maldição tipo “estava escrito”, algo que provavelmente aquelas pessoas nunca poderiam evitar.  Os desfechos são misteriosos e geralmente violentos.

Um aspecto que me agradou foi a linguagem nordestina coloquial empregada pelo autor, que reforça a textura oral desses contos. “Saiu desembestada”, “arrudiando a casa”, “velho como a fome”, “aperreados com a violência”, “buchos cheios de arribaçãs fritas”, “uma zuada seca”, “o primeiro bufete que levei, de uma ruma de outros”, “eu moro aqui faz é tempo”, “arrumadinhas como bonecas de feira” são algumas expressões que dão ao livro essa oralidade sertaneja, esse resíduo de um modo de falar e de pensar que serve de caldo fermentador dessas histórias. Sem forçar a barra da oralidade (o português é simples mas correto, sem transcrições fonéticas), essa maneira de escrever dá credibilidade literária a essas pequenas fábulas de crueldade, pecado, mistério, medo, ambição.

São histórias que não vêm dos livros, embora Câmara Cascudo e outros as tenham registrado.  Vêm da memória de infância, das reuniões na mesa da cozinha, no alpendre da casa da fazenda, em volta de uma fogueira ou de um candeeiro que recorta de luzes e sombras a imaginação de um grupo de crianças de olhos grudados na pessoa que conta os malassombros, com largos gestos de ênfase multiplicados e ampliados pela chama.




sábado, 21 de março de 2015

3768) Minha outra vida (22.3.2015)



Às vezes eu sonho acordado que sou um cara bem diferente de mim mesmo, vivendo uma vida que não parece nem um pouco com a minha. 

É uma das minhas formas de terapia inexplicável. Inexplicável porque se fosse uma fantasia de riqueza, orgias, farras, viagens pelo mundo, boemia, glória literária, tudo isso seria muito óbvio: estou sonhando com o que gosto e não tenho, ou tenho e queria ter em dobro. Mas não é o caso. Sonho com coisas sem graça e que não têm nada a ver comigo.

Às vezes sou um cara de 30 e poucos anos que vive sozinho numa casa minúscula. Cozinho, esquento ou peço por telefone minha comida, lavo minha roupa, faço a limpeza da casa. Minha casa tem mobília simples e pouca: poltronas, mesas, geladeira, um som na sala. Não tem uma TV, um livro, um disco sequer. Nada nas paredes além de um relógio redondo na sala e um calendário quadrado na cozinha. 

Eu acordo, tomo banho, faço a barba, visto calça, camisa, calço tênis. Desço uma escadinha interna que conduz à garagem. Entro no carro, sento, ligo a ignição e sinto com prazer aquele ronco profundo, possante, prometendo motor em ordem e tanque cheio. Saio dirigindo devagar pelas ruazinhas tranquilas.

Aonde vou? Não sei. Não é para o trabalho. Meu trabalho é alguma coisa que me faz passar semanas a fio longe dali; mas quando volto, volto para aquela casinha silenciosa, as ruas, os gramados. Parece uma cidade americana ou européia, mas pode ser uma daquelas cidades históricas mineiras, ou da serra gaúcha. 

Vou ao supermercado, ao boliche, ao cinema. Às vezes vou à noite para uma boate, bebo cerveja com alguma garota, dançamos, vamos para um quarto dos fundos.

Tenho dinheiro no Banco que daria para me manter por dois ou três anos, se parasse de trabalhar. Não tenho família nem amigos. Meus vizinhos me acenam e sorriem de longe, nunca entraram na minha casa nem eu na deles. 

À noite rego as plantas, faço pequenos consertos. Ou levo uma espreguiçadeira para o gramado do quintal, abro uma cerveja, fico sentindo a brisa, olhando as estrelas, bebendo devagar, sem pensar, sem lembrar, sem imaginar coisa alguma.

