Uma vez eu estava acompanhando uma filmagem feita por uma daquelas equipes de profissionais Série B, calejados e tarimbados. Foram entrevistar um fazendeiro. No fim da entrevista, o diretor de fotografia pediu a ele que posasse, diante da casa da fazenda. O sujeito postou-se onde lhe pediram, aí o fotógrafo disse: “Doutor, erga o braço e aponte pro horizonte.” O cara obedeceu, e foi fotografado. Depois, de volta na kombi, perguntei por quê. E o fotógrafo disse: “É pra dar a sensação de que fora da foto também tem coisa.”
Construir cenografias para o cinema é caro que é danado, de
modo que qualquer estúdio aprendeu desde cedo (desde o cinema mudo) a construir
apenas a parte que vai ser mostrada pela câmera. Ruas inteiras de casas que só têm a fachada,
de madeira, escorada por trás. Pra que construir casas completas, se a câmera
só vai mostrar o lado de fora? Diretores
de cinema desde cedo se acostumaram a minimizar custos com o expediente simples
de desenhar um “storyboard”, escolher o ângulo da câmera, e construir um
cenário contendo exclusivamente o que a câmera vai mostrar daquela posição. (O problema
é que depois não pode ter uma idéia melhor e mudar a posição da câmera – vai ter
que ficar sendo aquela mesmo.)
A literatura e o cinema vivem disso: de nos sugerir o tempo
todo que fora da foto “também tem coisa”.
Induzir o espectador/leitor a acreditar que o que não está sendo
mostrado pelo autor também existe. Às vezes basta um ruído. Uma coisa é mostrar
a sala de um apartamento silencioso e um casal conversando. Outra coisa é a
mesma sala, o mesmo casal, a mesma conversa, e os sons da rua entrando pela
janela aberta: buzinas, vozes, latido de cachorro, briga de vizinhos, música, o
caminhão do gás com sua musiquinha, o vassoureiro com seu pregão...
Em seu ensaio clássico “A Simples Arte do Crime”, Raymond
Chandler diz que considera o romance policial inglês mais sólido, mais bem
escrito, do que o norte-americano, e explica: “Há uma sensação mais forte de
ambiente, como se a mansão de Cheesecake Manor existisse de fato, e não apenas
a parte mostrada pela câmara.” A
metáfora cenográfica de Chandler explica bem a sensação de incompletude que
temos com tantos romances, tantos filmes. Na verdade não sentimos falta da
paisagem de fora da foto, mas de uma realidade própria. Muitas histórias dão a impressão de que não
existiam antes do livro começar a ser narrado. Existe só a foto, só o que está
sendo dito. Naquele mundo nada mais aconteceu senão o que está sendo
contado. Isto pode até ser empregado de
propósito, para efeito literário, mas não se pode negar o vigor de uma
literatura que nos dá a sensação de que enquanto estamos lendo o que acontece
no lugar A, tem outras coisas igualmente importantes acontecendo em B e C.
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