domingo, 22 de fevereiro de 2015

3744) O livro sem E (22.2.2015)



A palavra “contrainte” (em francês; “constraint” em inglês) significa “restrição arbitrária que um autor se auto-impõe”, e tem produzido obras curiosas na literatura.  O sujeito pode dizer, por exemplo: “vou escrever uma história onde tudo acontece de trás para diante”, uma história onde o tempo corre ao contrário. Isto foi feito, com relativo êxito, por Philip K Dick (Counter-Clock World), Fritz Leiber (“The Man Who Never Grew Young”) e outros.  Em geral, contudo, a “contrainte” não se prende ao tema, mas à forma, a um detalhe técnico qualquer.

Já escrevi sobre o romance de Georges Perec La Disparition, onde ele não usa a letra “E”.  Não foi o primeiro a fazê-lo. Provavelmente essa honra cabe ao romance Gadsby (1939) de Ernest Vincent Wright, um autor obscuro que morreu logo após o lançamento do livro. Um artigo de Mark Juddery (aqui: http://tinyurl.com/bhyzlfw) comenta essa verdadeira anomalia literária, como foi considerado na época, e anota o detalhe de que Wright, para se manter fiel ao compromisso, amarrou com cordão a tecla da letra E de sua máquina de escrever, para não usá-la por distração. Não sei se o recurso poderia ser usado num teclado de computador, mas este tem a vantagem da busca. Toda vez que tentei fazer algo assim, uma rápida busca pela letra em questão acaba nos mostrando todas as vezes em que a empregamos por descuido.

É uma história de amor, mas Wright nunca usa, por exemplo, a palavra “love”, e a substitui por circunlóquios (“strong liking”, “throbbing palpitation”).  Wright foi mais rigoroso do que Perec: ele evita o uso de abreviaturas como “Mr.”, porque “Mister” contém a letra proibida (Perec abreviou algumas palavras que continham “E”).  Wright também praticou primeiro algumas das façanhas mais divertidas do livro de Perec: pegar frases famosas e parafraseá-las omitindo a letra proibida. Uma frase como “a thing of beauty is a joy forever” do poeta Keats (“uma coisa bela é uma alegria eterna”) ele recria como “a charming thing is a joy always”, que é quase a mesma coisa.

Proezas desse tipo se parecem àqueles filmes feitos num único plano-sequência, sem cortes, ou àquelas peças de piano tocadas apenas nas teclas pretas. O objeto não é o mesmo dos jogos comuns, das músicas comuns. No caso dos lipogramas (textos que omitem uma ou mais letras), trata-se de um exercício intelectual onde o objetivo estético, embora presente, retrocede para segundo plano.  O objetivo não é só o de produzir uma obra de arte, mas de testar os limites de esforço e de engenhosidade que alguém pode atingir na feitura de uma obra de arte. Metade obra, metade exercício.




sábado, 21 de fevereiro de 2015

3743) Dicionário Aldebarã IX (21.2.2015)



(ilustração: Arzach, Moebius)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Skensoul”: a sensação de não conseguir lembrar a identidade, o nome, o rosto de uma pessoa, mas lembrar com precisão todo o complexo de emoções que em nossa memória está associado a ela.  

“Campertuis”: a atitude de alguém que está fazendo várias coisas ao mesmo tempo, como tomar café da manhã, assistir TV e falar ao celular simultaneamente. 

“Amboure”: a sensação inexplicável de que todos os nossos problemas se resolverão ao mesmo tempo graças a um único fato que não imaginamos qual seja. 

“Talwin”: a sensação incômoda de ver uma pessoa carregando um objeto que parece ser mais pesado do que ela.

“Ustahan”: o dia convencional de jejum que se segue às datas festivas com ceias que reúnem toda a família.  

“Oldavires”: aplica-se a todas as pessoas que dão pouca atenção ao ambiente que as cerca e estão o tempo inteiro atravancando a passagem com seus veículos, etc.  

“Semajy”: pessoas extremamente cerimoniosas que passam horas para dizer ou pedir algo que a essa altura já ficou óbvio para todo mundo. 