É uma vida vazia, uma vida sem alegria, sem prazer? Talvez seja, mas é uma vida que nunca tive nem terei, uma vida parecida com uma foto de revista, algo com cores mas sem som nem movimento. Uma vida que só o pensar nela me repousa, me descansa de mim mesmo. Como aquelas pessoas que para adormecer imaginam o fundo de um lago escuro, eu me imagino nessa vida sem gente, sem afetos, sem emoções, sem perigos, sem vitórias, sem projetos e sem medos, e o fato de ter esse lugar para onde ir de vez em quando chega a me repousar desta carga pesada de ser quem sou.





sexta-feira, 20 de março de 2015

3767) "Feitiço do Tempo" (21.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua da Alfândega com Rua 1º. de Março, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida, e estarei presente sempre que possível, o que não é o caso de hoje.) Comentarei aqui os filmes escolhidos, e o leitor fora do Rio pode encontrar os filmes nas locadoras e na Internet, caso se interesse.

Hoje será exibido Feitiço do Tempo (“Groundhog Day”) de Harold Ramis (1993). A premissa fantástica (há uma só) do filme é que o personagem de Bill Murray fica preso num único dia, o Dia da Marmota (“groundhog”), quando nos EUA se costuma deduzir a duração do inverno em função do comportamento de uma marmota em sua toca. Murray é Phil, um repórter de TV meio cafajeste que vai cobrir essa data folclórica numa cidadezinha, acompanhado da produtora Rita (Andie MacDowell) e sua equipe. Phil quer comer Rita, e ela não o suporta. Uma nevasca os deixa presos na cidade, sem poder sair. E quando Phil acorda no hotel, na manhã seguinte, descobre que o Dia da Marmota está se repetindo, tintim por tintim: mesmos diálogos, mesmos gestos, mesmos pequenos acidentes.

O choque inicial o desorienta, mas quando dorme de novo tudo se repete.  Phil leva algum tempo para perceber que está preso num “loop” temporal, como um disco enganchado. A premissa do roteiro de Danny Rubin não é explicada, mas, como fica clara desde logo, o espectador se concentra em ver de que maneira Phil irá reagir diante das dezenas de pequenos episódios daquele dia eternamente reprisado, que aos poucos ele começa a saber de cor.


Groundhog Day se baseia numa única premissa fantástica para desenvolver complexos padrões de repetições e variantes; uma técnica de seriados como Twilight Zone e outros. O filme tem um elenco simpático e uma narrativa bem editada (quanto mais o espectador vai se familiarizando com os fatos mais rápida ela se torna). Talvez sua virtude principal seja algo que filmes fantásticos deste tipo nem sempre fazem: ele examina todas (em termos, claro) as consequências possíveis da premissa principal, todas as possibilidades do que poderia acontecer a um personagem numa situação como aquela. Como acontece com tantos bons romances de ficção científica, os roteiristas (Ramis e Rubin) se divertem em imaginar e em sugerir ao espectador uma infinita ramificação de vidas possíveis para aquele personagem, naquele mundo em que ele é o único que já sabe o que vai acontecer mas está mais prisioneiro do que todos os outros.




3766) Coco cheio de sangue (20.3.2015)



Uma história irreal com uma base realista parece ser uma espécie de “default” do fantástico contemporâneo, de Julio Cortázar a Stephen King, e de Italo Calvino a Ray Bradbury. O chamado realismo mágico latino-americano tinha essa base realista muito forte. O problema é que para os leitores norte-americanos ou europeus a própria base realista soava exótica, era surreal, era surpreendente – o que dava ao gênero uma aura difusa e onipresente de fantasia. Mas não era essa a intenção de autores como Garcia Márquez ou Juan Rulfo, para quem era tão importante mostrar a panela de sopa fumegando no fogão quanto o fantasma do antigo dono da casa.

Inventar avalistas para autenticar a procedência de fatos fantásticos é uma tática antiga.  É como se dá com as lendas urbanas.  Ninguém diz: “Um papa-figo está sendo visto na cidade”. Diz: “Uma amiga de minha irmã viu um papa-figo na rua dela”. É preciso, num esforço de verossimilhança, atribuir a visão do fato fantástico a uma pessoa real, de existência inquestionável.

