domingo, 22 de fevereiro de 2015

3744) O livro sem E (22.2.2015)



A palavra “contrainte” (em francês; “constraint” em inglês) significa “restrição arbitrária que um autor se auto-impõe”, e tem produzido obras curiosas na literatura.  O sujeito pode dizer, por exemplo: “vou escrever uma história onde tudo acontece de trás para diante”, uma história onde o tempo corre ao contrário. Isto foi feito, com relativo êxito, por Philip K Dick (Counter-Clock World), Fritz Leiber (“The Man Who Never Grew Young”) e outros.  Em geral, contudo, a “contrainte” não se prende ao tema, mas à forma, a um detalhe técnico qualquer.

Já escrevi sobre o romance de Georges Perec La Disparition, onde ele não usa a letra “E”.  Não foi o primeiro a fazê-lo. Provavelmente essa honra cabe ao romance Gadsby (1939) de Ernest Vincent Wright, um autor obscuro que morreu logo após o lançamento do livro. Um artigo de Mark Juddery (aqui: http://tinyurl.com/bhyzlfw) comenta essa verdadeira anomalia literária, como foi considerado na época, e anota o detalhe de que Wright, para se manter fiel ao compromisso, amarrou com cordão a tecla da letra E de sua máquina de escrever, para não usá-la por distração. Não sei se o recurso poderia ser usado num teclado de computador, mas este tem a vantagem da busca. Toda vez que tentei fazer algo assim, uma rápida busca pela letra em questão acaba nos mostrando todas as vezes em que a empregamos por descuido.

É uma história de amor, mas Wright nunca usa, por exemplo, a palavra “love”, e a substitui por circunlóquios (“strong liking”, “throbbing palpitation”).  Wright foi mais rigoroso do que Perec: ele evita o uso de abreviaturas como “Mr.”, porque “Mister” contém a letra proibida (Perec abreviou algumas palavras que continham “E”).  Wright também praticou primeiro algumas das façanhas mais divertidas do livro de Perec: pegar frases famosas e parafraseá-las omitindo a letra proibida. Uma frase como “a thing of beauty is a joy forever” do poeta Keats (“uma coisa bela é uma alegria eterna”) ele recria como “a charming thing is a joy always”, que é quase a mesma coisa.

Proezas desse tipo se parecem àqueles filmes feitos num único plano-sequência, sem cortes, ou àquelas peças de piano tocadas apenas nas teclas pretas. O objeto não é o mesmo dos jogos comuns, das músicas comuns. No caso dos lipogramas (textos que omitem uma ou mais letras), trata-se de um exercício intelectual onde o objetivo estético, embora presente, retrocede para segundo plano.  O objetivo não é só o de produzir uma obra de arte, mas de testar os limites de esforço e de engenhosidade que alguém pode atingir na feitura de uma obra de arte. Metade obra, metade exercício.




2 comentários:

Mendes A. G. disse...

Fico atônito aqui imaginando: nossa língua admitiria uma ousadia tão fantástica? Suprimir, digamos, numa crônica ou livro, a vogal omitida na obra citada ("Gadsby")? Digo isto partindo da constatação óbvia, não só minha, da importância das vogais, da sua força no nosso idioma. Como são ubíquas, a toda hora dando o ar da sua graça nas combinações mais variadas. Portanto, para mim, admirador incondicional das coisas próprias do nosso idioma, tão rico, só a um louco (ou tolo) agradaria amputá-lo para, assim, pôr à prova sua força criativa (do louco ou da língua, não importa). Contudo, não posso falar por todo o mundo. Afinal, não faltam por aí indivíduos muito criativos dispostos a tudo. Um abraço.

Braulio Tavares disse...

Mendes, veja aqui um romance brasileiro (tenho um exemplar, é real) sem a letra O:
http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/02/2487-mulher-que-enganava-lua-2322011.html