“Bargle”: a fala ininteligível dos bebês, e também os significados intencionais que a família fica ansiosamente lhe atribuindo.

“Icterah”: a sensação de inebriação e de expectativa misturada com receio de quem embarca numa empreitada de grande porte.  

“Daiobill”: a falsa sensação de anoitecer produzida por uma chuva que escurece o céu durante o dia. 

“Endivar”: as pequenas mudanças no comportamento de alguém muito próximo que nos indicam que algo está acontecendo, embora a gente não possa adivinhar o que é.  

“Abofrin”: nossa tendência a imaginar que se uma sequência de fatos até agora assumiu uma forma, os próximos fatos também estarão sujeitos a ela.

“Ambiloon”: o lado bom e oculto de toda pessoa antipática, ou o lado negativo e oculto de toda pessoa simpática.  

“Todills”: qualquer solução repentina para um problema, que aparece como que caída do céu.  

“Nostres”: banhos de mar coletivos, noturnos, na época em que o sol forte do verão torna as praias inacessíveis.  

“Lequirum”: pequenas gavetas sob a mesa de jantar onde as pessoas da casa guardam seus talheres especiais, copos, etc.  

“Mausbaq”: rebatedores de luz pintados com tinta prateada e colocados à cabeceira da cama, para refletir a luz do teto e facilitar a leitura de quem está deitado.



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

3742) Um problema de xadrez (20.2.2015)



(As brancas jogam, e dão mate em dois lances)

Quem não é aficionado de xadrez pensa que um problema de xadrez é a mesma coisa que uma partida de xadrez, mas não é.  Uma partida é um jogo entre adversários. Como em qualquer jogo, parte de uma situação inicial sempre a mesma, e vai refletindo a disputa de forças que passa a acontecer.  Um problema de xadrez é outra coisa.  É uma situação imaginária, proposta numa revista ou jornal. Envolve poucas peças, e o desafio: “As brancas dão xeque-mate em três lances”, ou “as pretas deixam o jogo empatado com dois lances”, coisas assim.

A graça do problema é você saber, pelo enunciado, que existe, sim, uma combinação de jogadas que conduz ao resultado anunciado.  Fogo é encontrar, porque às vezes é preciso um raciocínio meio não-convencional para achar a resposta.  No problema, aliás, isso é até mais fácil de acontecer, porque não houve toda uma partida cheia de peripécias e de intenções não-alcançadas, para chegar até ali.  Numa partida de verdade é mais fácil ficar preso à narrativa que aquele momento do jogo está propondo.  Num problema, não: chega-se emocionalmente zerado ao que na verdade é um desfecho.

Nos romances de Raymond Chandler, um dos hobbies do detetive Philip Marlowe é o xadrez, mas não me lembro de nenhuma história em que Marlowe dispute uma partida com quem quer que seja.  Ele volta para casa à noite (mora sozinho), toma banho, ouve música no rádio, prepara comida, come, depois pega o tabuleiro e arma um problema, ou reconstitui uma partida inteira entre dois mestres do passado, como um pianista que volta a tocar um Noturno para não se esquecer.

Um problema é uma pequena obra de ficção enxadrística.  Como no romance, imaginamos a existência de uma imensa teia de narrativas prévias, não-contadas, que desaguam naquele texto que começamos pelo “Capítulo 1”.  Um romance é uma história que vai acontecer, e um problema de xadrez é uma história de que não vimos o começo mas vamos ter que adivinhar seu possível fim.  Teoricamente seria possível prolongar indefinidamente aquela partida, mas a certeza da existência de uma solução radical, uma guilhotina instantânea, leva o jogador a não descansar enquanto não a encontra.