Mia Couto começa seu conto “Pranto de coqueiro” (1994) assim: “Foi evento que saiu no jornal da Nação, oficial e autenticado. O alvoroço dos coqueirais de Inhambane mereceu título e honrosas colunas. Tudo começou quando, sentado na marginal de Inhambane, meu amigo Suleimane Ibraímo partiu a casca de um coco. Pois de dentro do fruto não jorrou a habitual água-doce mas sangue. Exatamesmo: sangue, certificado e indiscutível sangue. Mas não foi o único pasmo do assunto. Do fruto brotou ainda humana voz em choros e lamentos.”

Logo nas primeiras linhas nos deparamos com um fato fantástico (o coco cheio de sangue, e de vozes), mas para preparar essa intromissão do fantástico temos uma narração informativa, citando pessoas e lugares, além de referências insistentes à imprensa, ao fato de que tudo aquilo é “oficial e autenticado”, de que o fato é “certificado e indiscutível”.  Mesmo exibindo as costumeiras invenções verbais de Mia Couto (“exatamesmo”), é um texto propositalmente convencional, que narra a ação por via indireta.

Esta é uma pequena variante de um dos artifícios mais antigos do gênero, a “história contada”, tão querida dos narradores de Henry James, Machado, Conan Doyle. Na história-moldura, um grupo de homens está reunido e um deles conta uma história inacreditável. O narrador da história-moldura, dentro da qual a história inverossímil é contada, se exime de qualquer responsabilidade, pois está apenas reproduzindo o que ouviu. Hoje, usa-se citar jornais, TV, websaites, tudo o que, sob a aparência de confiabilidade, pode servir de aval a qualquer história impossível.


quinta-feira, 19 de março de 2015

3765) Bob Dylan para um só (19.3.2015)



Imagine um superstar do rock como Bob Dylan, subindo com sua banda num palco e fazendo um show para uma platéia de – dez mil, vinte mil, cinquenta mil pessoas?  Não: de uma pessoa só. Não é delírio: estou assistindo um clip do show agora (aqui: http://en.experimentensam.com/bob-dylan) e matutando sobre o lado pitoresco do capitalismo. (Digam o que quiserem do capitalismo, mas ele é tão divertido, pelo menos pra quem tem capital, quanto um baile de carnaval no Clube Monte Líbano nos anos 1950.)

 

O show faz parte do projeto Experiment Ensam (“Experimente Só”), financiado por um grupo sueco de apostas (que deve ter dinheiro sobrando, dá pra perceber). A filosofia por trás do projeto (está tudo lá no saite) é que muitas das nossas experiências são comunais, só podem ser fruídas plenamente quando estamos acompanhados, ou quando pelo menos olhamos em redor e sabemos que outras pessoas estão sentindo aquilo que a gente sente. Então, o projeto produz situações coletivas e escolhe ou sorteia alguém para ser o único usuário durante uma noite.

 

Fredrik (um sueco fã de Dylan) diz que uma das coisas mais divertidas nos shows dele é tentar identificar as canções, e tem razão. Dylan é famoso por modificar o tom, o andamento, o ritmo, os arranjos. Já vi 4 shows dele, todos no Rio, e muitas vezes a gente só identifica a música quando ele chega ao primeiro refrão. (Tentar reconhecer pelos versos é igualmente difícil: a dicção dele é pior do que letra de médico.) “O que é isso? Será ‘Changing of the Guards’ em ritmo de reggae?”.  E esse prazer (diz Fredrik) só é possível quando se está com amigos, inclusive após o show: “Você viu o solo de gaita na música tal?...”

 

Num teatro com uma única poltrona ocupada, Dylan cantou músicas de Buddy Holly, Fats Domino, etc. – uma escolha correta. Se eu fosse fazer um show assim, ao invés de cantar os “grandes sucessos obrigatórios” ficaria mais à vontade cantando as músicas que mais gosto, e que ninguém nunca me pede. Fredrik aplaude no silêncio após a música, e a certa altura grita uma frase de incentivo que arranca risadas de Dylan e dos músicos. Diz ele, depois: “Na hora, foi uma das experiências mais intensas da minha vida; depois, no entanto, eu fico meio triste por não ter podido compartilhar com ninguém”.