Jogar xadrez é um duelo intelectual, uma relação densa e aguerrida entre duas mentes.  Um problema de xadrez é o contrário disso: é um prazer solitário.  Uma minipartida abstrata entre o cara que publicou o problema no jornal, e o cara que vai tentar resolvê-lo.  Parece muito com a literatura, e parece mais ainda com a literatura policial.  É um detalhe sutil de Chandler, fazendo uma homenagem discreta aos grandes mestres do romance detetivesco.




quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

3741) A Sexta Profecia (19.2.2015)



(Abbey Bookshop, em Paris)

Almério mandou o calhamaço de 600 páginas, romance ainda por cima, pra uma editora carioca. Depois de roer unhas uma semana, ligou para o editor, Diogo Montalvão. “E aí, Dr. Montalvão, o que o sr. achou?”  O editor disse: “Meu querido, eu tenho uma fila de leitura, por ordem de chegada. O seu acabou de chegar. Ou você pensa que é o único brasileiro que quer viver sem trabalhar?”   “Foi o sr. quem me pediu, o sr. mesmo disse que eu podia mandar.”  “Foi pedido, foi recebido, será lido, será avaliado.”  “E se alguém me fizer uma oferta  muito boa por ele?  Pelo que eu vejo o senhor nem passou os olhos pelo livro.”  “Acertou.  Ele foi para a prateleira de espera. Eu tenho um vazamento financeiro nas minhas empresas, preciso tratar. Quando normalizar tudo, eu volto a cuidar da editora.”  “Então o senhor não vive da editora, tem mais de uma atividade.”  “Isso mesmo.  Ter várias atividades é também uma forma honrosa de viver sem trabalhar, concorda?  Mas se a Gallimard ou a Penguin lhe fizerem uma proposta irrecusável eu cedo a vez. Basta me avisar, e desejo sucesso.”

Almério já desligou com o plano armado.  A prima em Paris fazia Letras, e o marido francês dela trabalhava nessa editora.  Ele pediria pro cara lhe mandar um email banal indagando sobre o manuscrito. O livro dele era uma fantasia heróica: Cavaleiros da Sexta Profecia, por Almério Patrício. Mostraria o email: “Olhe aqui, Dr. Montalvão, a Gallimard está me sondando...”  Isso poderia motivar o velho, certo?  Ninguém mais ficaria sabendo, o assunto morria ali mesmo.

De fato a prima conseguiu, e o marido dela até se interessou pelo livro. “Pensei que a Gallimard era uma editora para intelectuais,” disse Almério.  O francês disse que toda pessoa capaz de ler e entender um livro é um intelectual, e que fantasia heróica sempre vende, mas é muito repetitivo, é preciso procurar algo com um gume de novidade, de diferença.  Ele mandou.

Quando recebeu da Gallimard a confirmação de interesse e a informação de que já tinham até um tradutor, Almério ligou para Montalvão. “A Gallimard quer meu livro, Dr. Montalvão. E eu devo isso ao sr., por absurdo que pareça.” “Você nasceu de quina pra lua, rapaz, porque eu acabei de liquidar a editora, o vazamento era nela.  Fechando isso eu respiro. Teu livro é bom, então? Mas vejam só, talvez tivesse sido minha tábua de salvação. Você ia ser meu Paulo Coelho.”  A editora de Montalvão sumiu do mundo, Almério publicou em Paris, ganhou dois prêmios e já vendeu os direitos para o cinema e os quadrinhos.  À imprensa, já admitiu que tem uma idéia bastante clara para o próximo livro, Cavaleiros da Quinta Profecia.




3740) O susto e o suspense (18.2.2015)



Existe filme de susto e filme de suspense.  São sensações diferentes: a queda que machuca o joelho, e o mergulho numa montanha russa.  Uma das nossas primeiras descobertas na linguagem do cinema é a diferença entre estas duas.  Não são duas ideologias estéticas; são dois tipos de recursos que os diretores hábeis usam alternadamente, conforme lhes convém.  Os dois não são antagônicos, a não ser no sentido de que não podem ser usados simultaneamente.  Sabendo a hora de usar cada um, o diretor faz sua fama.

Alguns sustos de Hitchcock: uma cena no antigão A Dama Oculta (1938), em que pessoas buscando a dama desaparecida num vagão de carga de trem fazem surgir de repente uma imagem em display (de papelão pintado), em tamanho natural, de um mágico.   Ou a irrupção súbita das aves ameaçadoras, depois que a casa toda foi trancada, através da chaminé (Os Pássaros).  O susto é aquele corte brusco, uma cena calma, que vai fluindo de maneira aparentemente natural, e de repente... BAM!  Uma coisa acontece, e faz 500 pessoas darem um pulo ao mesmo tempo, na sala de projeção.