 
Outros experimentos levam uma pessoa sozinha para um restaurante e depois uma boate, para um parque de diversões, para um show de comédia stand-up. É uma dessas sacadas publicitárias baseadas em idéias curiosas e muito dinheiro. (Aliás, não consegui saber quanto pagaram a Dylan pelo show, nem se ele teve a hora-e-meia de duração habitual.)


quarta-feira, 18 de março de 2015

3764) "Jimi Hendrix por ele mesmo" (18.3.2015)



Ele chegou a ser considerado, pela hiperbólica imprensa roqueira, como o maior guitarrista vivo do rock, o maior guitarrista de todos os tempos e “o homem que nunca tocou uma nota errada”.  Exagero, é claro, fórmulas sem sentido. Toda avaliação estética é qualitativa, subjetiva, impossível de quantificar, medir e organizar num ranking de pontuação.  O próprio Jimi, quando ouvia essas coisas, dava uma risada meio rouca.

O livro Jimi Hendrix por ele mesmo (Ed. Zahar, 2014, tradução de Ivan Weisz Kuck) é uma compilação de declarações de Hendrix em primeira pessoa: entrevistas (jornal, revista, TV, rádio), textos manuscritos, diários, cadernos de anotações. Os organizadores intervêm de vez em quando, com notas de poucas linhas para situar certos depoimentos no contexto de algo que estava acontecendo.

Hendrix serviu de exemplo para muita gente de como alguém podia ser um garoto-problema (fugiu de casa, foi expulso da escola) e ao mesmo tempo não ser um criminoso, não ser “do Mal”, como se diz. Pelo que ele fala, não era nada do Mal, apenas queria trabalhar com o que gostava (e só gostava de uma coisa: guitarra), usar cabelo extravagante, roupa extravagante. Quando voltou famoso a Seattle e recebeu as chaves da cidade, disse: “As únicas chaves que eu esperava ver nessa cidade eram as da cadeia”.

Talentoso e intuitivo, Hendrix não é um pensador articulado, não tem a lógica brechtiana e meio absurdista de Bob Dylan, nem o espírito grouchomarxista de John Lennon. É um rapaz que vive para a música; grande parte dos seus depoimentos é tentando explicar as dificuldades de gravação ou masterização de um disco, porque buscavam efeitos que os técnicos desconheciam. Ele, que despontou para o sucesso no Reino Unido, detestava os técnicos de estúdio dos EUA, preferia os ingleses: “Os engenheiros lá são mais criativos. Fazem coisas fantásticas, que lembram até a forma como lutaram na Segunda Guerra Mundial. É tudo muito positivo, o clima, a engenharia, a coisa toda. Lá, estar com um engenheiro é estar diante de um ser humano. É estar com alguém que está fazendo seu trabalho. Aqui na América, os engenheiros não estão nem aí para você. São tão máquinas quanto os gravadores com que trabalham. Dá pra sentir que falta o ser humano, que o estúdio só está interessado na conta, nos 123 dólares por hora”.

São comentários sobre as canções, queixas do cansaço das turnês, reclamações ou elogios quanto ao som fornecido num show. Protestos hippies de paz e amor um tanto pró-forma, de alguém que tinha uma única idéia fixa: música. Os quatro últimos anos dos 27 que viveu foram uma montanha russa que está bem captada nestes fragmentos.




segunda-feira, 16 de março de 2015

3763) "O Trovador" (17.3.2015)



Uma das histórias mais mal contadas do século 20 é a renúncia do Rei Edward VIII da Grã-Bretanha porque queria casar com Wallis Simpson, uma norte-americana divorciada e (diziam os lordes ingleses) promíscua demais para ser rainha da Inglaterra. O Rei abdicou do trono, foi viver com ela e (diz a galera que não perdoa) foram infelizes para sempre.