Hitchcock costumava dizer que o susto é quando a platéia, um segundo antes, não sabe o que vai acontecer; e que o suspense é quando ela sabe o que pode ocorrer (ou está a ponto de ocorrer) mas o personagem não.  Duas pessoas conversam tranquilamente numa mesa de restaurante sem saber que há uma bomba-relógio ligada, embaixo dela: mas o público sabe, e é o fato de saber que gera o suspense.  Note-se que não basta haver a mera possibilidade de uma bomba, um tiro, um ataque: é preciso que o diretor mostre com clareza que isso está, sim, para acontecer.

Todo diretor (ou roteirista) precisa saber explorar a ignorância-do-espectador e a onisciência-do-espectador.  Em certos casos, a gente obtém um efeito mais forte sobre a platéia mantendo-a “no escuro”, desinformada, sem saber algo crucial.  No segundo caso, o efeito é obtido ao contrário: dando ao espectador uma informação importante sobre a trama ou sobre uma cena específica, informação que o personagem não tem.  O espectador, na sua relativa onisciência (ele “sabe tudo” a respeito daquele detalhe, o personagem não) entra numa atividade mental mais intensa e mais prazerosa, comparando o que os personagens estão fazendo e dizendo, na tela, com o que fariam ou diriam se soubesse o que ele, espectador, já sabe.

No susto, puxamos o público, de repente, para dentro da cena, e ele tem a emoção passiva de deixar-se levar.  No suspense, damos a ele a emoção ativa de saber tudo  - mas sem poder gritar pra quem está na tela: “cuidado, ele está escondido atrás da porta!”.




3739) Trailer (17.2.2015)



(ilustração: Supranav Dash)

A mulher loura atravessa o banheiro envolta numa toalha azul-turmalina.  Um texto em itálico começa a correr horizontalmente na tela, à altura das legendas: “Quando a humanidade inteira pareceu ter enlouquecido e o mundo começou a se acabar, ela conheceu o seu primeiro tempo de paz, o primeiro oásis de sua vida”.  Imagens da cidade, um porto nórdico ou eslavo, com longos armazéns de peixe se enfileirando no cais do porto.  Uma voz de policial, fatigado de tantas horas-extras:

“Há mais de meio século esta cidade agarra-se à vida, quando já devia ter virado cidade fantasma.  Foi sendo engolida por portos maiores e evitada pelas rotas comerciais mais rentáveis.  Não morreu porque três ou quatro quadrilhas étnicas dominam sua economia e seus três poderes.  Jogo, contrabando, cabarés, drogas aqui e ali, armas aqui e ali, mas de um modo geral, por ser uma cidade turística, é uma criminalidade do lazer e do prazer, onde a violência só acontece quando necessária.”  

A câmera avança por um corredor, um braço percute numa porta com os nós dos dedos.  A textura dessa imagem é meio quadrinhos, meio videogame de muitos polígonos.  A mulher que abre a porta, no entanto, é de uma perfeição digital onde é possível reconhecer cada poro do seu rosto e dar-lhe um nome e um apelido.  Ela diz ao doutor que ele é muito bem vindo, e é uma honra receber uma visita tão ilustre.  Ela está visivelmente nervosa.  O cenário ao fundo continua poligonal.  Sentam-se os dois na sala de visitas, diante de uma mesinha de chá, com bule, xícaras, etc.  Ela tem as mãos pousadas no colo.  Ele usa terno e tem a cabeça de um abutre, com o bico bem aberto.

Vem a seguir um desfile rápido dos nomes do elenco, acompanhados por uma música triste-alegre de circo ou de teatro de revista .  Câmara mostra bandinha semelhante na rua, faz panorâmica e mostra o letreiro luminoso de um teatro anunciando a banda em cartaz: Dêutero Blue.  Uma mulher ruiva diz à câmera: “Num jogo onde todo mundo está mentindo, nenhuma arma é mais mortal do que a verdade!”  Revólveres cuspindo fogo.  Carrão perseguindo pedestre numa viela, quicando latas de lixo e espantando os gatos.  Um homem de sobretudo segura uma moeda em cada mão e mostra as duas: “Somente uma delas é verdadeira.  Qual? A que a gente tem em maior quantidade.”  Um aguaceiro à noite, um jazz de vigésimo andar.  Na calçada passa um casal semi-encharcado, caminhando sem pressa embaixo de um guarda-chuva, aos cochichos.  Uma voz diz: “Todas estas imagens são autênticas, e o nosso trabalho foi somente criar novo áudio e fazer a edição final.”  Fim do trailer.





3738) Maratona Casablanca (15.2.2015)



Tenho amigos cinéfilos na Paraíba que costumam programar maratonas cinematográficas na casa de um deles. O detalhe é que são maratonas de um filme só, o mesmo filme rodando em sessões contínuas desde a chegada do primeiro conviva até a partida do último.  A duração disso depende da quantidade de presentes, além de outros fatores, mas não é extraordinário que vá das oito da noite às seis da manhã.

Esqueci de dizer que o local é ideal para isso, numa granja a 20km do centro da cidade, uma espécie de anfiteatro ou concha-acústica coberta, com capacidade para 36 poltronas, uma boa projeção, ótimo áudio, e no degrau de cima da arquibancada expande-se uma área servida por um barzinho acarpetado e discreto. Tanto é possível ficar sentado, vendo qualquer trecho do filme, quanto ir para aquela área, e geralmente isso acontece da segunda projeção em diante.

Na noite mais recente que eu fui o filme era Casablanca, que eu acho simpático mas, numa distribuição de senhas por ordem de importância, ele só ia ser atendido quinta-feira que vem.  Foi até melhor, porque depois de ver a primeira sessão integralmente (nisso eu nunca transigi, companheiros, meus princípios éticos continuam os mesmos: “Filme começado a ver é filme visto até o fim!”) tirei algumas horas conversando com meu clínico geral, com um amigo de minha filha mais velha e com dois ex-colegas de trabalho. 

Engraçado que toda vez na cena da Marselhesa a gente suspendia a conversa.  Era como se aquele nosso cinema fosse uma embaixada, um território diplomático, e a gente tivesse a obrigação etiquetal de respeitar o hino alheio.  Uma Marselhesa de filme B americano!  Grande prédio.

Fui olhar de novo a platéia às 3:15. Havia dois ou três casais de dedos fortemente entrelaçados, soprando o pó da sua Paris.  Alguns nerds silenciosos manipulando câmeras de celular, gravadores, cronômetros.  Tini copos com Pascoal, o dono da casa.  “Sempre sonhei com isso,” disse eu. “O Restaurante de Alice, né?” disse ele.  Uma piada antiga de quando o filme de Arthur Penn passou em Campina. Lá embaixo, na tela, a gigantesca mulher das nossas vidas embarcava, reprimindo um soluço.  Graças a Deus o nosso personagem estava de chapéu e sobretudo. Imagina uma despedida como essa, e o cara de camiseta e bermuda. Seria o juízo final.

“O filme bom,” estava dizendo Pascoal, “é aquele que a gente revê achando que desta vez, pode vir a acontecer uma coisa diferente. Que pode ter acontecido algo diferente naqueles dias em que imprimiram tantos metros de películas, aquelas noites em que se gravaram às pressas aqueles diálogos que estavam sendo lidos pela primeira e última vez.”




sábado, 14 de fevereiro de 2015

3737) Erro de leitura (14.2.2015)



(ilustração: Debbie Millman)

Falo aqui de vez em quando sobre certos erros ou distrações que acabam nos dando idéias criativas.  Interferências do Acaso, produzindo uma idéia que nunca teria nos ocorrido pelos canais costumeiros.  São muitos os exemplos de coisas que interpretamos erradamente e que equivalem a um ato de criação.  É claro que nem todo erro nos dá uma boa idéia, mas o importante é ficar atento ao processo.  Muita coisa boa já surgiu dele, e o exemplo que cito sempre é “O Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago. O livro surgiu depois que ele leu erradamente, ao passar por uma banca de revistas, algumas palavras isoladas, que pareciam formar esse título.  Não era; mas o título lhe pareceu interessante, e o livro todo surgiu daí.