Uma das palavras mais misteriosas da literatura é “noigandres”, que aparece num poema do século 12 escrito pelo trovador provençal Arnaut Daniel, e cujo significado ninguém sabia. Depois de intermináveis discussões, há hoje um certo consenso de que a palavra na verdade são duas, “enoi gandres”, significando “antídoto contra o tédio” (já escrevi a respeito, aqui: http://tinyurl.com/kqqlzy6).

Pegando estas duas pontas tão distantes (e mais algumas), Rodrigo Garcia Lopes escreveu um romance policial ambientado em Londrina nos anos 1930, quando a cidade do norte do Paraná estava vivendo um “boom” econômico, produzindo café, atraindo migrantes, devastando florestas de madeira de lei, fazendo fortunas. Lord Lovat, um dos sócios ingleses da operação, vem da Inglaterra para investigar acontecimentos estranhos na sua Companhia, e traz consigo Adam Blake, poliglota e tradutor, para ajudá-lo a lidar com japoneses, judeus, alemães, russos, etc.  Começa então uma intriga que envolve mortes misteriosas cometidas por um assassino que se intitula O Trovador, numa trama com ramificações que vão até a Inglaterra do Rei Edward e a Alemanha nazista.

Rodrigo Garcia Lopes é tradutor (Rimbaud, Whitman, Apollinaire), compositor, co-editor da revista literária “Coyote”, poeta com um trabalho de vívida imaginação verbal e controle linguístico, que tem interfaces com a poesia “beat” de Wiliam Burroughs e Allen Ginsberg. O Trovador (Ed. Record, 2014) é um romance policial de narrativa clássica, retrato de época da colonização do Paraná, cheio de referências literárias que fazem parte essencial da história (em vez de serem apenas piscadelas para os eruditos). A chegada do detetive Blake a Londrina me lembrou, por mais de um motivo, a chegada do Blake interpretado por Johnny Depp àquela cidadezinha de faroeste no início de Dead Man de Jim Jarmusch.

A reconstituição de época é verossímil, sem sobrecarregar a narrativa com longos nacos de pesquisa. Personagens fictícios e reais (Lord Lovat, Churchill, Elias Levy) se misturam numa narrativa com mistério detetivesco, ação e retrato histórico na medida certa. Não são frequentes os casos de autor igualmente seguro na poesia e no romance. R. G. Lopes, mais ousado no verso, demonstra na prosa segurança narrativa e domínio da estrutura do gênero.




sábado, 14 de março de 2015

3762) Fora da foto (15.3.2015)



Uma vez eu estava acompanhando uma filmagem feita por uma daquelas equipes de profissionais Série B, calejados e tarimbados. Foram entrevistar um fazendeiro. No fim da entrevista, o diretor de fotografia pediu a ele que posasse, diante da casa da fazenda.  O sujeito postou-se onde lhe pediram, aí o fotógrafo disse: “Doutor, erga o braço e aponte pro horizonte.”  O cara obedeceu, e foi fotografado. Depois, de volta na kombi, perguntei por quê. E o fotógrafo disse: “É pra dar a sensação de que fora da foto também tem coisa.”

Construir cenografias para o cinema é caro que é danado, de modo que qualquer estúdio aprendeu desde cedo (desde o cinema mudo) a construir apenas a parte que vai ser mostrada pela câmera.  Ruas inteiras de casas que só têm a fachada, de madeira, escorada por trás. Pra que construir casas completas, se a câmera só vai mostrar o lado de fora?  Diretores de cinema desde cedo se acostumaram a minimizar custos com o expediente simples de desenhar um “storyboard”, escolher o ângulo da câmera, e construir um cenário contendo exclusivamente o que a câmera vai mostrar daquela posição. (O problema é que depois não pode ter uma idéia melhor e mudar a posição da câmera – vai ter que ficar sendo aquela mesmo.)