Eu estava assistindo um documentário e no fim apareceu um letreiro, todo em letras caixa alta (maiúsculas), dando informações sobre as pessoas abordadas no documentário.  Dizia que elas estavam “produzindo um ovo”, e que “o lucro com a venda do ovo” seria empregado nisso e naquilo... Prestando mais atenção, percebi que a palavra não era OVO, era DVD.  Um caso parecido foi o do cartaz de uma peça, que li à distância; o título era FREUD (havia um retrato dele) mas eu li FREVO, porque o traçado das letras era muito parecido. (Caberá uma analogia entre o frevo como dança instintiva e o modo como o inconsciente se manifesta?) 

No interior do Nordeste vi uma placa na beira da estrada anunciando o HOTEL PAN DRAMA, título que achei original até perceber que era apenas “PANORAMA”.  Quem também não escapou da minha ficção miópica foi o livro de Laurentino Gomes, “1808” que de longe imaginei ser intitulado “ISOS” e fui olhar de perto para saber que diabo era aquilo.  Mas não é só comigo: meu amigo Pedro Ribeiro comentou um dos meus artigos sobre este tema, “O erro poético”, dizendo que no primeiro relance imaginou ter lido “O perro erótico”, o que não deixa de ser um tema pedindo para ser mais bem desenvolvido. (Alguma alusão inconsciente a “El Perro Andaluz” de Luís Buñuel, será?)

Não é só a vista, é também o ouvido.  Alguém me disse que passou no Largo da Carioca e viu um camelô oferecendo aos brados um “computador do Al Gore”, o que o fez dar meia-volta para checar e descobrir que era “Dual Core”.  Na  Paraíba, a polícia rodoviária executou durante anos a “Operação Manzuá”, nome de uma armadilha para pegar peixes, na qual o peixe entra mas não consegue sair; já vi gente explicando, com a maior segurança, que se tratava da “Operação Mãos ao Ar”. E assim vamos nós, treslendo, tresouvindo, errando e inventando, usando o Acaso como trampolim para o Inesperado, pois “a vida só presta reinventada”.




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

3736) Bartolomeu e Sueli (13.2.2015)



(ilustração: Marion Fayolle)

Não, rapaz, eu posso afirmar a você, não foi culpa nem de Bartolomeu nem de Sueli.  Eu era amigo, convivi com um e com outro antes mesmo deles se conhecerem. Acompanhei tudo. À distância, claro, mas a gente convivia.  E tem mais: pelo grau de amizade, eu não saía apenas com o casal. Às vezes saía para tomar uma cerveja a sós com ele, tínhamos nossos papos de livros e de futebol.  E outras vezes era com ela, porque dávamos aula no mesmo curso, e mil vezes dei carona, tínhamos uma conversa legal sobre política, música, essas coisas.

Culpa não sei, porque ninguém tem culpa de nada.  Se quer mesmo a minha opinião.  Só existe culpa quando existe dolo, intenção de prejudicar, de fazer o mal a alguém.  E muitas vezes o mal que é feito nasce de ruído de comunicação, nasce de uma síndrome-de-Babel em que a gente não só não se entende como nem percebe que está sendo assim, aquilo vira uma bola de neve, no fim dá no que deu. Gosto nem de pensar.

Bartolomeu me perguntou certa vez: “Você acha que Sueli é minha Mega-Sena?”.  Eu dei de ombros, meio em cimão do muro, porque ela não era propriamente uma capa da “Trip”, mas falei: “Rapaz, tem gente que roda a vida toda e não consegue o que tu tem. Aproveita.”  Sueli era um doce, apesar de teimosa com certas coisas, mas me falou certa vez, numa festa junina, no sítio de um professor da faculdade: “Meuzinho é trabalhoso, sim, mas homem que não é trabalhoso não merece confiança”. Não sei porque ela disse isso, achei na época que era um elogio, e era, porque todo mundo o achava meio bobo, mas agora, depois do que ocorreu, eu estou relativizando tudo.

Casal é uma química que nem os dois envolvidos entendem. Como é que a torcida, lá de cima da arquibancada, vai entender?  Não, amigo, pense num mistério. Quando se vê um filme não se visita coxias nem camarins. Ninguém assiste o drama entre quatro paredes, ninguém lê os pensamentos que até quem pensou procura tirar da cabeça o mais depressa possível, ninguém vê o vulcão por baixo da geleira, a ratoeira em volta, só vê queijo.

Hoje é fácil todo mundo dizer que estava destinado a acabar assim.  E Sueli era uma pessoa tênue, maneira. Pra onde o tempo e o vento a assoprassem ela derivaria em paz.  Se o final foi como foi, então palmas para o que foi.  Deixa cada um saber lidar com o momento.  Parece auto-ajuda, mas é somente calo, é cicatriz, é cascão.  Chega às vezes um momento em que o mundo, que parecia cheio de problemas, revela um problema único e final. E só então aquela pessoa percebe que até então estava vivendo o seu melhor momento, tornado ainda melhor pela esperança real de que dali para a frente ficasse tudo assim.





quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

3735) O Jamacós (12.2.2015)



Existe uma zona limítrofe entre o reino animal e o reino vegetal. Musgos, líquens, fungos – tudo isso, embora pertença a um lado, guarda semelhanças ou afinidades com o outro, ou com nenhum. É o que se dá, só que numa escala maior e sob formas imprevisíveis, com o jamacós, uma criatura encontradiça em Bornéu, Sumatra, na Indonésia e em regiões tropicais do Pacífico. Falar do jamacós envolve vários níveis de dificuldade, a primeira delas relativa ao uso do plural ou do singular.

Visto à solta, na natureza, o jamacós parece uma mancha arroxeada de geléia de amora, grudada à casca de algumas árvores que são seu habitat preferido.  Essa mancha aumenta, diminui, desloca-se ao longo da casca de que se alimenta, deixando-a polida, sem rugosidades. Vista ao microscópio, a mancha revela ser um aglomerado fervilhante de pequenas criaturas arredondadas, com ventosas no ventre, unidas umas às outras por filamentos, como irmãos siameses. O jamacós adulto parece-se a uma joaninha, com um décimo de milímetro de diâmetro,  uma quase-esfera arroxeada coberta de pontos negros. A certa altura do ciclo vital, um desses pontos incha, estende-se em filamento e produz na ponta um jamacós idêntico ao original; sem se desprender do primeiro, este segundo jamacós também produz outros filamentos, reiniciando o ciclo, o que dá ao conjunto de todos eles o aspecto de uma infinidade de colares de contas, entrelaçados.

A ciência ainda questiona: o jamacós individual é a bolinha, ou o conjunto de todas elas? Metaforicamente: o indivíduo é a uva, ou o cacho de uvas?  Será que um conjunto dessas manchas de jamacós não pode ser considerado também um indivíduo?  Um conjunto de “cachos” de jamacós comporta-se muitas vezes (principalmente em sua absorção de cascas vegetais) como um indivíduo consciente de si e do ambiente à sua volta, capaz de tomar decisões, capaz de tirar do ambiente o que precisa para sua sobrevivência e de se reorganizar em função desse ambiente.

Há cada vez mais perguntas não-respondidas sobre essa estranha espécie, nas pranchetas e nos tablets dos biólogos. O que leva o jamacós de uma fazenda a aprender com as experiências alimentares de outro, a mil km de distância?  Por que um jamacós precisa alimentar-se sem cessar, se ele mal dorme, é quase imóvel, e não aparenta ter como consumir tanta energia?  São questões ainda em aberto para os que, como nós, se dedicam a essa pesquisa.  Estamos focados no objetivo final, aqui nas inúmeras estufas do Instituto.  Vários de nós já têm até jamacós de estimação, espalhados sobre o colo das professoras, como echarpes, ou presos à testa dos doutorandos mais jovens, estilo bandana.