A literatura e o cinema vivem disso: de nos sugerir o tempo todo que fora da foto “também tem coisa”.  Induzir o espectador/leitor a acreditar que o que não está sendo mostrado pelo autor também existe. Às vezes basta um ruído. Uma coisa é mostrar a sala de um apartamento silencioso e um casal conversando. Outra coisa é a mesma sala, o mesmo casal, a mesma conversa, e os sons da rua entrando pela janela aberta: buzinas, vozes, latido de cachorro, briga de vizinhos, música, o caminhão do gás com sua musiquinha, o vassoureiro com seu pregão...

Em seu ensaio clássico “A Simples Arte do Crime”, Raymond Chandler diz que considera o romance policial inglês mais sólido, mais bem escrito, do que o norte-americano, e explica: “Há uma sensação mais forte de ambiente, como se a mansão de Cheesecake Manor existisse de fato, e não apenas a parte mostrada pela câmara.”  A metáfora cenográfica de Chandler explica bem a sensação de incompletude que temos com tantos romances, tantos filmes. Na verdade não sentimos falta da paisagem de fora da foto, mas de uma realidade própria.  Muitas histórias dão a impressão de que não existiam antes do livro começar a ser narrado. Existe só a foto, só o que está sendo dito. Naquele mundo nada mais aconteceu senão o que está sendo contado.  Isto pode até ser empregado de propósito, para efeito literário, mas não se pode negar o vigor de uma literatura que nos dá a sensação de que enquanto estamos lendo o que acontece no lugar A, tem outras coisas igualmente importantes acontecendo em B e C.




sexta-feira, 13 de março de 2015

3761) "Os Inocentes" (14.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua da Alfândega com Rua 1º. de Março, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida, e estarei presente sempre que possível, o que não é o caso desta estréia.) Pretendo comentar aqui os filmes escolhidos, e o leitor fora do Rio pode encontrar os filmes nas locadoras e na Internet, caso se interesse.

O filme de abertura, hoje, será Os Inocentes (“The Innocents”, 1961) de Jack Clayton, provavelmente o melhor filme do diretor. É um daqueles clássicos filmes de terror em preto e branco, explorando uma fotografia cheia de claro-escuro e os cenários cheios de mistério de uma enorme mansão. São filmes mais elaborados e mais sutis do que a produção normal de terror da época, de produtoras como a Hammer Films (inglesa) e AIP (norte-americana), de orçamento mediano, feitos meio às pressas. O filme de Clayton é uma produção caprichada dirigida por um perfeccionista.

O filme é adaptado do romance Outra Volta do Parafuso (1898) de Henry James, história de uma governanta que vai morar numa mansão no campo para cuidar de um casal de crianças. A mansão é assombrada pelas aparições de um casal de ex-criados, que quando trabalharam ali viviam muito próximos às crianças e agora parecem voltar do túmulo para se apossar delas. A governanta tenta salvar as crianças desse perigo – e algumas teorias dizem que tudo aquilo é um delírio dela própria.

O livro de James é uma das melhores ilustrações da teoria do Fantástico proposta por Tzvetan Todorov em sua Introdução à Literatura Fantástica (1970). Diz Todorov que o Fantástico é uma zona indefinida entre o Estranho (histórias de fatos aparentemente sobrenaturais, mas que no fim recebem explicações realistas) e o Maravilhoso (histórias em que tudo está claramente situado num mundo sobrenatural qualquer). Histórias fantásticas (diz ele) são aquela que se concluem sem que o autor “bata o martelo” com uma explicação clara, deixando no ar a dúvida: aquilo que aconteceu foi sobrenatural ou não?

Os Inocentes é um dos grandes filmes de terror atmosférico, onde existe pouca ou nenhuma violência física, mas tudo é impregnado de uma aura de ameaça, de maldade, de corrupção.  Disse James de sua história: “Em última análise, qual a sensação que eu tinha de transmitir? A sensação de que esse casal fantasma seria capaz, como se diz, de tudo – ou seja, de exercer, com respeito às crianças, a pior ação a que as pequenas vítimas, tão sugestionáveis, pudessem estar sujeitas.”